Acorda, Policial e Bombeiro Militar!


O verdadeiro desafio não é inserir uma idéia nova na mente militar, mas sim expelir a idéia antiga" (Lidell Hart)
Um verdadeiro amigo desabafa-se livremente, aconselha com justiça, ajuda prontamente, aventura-se com ousadia, aceita tudo com paciência, defende com coragem e continua amigo para sempre. William Penn.

quarta-feira, 3 de julho de 2013

Uma voz em tempos nebulosos

"Aquele perfil “jovem estudante universitário politizado” já não era mais evidente. Suas palavras de ordem foram abafadas por carros de som potentes e suas bandeiras vermelhas chegaram a ser hostilizadas, inicialmente com palavras e gritos de ordem autoritários de “sem partido!”, e logo agredidas diretamente, numa imensa briga interna contra os “vermelhos”, que não terminou mesmo quando todas as bandeiras estavam ou abaixadas e escondidas ou queimadas", escreve Daniel Teixeira, mestrando em Antropologia no Museu Nacional, Rio de Janeiro, em depoimento publicado na Revista Ponto.Doc, 27-06-2013.
Segundo ele, "estou longe de conseguir distinguir os tão diversos grupos e perfis presentes nas manifestações, e mais longe ainda de aceitar as polaridades ideológicas duais e maniqueístas (“esquerda” x “direita”; “pacíficos” x “vândalos”), tantas vezes acionadas em diferentes retóricas “esclarecedoras”. Não as vejo, nenhuma delas, enquadrarem-se com o que tenho visto nas ruas. O que vi foi uma grande diversidade entre os próprios “vândalos” e entre os “pacíficos”; vi a “esquerda” organizada ser violentada pela multidão “pacífica”, e vi “vândalos” sendo tratados como heróis pela multidão apavorada com a intensidade da repressão".
"A beleza do movimento está em sua pluralidade - conclui Daniel Teixeira -  e que sua efetividade política está na diversidade de estratégias de ação. É mesmo algo bem mais complexo e grandioso do que supõem as divisões simplistas entre “pacíficos” e “vândalos” ou “direitistas” e “esquerdistas”, ou ainda, símbolos maiores do moralismo: bonzinhos e malvados".
Eis o artigo.
Bom, pra começar, creio que este seja um momento nebuloso, e talvez impróprio para as reflexões e propostas que lançarei aos ventos. Mas estou disposto a correr esse risco, se isso puder propiciar boas críticas e novas construções. Trata-se de um ensaio escrito no calor dos acontecimenos, elaborado na dinâmica da reflexão que está em curso no Brasil, e aberto à interlocução.
Escrevo do Rio de Janeiro, ainda abalado com os recentes acontecimentos, e com uma incerteza como a que parece tomar conta do movimento desenvolvido nas últimas semanas, que já se torna difícil de nomear. É certo que já não se trata de um movimento contra o aumento das passagens – os famosos 0,20 centavos –, esse foi o estopim para a expressão de uma revolta muito maior. É certo também que já não se trata de um movimento de jovens da “classe média”, formado por militantes de partidos de esquerda e estudantes universitários (atores que o iniciaram, e que enfrentaram fortes repressões policiais e midiáticas, em manifestações com poucos milhares de participantes). Na minha opinião, trata-se agora de algo muito mais grandioso: é a expressão crua e generalizada de uma revolta contida e acumulada por diferentes setores da população. Revolta pela corrupção, pelos gastos excessivos com acopa, pela desigualdade social, pelas remoções, enfim, pelos mais diversos motivos e pautas, tão diferentes quanto são agora os perfis dos manifestantes.
Não sei bem falar de números, e sei que o que vi durante a última manifestação (20/06) não é mais que uma pequena amostra daquilo que ela realmente foi, em seus bem mais de 300.000 participantes. Mesmo em minha pequena amostragem, contudo, posso dizer que o que percebi foi uma grande mudança no perfil da manifestação, uma acentuação da diversidade. Aquele perfil “jovem estudante universitário politizado” já não era mais evidente. Suas palavras de ordem foram abafadas por carros de som potentes e suas bandeiras vermelhas chegaram a ser hostilizadas, inicialmente com palavras e gritos de ordem autoritários de “sem partido!”, e logo agredidas diretamente, numa imensa briga interna contra os “vermelhos”, que não terminou mesmo quando todas as bandeiras estavam ou abaixadas e escondidas ou queimadas.
Destacava-se, em meio à evidente diversidade, um grupo “global” que se comportava como se estivesse em uma grande micareta, ou em um imenso bloco de carnaval. Dentre esses, era lugar comum as camisas brancas e as pinturas em verde e amarelo, além das bandeiras nacionais. Em seu repertório, mostravam-se extremamente nacionalistas, repetindo incansavelmente o hino nacional e o hino patriótico (“sou brasileiro, com muito orgulho, com muito amor”) nos raros momentos em que não gritavam “sem violência” e “sem vandalismo”.
Para um olhar pouco atento, esse perfil (ou algo próximo dele) parecia constituir a “grande maioria” dos manifestantes, a própria personificacação (em um discurso típico propagado pela esquerda) do “gigante” recém-acordado, que se mostra cada vez mais nacionalista e conservador. Penso, ao contrário, que “maioria” seja um conceito vazio – que na “maioria” das vezes nos diz muito pouco. Na realidade, estou longe de conseguir distinguir os tão diversos grupos e perfis presentes nas manifestações, e mais longe ainda de aceitar as polaridades ideológicas duais e maniqueístas (“esquerda” x “direita”; “pacíficos” x “vândalos”), tantas vezes acionadas em diferentes retóricas “esclarecedoras”. Não as vejo, nenhuma delas, enquadrarem-se com o que tenho visto nas ruas. O que vi foi uma grande diversidade entre os próprios “vândalos” e entre os “pacíficos”; vi a “esquerda” organizada ser violentada pela multidão “pacífica”, e vi “vândalos” sendo tratados como heróis pela multidão apavorada com a intensidade da repressão.
Outro perfil que me chamou a atenção foi de um tipo difuso, formado, creio, por jovens pobres da periferia e de diferentes favelas e comunidades do Rio. Vestiam roupas simples, em geral bermudas e camisas de manga, e muitos usavam chinelos como calçados, além de máscaras improvisadas com camisas. Alguns desses pareciam se organizar em “bondes”, sempre movimentando-se ao longo da manifestação, em serpenteantes “trenzinhos”. Destes, muitos engajaram-se em combate aberto com os policiais, em corajosa defesa contra a sua ação truculenta.
Quero falar dessas pessoas, que nunca foram tratadas como cidadãs pelo Estado e pela Polícia Militar, e de quem agora se cobra civilidade. Injustamente, cobra-se delas a cidadania que lhes foi negada, e mais uma vez elas são classificadas como “marginais”, “vândalos” e “arruaceiros” – e até quando vamos continuar deixando isso acontecer? Muitas delas vieram às ruas para protestar pela primeira vez, e não deve causar espanto que não tenham um repertório político “pacífico” de reivindicações, quando nunca foram tratadas de forma pacífica mesmo em suas próprias casas. Também não se deve cair no erro de supor que os manifestantes classificados como “vândalos” agiram baseados em um puro instinto destrutivo, sem o uso da razão. Em suas gramáticas, creio, num contexto de guerra generalizada em que os policiais combatiam indiscriminadamente à todos os manifestantes, fez todo sentido montar barricadas e atirar pedras de volta naqueles que lhes atiraram durante anos com balas de verdade, e que agora atiravam centenas de bombas e tiros de borracha; em suas gramáticas, naquele contexto, fez todo sentido quebrar os bancos que até hoje lhes cobram os juros abusivos de um pequeno empréstimo feito há anos. Nos casos mais extremos, fez sentido saquear lojas, quebrar os pontos de ônibus e os sinais de trânsito, e para alguns chegou a fazer sentido ajudar a queimar as bandeiras dos partidos políticos. Não fez sentido em nenhuma de suas gramáticas depredar hospitais e escolas que estiveram em seu caminho.
Em resposta e adaptação da pergunta título do instigante artigo de Chakravorty Spivak “Can Subaltern Speak?” (podem falar os subalternos?) . Creio que neste momento eles estejam falando, e não falam de flores os subalternos. Como antropólogo, tenho buscado estar atento aos significados simbólicos das ações dos manifestantes, desenroladas ao longo das quase sempre violentas manifestações no Rio. Creio que a depredação dos bancos possui um significado simbólico que extravasa a raiva individual dos manifestantes envolvidos nessas ações. Acho mesmo que poderia ser entendida como uma forma (prática, não necessariamente teorizada) de expressão de uma insatisfação social com todo um sistema tributário e bancário, baseado nos interesses de grandes capitais privados. Da mesma forma, a depredação dos sinais de trânsito e dos pontos de ônibus poderiam ser vistas como uma forma de expressar uma insatisfação geral com uma ordem que serve a poucos, e respectivamente com o ineficiente e elitista sistema de transporte público carioca. Não se deve esquecer, ademais, que todas essas ações de “vandalismo” do 20/06 ocorreram em meio a uma verdadeira guerra urbana, em que os manifestantes se viram impotentes diante de centenas de policiais da choque (com suas impenetráveis paredes de escudos e inesgotáveis bombas de gás e balas de borracha), destacamentos da cavalaria e pelo menos três(!) veículos blindados. Este é de fato meu último ponto sobre essa questão: não se pode compreender o fenômeno do (assim classificado, sobretudo, pela mídia brasileira) “vandalismo” sem levar em conta a ação policial violenta nas manifestações; o gatilho do vandalismo, quase sempre, é acionado pela polícia.
A questão das bandeiras não é menos complexa: é certo que as ações de extrema agressividade contra os militantes dos partidos iniciou-se e foi incentivada por perigosos grupos de skinheads e fascistas, alguns deles chegando a ostentar tatuagens da suástica. Devo deixar clara aqui minha posição de que não aprovo nenhum desses atos de violêcia praticados contra os próprios manifestantes.
No entanto, antes de começarem as hostilidades físicas, devo dizer que percebi – como nos protestos anteriores – a expressão do que me pareceu ser uma grande quantidade de pessoas se manifestando contra as bandeiras dos partidos. Sobre isso, creio que seja um sintoma de um longo e complexo processo de crise e esgotamento da lógica da representação. Até hoje, é operante uma lógica desse tipo que divide os cidadãos entre uma pequena minoria que tem o poder de representar e uma imensa maioria que tem não mais que o poder de ser representada. Sou da opinião de que essa lógica está em cheque nessas manifestações, e que muitas pessoas que estão nas ruas têm em comum uma vontade de não serem mais representadas. Sou da opinião de que o conjunto das ações dos manifestantes expressam uma crítica (por vezes inflamada, sem fundamentos, e quase sempre não teorizada) de uma lógica e de um sistema de representatividade.
Mas para onde pode nos levar essa crise da representação? Se assumíssemos a remota possibilidade de que o que estou a dizer pode fazer algum sentido, essa seria uma pergunta difícil de responder, e creio que deveríamos começar por relembrar que se trata de um longo e complexo processo em andamento, e seria improvável que se definisse nas próximas semanas (como bradam os mais alarmados). Ir mais adiante na resposta me levaria a um reino de conjecturas do qual venho tentando escapar. Deterei-me ao invés disso em dois de muitos caminhos possíveis, buscando sobretudo apontar o caminho que não devemos trilhar.
1) O primeiro caminho, para mim, é o caminho perigoso; é o caminho defendido por setores mais violentos da Polícia Militar e pelos fascistas que incitaram a violência contra os manifestantes partidários; é o caminho que leva ao autoritarismo e ao preconceito. Entendo a motivação de muitos em vestir o branco e mostrar o amor pela sua nação, mas cabe evitar a ingenuidade nesses momentos: aos defensores desse caminho é interessante, simbolicamente, que sejamos ultranacionalistas e que nos vistamos todos de branco, pintados de verde e amarelo; é interessante para eles que cantemos o hino nacional e patriótico, e que nos comportemos como uma enorme massa organizada e pacífica; é por fim interessante, para os defensores desse caminho, a poda da diversidade e a propagação de um senso de unidade (para o qual o nacionalismo ufanista serve bem de pano de fundo, especialmente em tempos de copa e de bom futebol brasileiro em campo) que não existe na prática.
2) A opção ao primeiro caminho, e a que pretendo defender, é a opção pela auto-representação. É a opção pela defesa da diversidade e da pluralidade de pessoas, cores, crenças e ideologias nas manifestações, e do direito de cada pessoa de representar a si próprio, fazendo valer sua vontade e sua voz nas ruas – o que será um ato de cidadania enquanto respeitar vozes e vontades diversas. A crise da representação, nesse caso, nos possibilitaria perceber que a democracia em que vivemos (a democracia representativa) tem muito pouco de democrática; e que a a cidadania que estamos costumados a exercer (nas urnas) tem muito pouco de cidadã. Talvez já tenhamos mesmo começado a perceber isso, o fato é que já estamos nas ruas.
Preocupemo-nos menos, nesse momento, em apontar dedos e em criar dois lados em uma manifestação que é antes de tudo plurifacetada. Preocupemo-nos menos com a definição correta de “coxinha”. O que ficará disso tudo não são os vinte centavos a menos, e tampouco as polarizações ideológicas. Ficará ao contrário a lição de que a verdadeira política se faz nas ruas, e não entre quatro paredes, a portas fechadas; ficará a lição de que a verdadeira cidadania se exerce nas praças, e não nas urnas; ficará a lembrança de que o povo é forte e perigoso.
De resto, penso que a beleza do movimento está em sua pluralidade, e que sua efetividade política está na diversidade de estratégias de ação. É mesmo algo bem mais complexo e grandioso do que supõem as divisões simplistas entre “pacíficos” e “vândalos” ou “direitistas” e “esquerdistas”, ou ainda, símbolos maiores do moralismo: bonzinhos e malvados.

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