"Mas para que serve a riqueza?", pergunta Resende, secundando Keynes. Para reduzir o tempo dedicado ao trabalho. Nos termos de Belluzzo, formulados com o auxílio do mesmo Keynes (ecoando Marx), a economia industrial suscitou a "esperança do aumento do tempo livre desfrutado de forma enriquecedora por indivíduos autônomos", utopia negada por sociedades, porém, cada vez mais ricas", continua o jornalista.
Segundo Torres Freire, "note-se uma última coincidência essencial nos oceanos de diferenças entre Resende eBelluzzo, ou pelo menos um grande farol de suas preocupações: a ruína política no capitalismo plenamente desenvolvido ou esgotado, a depender dos autores".
Eis o artigo.
A crise de 2008 serve como ponto de fuga para dois livros acerca de um certo esgotamento do capitalismo. André Lara Resende e Luiz Gonzaga Belluzzo enfocam as perversões da sociedade consumista e os impasses do crescimento, considerado tanto inviável a longo prazo como incapaz de promover qualidade de vida.
"Por que e para que crescer são perguntas que deixaram de ser feitas. Não costumamos nos questionar sobre o óbvio", afirma André Lara Resende num dos 18 artigos recolhidos em "Os Limites do Possível: a Economia além da Conjuntura" [Portfolio, 288 págs., R$ 44,90].
O economista causou certa sensação em 2012 ao associar a dificuldade de solução da crise de 2008 ao esgotamento dos recursos naturais do planeta.
A saída menos dolorosa para a crise e seu entulho econômico maior, o excesso de dívidas, seria o crescimento econômico. Porém, dado o "limite físico do ecossistema", que "pode ter sido atingido ou está muito próximo", "não há mais como pretender que a economia mundial volte a crescer". Caso cresça, não será por muito mais tempo, pois "não há como viabilizar 7 bilhões de pessoas, com o padrão de consumo e as aspirações do mundo contemporâneo, nos limites físicos da Terra", ideias em parte baseadas no livro "The Great Disruption", do ambientalista Paul Gilding.
Esses são "os novos limites do possível", título de um artigo do livro, de janeiro de 2012, publicado como a maioria dos demais no jornal "Valor Econômico".
Resende, como se sabe, foi um dos economistas que pensaram as manhas da inflação brasileira e as bases dos planos econômicos que dariam no Real. Foi professor da PUC do Rio, serviu no governo FHC e trabalha como financista.
Os Limites do Possível dialoga enfronhada e inadvertidamente com outra obra recente, O Capital e suas Metamorfoses [ed. Unesp, 192 págs., R$ 32], de Luiz Gonzaga Belluzzo, professor titular da Unicamp, também homem público e empresário na área de educação. O livro de Belluzzo é feito de cinco ensaios baseados em aulas e textos dos anos 80 e 90, além de dois trabalhos mais conjunturais, dedicados à economia contemporânea.
Os dois livros têm como ponto de fuga a crise de 2008, a qual no entanto tratam como uma circunstância, embora grave, de processos históricos muito mais amplos. No caso de Belluzzo, como desenvolvimento último e consequente da lógica da acumulação capitalista. No caso de Resende, como inconsequências devidas à incompreensão de certo esgotamento capitalista, entre outros erros.
No livro, Resende comenta artigo do economista Robert J. Gordon que discute uma implicação ora lúgubre da teoria neoclássica do crescimento. No longo prazo, o crescimento depende dos ganhos de produtividade derivados do progresso tecnológico, avanços que nas economias ricas são agora muito menores que os registrados entre os séculos 18 e o final do 20. As economias na fronteira tecnológica tenderiam a crescer agora mais devagar.
Abismo
Ou seja, além de à beira do precipício ambiental, as economias avançadas talvez apenas possam chegar ao abismo se arrastando, se tanto, ou movidas a bolhas de consumo suicidas. A dificuldade de crescer não decorre pois da circunstância da crise de 2008, que seria mais um efeito das tentativas exageradas de anabolizar, com excesso de consumo e dívidas, economias que deram o que tinham que dar.
O crescimento, além de inviável ou esgotado, talvez também não seja mais desejável, quando não sem sentido. Resende aceita, com restrições, conclusões de estudos em voga segundo os quais a satisfação (ou a felicidade) dos indivíduos deixa de aumentar a partir de um certo nível de renda.
Por que então crescer mais? Para aumentar a renda per capita: tornar a população na média mais rica (isto é, tornar a economia mais produtiva).
"Mas para que serve a riqueza?", pergunta Resende, secundando Keynes. Para reduzir o tempo dedicado ao trabalho. Nos termos de Belluzzo, formulados com o auxílio do mesmo Keynes (ecoando Marx), a economia industrial suscitou a "esperança do aumento do tempo livre desfrutado de forma enriquecedora por indivíduos autônomos", utopia negada por sociedades, porém, cada vez mais ricas.
Porém "nunca [atualmente] se considerou tão fundamental trabalhar... e nunca se considerou tão ameaçadora a ideia de que a economia possa não crescer", comenta Resende."O mundo contemporâneo" (e não só), no entanto, não tem opinião unívoca sobre o assunto, apesar do que dá a entender, talvez por lapso, o texto do economista. Há conflito social, desculpe-se a obviedade.
Os trabalhadores franceses, por exemplo, nos anos 1990 bateram-se pelo direito à semana de 35 horas, motivo de crítica ou desprezo e chacota dos economistas padrão. Os franceses seguem uma tradição moderna, de pelo menos 250 anos, de combate pelo direito ao tempo livre ou mesmo à preguiça; pelo direito de ganhar menos e seguir uma vida mais calma, como os plantadores de batata alemães estudados pela sociologia alemã da virada do século 19 para o 20, ou como tantos socialistas.
Barbárie
Os motivos da barbárie que é negar, a bilhões de indivíduos, condições de subsistência e de realização da vida boa são tratados de modo complexo pelos autores, mas no meio do caminho os dois curiosamente se detêm na mesma pedra cheia de musgo da obra do economista Thorstein Veblen (1857-1929), sua "Teoria das Classes Ociosas" (1899) e seu conceito de "consumo conspícuo", marginalizados pela teoria econômica tradicional.
Os dois tratam das perversões da sociedade consumista, com ênfase mais "psicológica" no caso de Resende e mais "sociológica" no caso de Belluzzo, para recorrer a um resumo adjetivo precário. Como diz Resende, não é a riqueza absoluta, mas a riqueza relativa que nos importa. "Não nos basta ser apenas ricos, mas sim mais ricos que nossos pares."
Ressalte-se que os enfoques são, porém, completamente diferentes. Apesar de se declarar ex-economista na introdução de seu livro, Resende não lança fora os fundamentos padrão de sua profissão, a qual no entanto tornou-se "um campo menor da matemática aplicada" (fala da teoria macroeconômica).
Na economia de Belluzzo, trata-se de uma conversa metaheterodoxa travada por Marx e Keynes, entre outros algo menos cotados; economia e sociedade são um caldo de cultura que resulta da mesma moenda do capital, da acumulação sem sentido, o que não é um problema, mas fundamento, da economia padrão.
O Capital e suas Metamorfoses pode ser lido como uma série de razões que desmontam argumentos vulgares sobre as origens e desenvolvimento da crise de 2008: imoralidade dos financistas, mero defeito da regulação da economia, "desvirtuamento" da economia de mercado ou "descolamento" da "valorização fictícia dos estoques de riqueza em relação à geração de valor na esfera produtiva".
Nos ensaios, Belluzzo reapresenta a maquinaria conceitual de O Capital de Marx, em diálogo com problemas atuais e com autores da tradição "ortodoxa" e "heterodoxa" da economia, em especial com Keynes. Belluzzo procura mostrar congruências entre as ideias do comunista e do "fundador" da macroeconomia (Keynes) a respeito de finanças, crédito e investimento.
Por fim, note-se uma última coincidência essencial nos oceanos de diferenças entre Resende e Belluzzo, ou pelo menos um grande farol de suas preocupações: a ruína política no capitalismo plenamente desenvolvido ou esgotado, a depender dos autores.
Na visão de Belluzzo, estamos vivendo uma situação histórica em que "a ação do Estado é vista como contraproducente pelos bem-sucedidos e integrados, mas como insuficiente pelos desmobilizados e desprotegidos. Essas duas percepções convergem na direção da deslegitimização' do poder administrativo e na desvalorização da política".
Resende não é um adepto "sem mais" do capitalismo, que cria desigualdades e exclusão (no entanto mencionadas de passagem) e promove valores (privatização excessiva da vida, consumismo etc) ora incompatíveis com a valorização da vida pública e da política, os meios de dar conta das mazelas da economia de mercado.
Mas o que seria essa revalorização da vida pública? O "projeto" é tornar compatível o mundo "globalizado" com a valorização das comunidades locais, aproximar homens públicos de sua comunidades, conter de modo drástico a influência da publicidade e do marketing sobre a vida pública, influência já bastante deletéria na promoção do consumismo.
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