Por Ana Aranha
A notícia circulou ontem por todos os portais: morador de rua preso durante protestos no Rio de Janeiro foi condenado a cinco anos e dez meses em regime fechado. Rafael Braga Vieira foi preso no dia 20 de junho ao sair de uma loja abandonada no centro do Rio com uma garrafa de água sanitária, um Pinho Sol e uma vassoura.
Ele tem 26 anos, é morador de rua, negro, catador de latinhas e foi condenado por roubo duas vezes, penas que já cumpriu. Isso é tudo o que sabemos sobre Rafael.
Até agora não vimos uma foto ou entrevista com ele, com seus amigos, ou qualquer pessoa que possa nos trazer mais informações sobre Rafael. O que ele tem a dizer sobre a sua prisão? Ele estava na manifestação? Onde ele ía como o material de limpeza? Como foi tratado nos cinco meses que ficou esperando o julgamento no complexo presidiário de Japeri?
O que sabemos são fragmentos de registros oficiais. Segundo matéria da revista Carta Capital, ele disse em depoimento que foi preso quando saia da loja abandonada onde morava há um mês e onde pegara os dois frascos de limpeza. No laudo do esquadrão antibomba, a Polícia Civil apontou que os produtos tinham “ínfima possibilidade de funcionar como coquetel molotov”. Quando o caso chegou ao Ministério Público, as garrafas foram descritas pelo promotor responsável pela acusação como “material incendiário”. Até que o juiz Guilherem Schilling Pollo Duarte determinou que “uma das garrafas tinha mínima aptidão para funcionar como coquetel molotov” e condenou Rafael a quase seis anos de prisão.
O seu caso está com a Defensoria Pública do Rio, que já declarou que vai recorrer. Ele teve o apoio do grupo Anonymus, que lançou campanha nas redes sociais pela sua libertação. Não precisa ser especialista em direito para perceber que o caso está cheio de furos e cheira a bode expiatório para assustar futuras manifestações. Os ingredientes da sua condenação deveriam ser explosivos no contexto de protestos, repressão policial e perseguição a manifestantes que se instalou no Brasil desde junho. Mas quem vai sair em defesa de Rafael? Mobilização em redes sociais é uma resposta à altura do que esse caso pode representar? Por que não vemos reportagens mais profundas sobre o caso? Como ainda não há um advogado, ou uma equipe de advogados, trabalhando no caso sem cobrar?
Rafael estava esquecido há quatro meses na prisão, ainda sem julgamento, quando o primeiro repórter descobriu sua história. Foi Piero Locatelli, ele mesmo preso sob acusação parecida durante a cobertura dos protestos em São Paulo: porte de garrafas suspeitas. No caso de Piero, vinagre. Como repórter da revista Carta Capital, ele teve o apoio de advogado e dos próprios veículos de comunicação, que circularam rapidamente a informação sobre a arbitrariedade de sua prisão. Mas, como o próprio repórter escreveu no seu relato sobre a prisão, ele não era o único e muitos outros ficaram na delegacia depois que ele foi liberado.
Desde junho, os abusos e ilegalidades cometidos pela Polícia Militar durante os protestos foram repetidamente flagrados, registrados e publicados. Tanto que parte da população parece ter naturalizado a “essência violenta” da instituição (a outra parte, que mora nas periferias, já convivia com essa face da PM há muito tempo).
A repressão violenta a manifestações deveria ser, em si, algo inaceitável em um país democrático, mas o caso de Rafael tem um elemento ainda mais surreal: nós sequer sabemos se ele fazia parte do protesto. Marcos Romão, no site Mamapres, lembrou das similaridades com o personagem de Charles Chaplin em “Tempos Modernos”. Desempregado e vagando pelas ruas depois de sair da prisão, Carlitos pega uma bandeira caída no chão. No mesmo minuto, uma manifestação toma a rua e ele é preso pela polícia, considerado líder do protesto.
Carlitos representava as incoerências e injustiças da sociedade de 1936. Rafael é a prova de que as coisas não mudaram tanto desde então. A nossa reação ao seu caso será a medida de quanto o Brasil pode mudar nos próximos anos.
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