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domingo, 26 de junho de 2011

Meias polícias no Brasil: as raízes históricas da ausência do ciclo completo de polícia no Brasil e suas consequências



Analisam-se as razões históricas que produziram o modelo de polícia vigente no Brasil, constituído basicamente por duas grandes polícias estaduais: a Polícia Militar e a Polícia Civil.
RESUMO: O presente artigo visa analisar as razões históricas que produziram o modelo de polícia vigente no Brasil, constituído basicamente por duas grandes polícias estaduais: a Polícia Militar e a Polícia Civil. Pretende-se também verificar as consequências deste modelo à sociedade brasileira.
PALAVRAS-CHAVE: Polícia Militar – Polícia Civil – Revolução de 1964 – Ciclo Completo de Polícia - Eficiência

1 – INTRODUÇÃO

Com o advento da Proclamação da República em 1889, e a promulgação do Decreto n. 01, a União deu competência ao governo dos Estados para que atuassem na manutenção da ordem e na segurança pública, defesa e garantia da liberdade dos cidadãos. Segundo o artigo 8°, do decreto em comento, as províncias possuíam o direito de decretar a organização de uma guarda cívica. A organização compreendia não somente a instituição, mas também o direito de regulamentar a força pública sob todos os aspectos.
Posteriormente, a Constituição Federal de 1934 retrocedeu, e centralizou o controle das forças policiais em torno do poder da União. Segundo o artigo 5°, tratava-se de competência privativa da União legislar sobre a organização, instrução, justiça e garantias das forças policiais dos Estados e condições gerais de sua utilização em caso de mobilização ou de guerra.
Após este fato, foram pequenas as mudanças que ocorreram na estrutura das polícias estaduais até a década de 60. Entretanto, após 1964 uma nova onda de mudanças marcou as forças policiais do país.
Uma análise aprofundada deste período é feita por Martha K. Huggins, na obra Polícia e Política: relações Estados Unidos/ América Latina, adotada como referencial teórico para este trabalho.

2 – A REVOLUÇÃO DE 1964 E SUA INFLUÊNCIA NO MODELO POLICIAL BRASILEIRO

A principal mudança se constituiu no comando das polícias militares, que passou a ser exercido por oficiais do exército brasileiro. Extremamente danoso para a sociedade tal fato configurou uma atenção maior das polícias às matérias atinentes à defesa interna e segurança nacional, em detrimento da missão precípua dos órgãos policiais que é a segurança pública. Marcineiro (2009) afirma ainda que esta foi uma era em que as polícias seriam consideradas braços visíveis do poder ditatorial.
A ingerência do exército nas instituições policiais foi grande, entretanto, interesses internacionais também fizeram com que as polícias fossem afastadas da população e agissem sob outras diretrizes.
A influência norte-americana na difusão de ideologias, através da OPS – Office of Public Safety-, Seção de Segurança Pública em português, configura-se como um divisor de águas nas mudanças que se sedimentaram nas polícias brasileiras. Isso ocorre em virtude da guerra ideológica travada no mundo bipolar, pelos Estados Unidos e a União Soviética.
A ideia desenvolvida por intelectuais norte-americanos de que em países em desenvolvimento industrial haveria mais condições para o surgimento do comunismo, gerou estratégias para uma solução que impedisse o avanço comunista e possibilitasse o contínuo desenvolvimento.
A solução encontrada pelos estudiosos foi trabalhar na antiinsurreição, contra a guerrilha e o terrorismo. A doutrina americana difundia a teoria de que as medidas militares por si só não seriam eficazes no combate aos guerrilheiros comunistas. A aspiração norte-americana era tornar as polícias estrangeiras linhas de defesa contra o terrorismo.
Em âmbito internacional a OPS servia como fachada para que agentes da CIA – Central Intelligence Agency - ministrassem cursos aos policiais estrangeiros. Os cursos tinham duração de algumas semanas.
O objetivo dos cursos era ensinar "técnicas de vigilância e coleta de informações, procedimentos de interrogatório, métodos de realização de batidas, e controle de motins e de multidões" (HUGGINS, 1998, p. 129). Alguns cursos eram ministrados em território americano, porém a maior parte do assessoramento ocorria nos países de origem dos policiais.
Na verdade se pretendia que com os cursos ministrados os policiais fossem capazes de identificar e neutralizar manifestações, desordens, motins, enfim, detectar atividades de militantes subversivos.
No Brasil, por exemplo, foi ministrado um curso um ano após a revolução de 64, no Estado do Paraná, e contou com a presença de Delegados de Polícia e Oficiais Superiores da Polícia Militar, sobre o desenvolvimento da insurreição no Vietnã do Sul e as operações contra ela.
O controle das polícias, que no Brasil já possuía a característica de ser fortemente centralizado, foi ainda mais endurecido. Em março de 1967, o Decreto-Lei 317, submeteu as polícias militares ao comando de oficiais do exército brasileiro, conforme já mencionado. Por trás dessas ações estavam os consultores da OPS, que ajudaram a redigir e implementar a lei, com o intento de centralizar o sistema policial brasileiro, para torná-lo mais eficaz contra a subversão, afastando-o das influências estaduais e dos assuntos locais.
O exército desejava o controle das Polícias Militares, com receio de que acontecessem fatos assemelhados àqueles que ocorreram, quando em 1964 os Governadores da Guanabara e Minas Gerais puseram suas tropas de segurança às ruas a serviço dos opositores de João Goulart. As forças policiais eram importantes demais para que se corresse o risco de serem controladas pelos opositores do regime.
O decreto-lei 317 delimitou e restringiu a competência das polícias militares e civis. Após o seu advento os policiais militares passaram a exercer o policiamento ostensivo preventivo e repressivo nas ruas, enquanto que os civis ficaram com as investigações criminais. Anteriormente as competências não estavam tão bem delimitadas.
Desde o início da implementação de forças de segurança no Brasil, sempre se optou por um modelo militar, calcado em disciplina e hierarquia, com forte atrelamento à força armada terrestre.
Este modelo, importado como se viu da pátria mãe Portugal, é francês. No Brasil, assim como na França serviu para fins políticos. A dificuldade brasileira foi ainda maior do que a francesa em garantir a unidade territorial de um Estado continental. Não se pode desprezar a grande vantagem que o modelo policial militar legou à sociedade brasileira, na garantia de unidade nacional e na defesa territorial. Contudo isso também é reflexo de forças armadas deficientes.
Ademais, defender a tese de que foram os militares durante o período ditatorial que transformaram a Polícia Militar numa instituição essencialmente militar é uma inverdade. Em muitos momentos da história brasileira as forças estaduais atuaram como exércitos e possuíam esta vocação mesmo antes da Revolução de 1964.
Para dirimir qualquer dúvida, basta lembrar a Revolução Constitucionalista de 1932, na qual a Força Pública do Estado de São Paulo lutou contra as Forças Armadas e demais forças policiais do Brasil. Bastos Júnior (2006) assim a descreve o conflito:
Denominada Revolução Constitucionalista eclodiu em São Paulo, no dia 9 de julho de 1932, e terminou em 2 de outubro do mesmo ano, com a capitulação dos rebeldes. Apesar de relativamente curto, o conflito foi considerado, pela intensidade da ação, meios utilizados e elevadas perdas humanas, o maior confronto militar do Brasil no século XX.
O fato é que as alterações decorrentes da Revolução de 1964 transformaram as instituições policiais do país. É possível afirmar que os policiais militares foram afastados da população. Passaram a ver os cidadãos como inimigos em potencial. A atuação passou a ser primordialmente no campo da defesa do Estado em detrimento da defesa do cidadão.

3 – A REALIDADE ATUAL: "MEIAS POLÍCIAS"

O regime militar fez mais do que afastar os policiais militares das comunidades. Criou divisões profundas entre as polícias civil e militar. Razão pela qual passou a existir no Brasil duas grandes "meias polícias".
A Polícia Militar é uma polícia ostensiva. Atua fardada, possui viaturas caracterizadas e é eminentemente preventiva. Ela caracteriza-se também por ser administrativa. A polícia civil, por outro lado é judiciária, tem como característica principal o fato de atuar no pós-delito, constituindo-se em uma polícia repressiva.
Embora possua um caráter específico de prevenção, não se pode dizer que a polícia administrativa não age repressivamente. Quem tem competência para preservar, também pode restaurar. Esta é a diferença fundamental entre a polícia administrativa e a polícia judiciária. A ocorrência do ilícito penal é um fator de divisão de competências (LAZZARINI, 2003, p. 193). Obviamente, que como já mencionado, a instituição policial militar, de caráter administrativo, não se quedará inerte, frente ao cometimento de um Ilícito penal. Poderá sim agir repressivamente, efetuar prisões em flagrante e garantir a restauração da ordem pública. Contudo, a investigação criminal é exclusiva da Polícia Judiciária.
A existência destas duas polícias atuando desta forma é um problema. Em pesquisa realizada na obra do escritor inglês David H. Bayley, que se dedica a estudar modelos e padrões de polícia pelo mundo não foi possível encontrar modelo semelhante de divisão de funções em outros países. O desperdício de recursos financeiros, humanos e materiais é de uma ineficiência administrativa incomensurável.
Talvez para os desígnios que o sistema foi pensado, num período de cerceamento de liberdades, no qual a comunidade via a polícia não como uma aliada, mas como um braço opressor do regime, tal divisão fizesse sentido. Com uma verdadeira tropa de choque nas ruas para dispersar qualquer forma de reunião popular e uma polícia cartorária para interrogar e acumular informações.
Hoje, a sociedade espera que a polícia seja capaz de atender às suas demandas. O cidadão que teve algum bem subtraído não espera que uma polícia venha à sua casa, constate que se trata de uma situação de pós-delito e encaminhe esse cidadão à outra polícia para que esta tome as providências cabíveis ao caso. É um contra-censo para qualquer pessoa.
O ciclo completo de polícia permitiria que ambas as instituições policiais fizessem a investigação do fato ilícito, atuassem na repressão e tivessem informações necessárias para um bom trabalho preventivo. Isso permitiria que o Ministério Público, titular da ação penal nas ações públicas incondicionadas, sempre tivesse boas informações e condições para a deflagração das ações penais.
A ausência do ciclo completo de polícia causa a perda de informações sobre o crime durante o processo moroso e desgastante da efetiva prisão ao deslocamento para a condução do infrator e entrega à polícia civil.
Há contudo, quem defenda a manutenção do status quo atual, sob a alegação de que os delegados de polícia atuam como fiscais e realizam filtros na atuação policial, por se tratarem de operadores do direito, portanto detentores de um arcabouço jurídico.
Tal argumento não merece prosperar, pois atos de violência praticados contra a população não são exclusivos dos militares, em geral, as corregedorias da Polícia Civil estão tão cheias de procedimentos quanto as corregedorias militares.
O foco da análise do ciclo completo de polícia deve ser a sua capacidade de melhorar os processos sistemáticos, dotando-os de melhores ferramentas e informações para a realização de um policiamento amplo e eficaz à comunidade.
Ademais, o modelo vigente, conforme já comprovado, ganhou força durante o período ditatorial. Desta forma, a alegação de que este padrão é de defesa dos cidadãos contra arbitrariedades não merece prosperar. Convém citar Huggins (1998, p. 153):
De acordo com a Lei 317, o secretário de Segurança Pública de cada estado deveria esclarecer e restringir as jurisdições das duas principais forças policiais estaduais. A Polícia Militar seria responsável por todo o policiamento de rua, uniformizado e ostensivo, o que constituía seu papel tradicional. Foi reduzido o controle da Polícia Civil não uniformizada sobre certos aspectos do policiamento de rua, particularmente suas operações de radio-patrulha. Contudo, a ela cabia a responsabilidade exclusiva pelas investigações criminais post-facto, uma de suas atribuições tradicionais, ainda que às vezes também realizada pela Polícia Militar estadual.
Há ainda aqueles que pensam que defender um ciclo completo de polícia é o mesmo que defender uma polícia unificada. Não há problema algum na manutenção de dois órgãos policiais. Em diversos países existe mais de uma instituição policial. Em alguns, aos moldes de nossa polícia, como é o caso da Itália com uma gendarmeria - oscarabinieiri - e uma guarda civil. O que diferem do modelo adotado no Brasil é que ambas possuem ciclo completo de polícia. Possuir mais de uma instituição policial é algo democrático, como Dominique Monjardet (2002, p. 294) ensina:
[...] os riscos inerentes à detenção da força são diminuídos quando ela é dividida, e é portanto de boa precaução democrática cingir a polícia em vários aparatos distintos, de modo que, se um deles falhar, sempre se possa dispor do outro: quando um cortejo de policiais se dirige ao Élisée, depois de ter insultado um ministro da Justiça, é útil ter gendarmes para prendê-los. Quando os gendarmes se recusam a isso, o poder literalmente teme. Além disso, se a polícia é dividida, cada fração é menos complexa e, portanto, mais fácil de dirigir.
Ademais, optar por uma única polícia implicaria em definir o modelo de polícia. Militar ou Civil? No Estado de São Paulo já se cogitou tal medida, o modelo definido seria o civil.
Balestreri (2003, p. 99) questiona sobre as mudanças que esse modelo de polícia única traria. Segundo ele este modelo único "mudaria exatamente o que? Talvez menos hierarquia, menos controle e a mesma violência ou pior, uma vez que a Ouvidoria, em São Paulo, também estava abarrotada de denúncias contra a Polícia Civil".

4 – CONCLUSÃO

A divisão que a revolução de 1964 trouxe aos órgãos de polícia estaduais serviu a um período da história brasileira, porém atualmente tem se transformado em óbice à realização de um trabalho com eficiência.
O ciclo completo de polícia para ambas as instituições policiais não seria a redenção para os desafios que a segurança pública brasileira vem enfrentando, contudo certamente traria avanços para uma melhora do serviço prestado, com economia de tempo, recursos humanos e financeiros.
O que se sabe por ora é que o atual modelo não é eficiente, fosse assim, certamente outros países estariam interessados no estudo e implemento do modelo brasileiro de polícia, que ante o pesquisado não encontra precedentes no mundo.

REFERÊNCIAS

BALESTRERI, Ricardo Brisola. Direitos Humanos: coisa de polícia. Passo Fundo: Paster Editora, 1998.
BASTOS JÚNIOR, Edmundo José de. Polícia Militar de Santa Catarina: história e histórias. Florianópolis: Garapuvu, 2006.
BAYLEY, David H. Padrões de Policiamento: uma análise internacional comparativa.São Paulo: Edusp, 2002.
BRASIL. Constituição (1934). Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Constitui%C3%A7ao34.htm>. Acesso em: 17 jul. 2010.
BRASIL. Decreto n° 1, 15 de novembro de 1889. Proclama provisoriamente e decreta como forma de governo da Nação Brasileira a República Federativa, e estabelece as normas pelas quais se devem reger os Estados Federais. Disponível em: <http://www6.senado.gov.br/legislacao/ListaPublicacoes.action?id=91696>. Acesso em: 15 jul. 2010.
HUGGINS, Martha K. Polícia e Política: relações Estados Unidos/ América Latina. São Paulo: Cortez, 1998.
MARCINEIRO, Nazareno. Polícia Comunitária: Construindo segurança nas comunidades. Florianópolis: Insular, 2009.
MONJARDET, Dominique. O que faz a Polícia. São Paulo: Edusp. 2002.

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