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quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

Alexander Bickel e o ano do Supremo Tribunal Federal


CONSTITUIÇÃO E PODER



Ao findar o ano, os analistas da grande mídia são unânimes ao afirmar que 2012 foi o ano do Judiciário. Melhor diriam se afirmassem que este foi o ano do Supremo Tribunal Federal. Pesquisa ainda hoje divulgada pelo UOL dá-nos conta de que o STF tem mais confiança da população do que o Congresso e, mais ainda, tem a preferência popular mesmo diante do próprio Poder Judiciário, fazendo acentuar a impressão algo inusitada de que o Supremo, órgão de cúpula do Poder Judiciário, não compõe a estrutura desse Poder. É bem verdade que, nos dias que correm, não se pode censurar o leigo se não enxergar no STF um órgão do Poder Judiciário, pelo menos no sentido que tradicionalmente esse Poder tem se caracterizado. O STF tem hoje, como atestam muitos especialistas, críticos e defensores, uma conformação única no mundo, revelando poderes e atribuições que, dificilmente, uma Corte Constitucional e muito menos um órgão do Poder Judiciário, no modelo tradicional, sonhariam exercitar.

É certo que, no âmbito do Direito Comparado, muitas das funções hoje desempenhadas por nossa Corte Suprema são também desenvolvidas em outras experiências jurídicas, que, diga-se de passagem, são anteriores à nossa e, em boa parte, nos serviram de inspiração. Portanto, não seria difícil demonstrar, no confronto de uma ou outra competência, quando considerada individualmente, que o STF não inova ao exercitar esses poderes. Contudo, o que destaca e que faz do STF um caso único é a atribuição de tantos poderes e funções a um único órgão e, mais do que isso, a extensão e a profundidade com que o Supremo vem se desincumbindo de tão extraordinárias competências.
Para ficar em exemplo objetivamente indiscutível, tome-se o do sistema misto de controle de constitucionalidade hoje existente no Brasil, que confere ao Supremo tanto as prerrogativas e poderes do sistema norte-americano (de perfil mais difuso e concreto) como as competências próprias do sistema europeu-ocidental (de perfil mais concentrado e abstrato). Aqui, não é apenas o fato de que o Supremo abarca umas e outras atribuições. Além disso, cumpre-as, como se disse, com extensão e profundidade não experimentadas em nenhum lado do Atlântico.
É muito cedo para julgarmos as virtudes ou distorções de um tal modelo. Além disso, é um consenso entre os historiadores que os atores e, sobretudo, os protagonistas de eventos históricos, dificilmente, revelam capacidade e desprendimento suficientes para julgar, com alguma objetividade, a sua própria história. De outro lado, cuidando-se de fatos e interesses que lhes dizem respeito, nem sempre os homens julgam os atos e decisões tomadas a seu tempo com os mesmos olhos que enxergarão, no futuro, as suas consequências.
Costumeiramente, na História da Humanidade, decisões que foram, no passado, saudadas de forma fervorosa são, em futuro não muito distante, intensamente criticadas, sobretudo, quando consideradas à luz de suas consequências (muitas vezes só reveladas quando é impossível revertê-las). A História também tem presenciado o contrário: decisões histericamente criticadas no momento em que são tomadas acabam, no futuro, mais uma vez, à luz de suas consequências, dando razão àqueles que tiveram a coragem de as produzir.
Nada obstante, o fato é que, ao observar o momento vivido pelo Supremo Tribunal Federal, há quem veja razões para júbilo e quem contraponha críticas acerbas e honestamente sentidas. Provavelmente, ambos os lados tenham razão.
Em sua obra seminal, “The Least Dangerous Branch”, Alexander Bickel [1], em tese mundialmente conhecida, alertava para dois aspectos do “judicial review” (a doutrina segundo a qual o Poder Judiciário deve ter a prerrogativa de anular os atos dos outros Poderes): (1) de um lado, o fato de que esse poder (supostamente “menos perigoso” que os demais) seria exercido sempre sob o influxo e ameaça daquilo que Bickel designou como “dificuldade contramajoritária” (the countermajoritarian difficulty), que consistiria na considerável oposição, suposta em qualquer Democracia, à possibilidade de o Judiciário ter a prerrogativa de anular atos dos demais Poderes (Executivo e Legislativo), que têm legitimidade democrática, sobretudo, na medida em que ele mesmo, Poder Judiciário, não se submete ao regime de Accountability, isto é, os membros do Poder Judiciário não submetem seus cargos ao crivo das eleições; e (2) de outro lado, para compensar ou enfrentar essa dificuldade contramajoritária, Bickel defendeu o que chamou de "virtudes passivas" (passive virtues) na atuação do Poder Judiciário, de ordem a evitar, especialmente, quando se cuidasse de anular atos dos outros Poderes soberanos, desnecessárias decisões com fundamentos e substância constitucional (normalmente, de característica política).
Essa doutrina, que Bickel enxergava como manifestação de prudência, virtude essencial ao Poder Judicial, instruía os Tribunais a evitarem pronunciar-se sobre uma questão com fundamentos constitucionais, quando existissem suficientes fundamentos não-constitucionais (infraconstitucionais) aptos a justificar a sua decisão. Em síntese, Bickel aconselhava os Tribunais a evitarem transformar conflitos jurídicos em conflitos políticos e constitucionais.
Entre as muitas justificativas para essa doutrina, Bickel buscava proteger a legitimidade das decisões do Poder Judiciário, pois, ele temia que uma cotidiana e permanente intervenção do Poder Judiciário em matérias de natureza política viesse, a médio ou em longo prazo, subtrair a “legitimidade” e a “credibilidade” de suas decisões. Longe, pois, de preocupar-se com a simples proteção das prerrogativas do Poder Legislativo ou Executivo, a doutrina estava voltada a garantir a “importância primordial de adjudicação constitucional”, especialmente, diante de seu "carácter definitivo e delicado". Como ironicamente teria sugerido o Justice Brandeis, em famosa brincadeira, cuidando-se de conflitos políticos, "a coisa mais importante que fazemos é 'não fazer'" [2].
Em síntese, a doutrina de Alexander Bickel, considerado por muitos o maior constitucionalista de sua geração (é o julgamento, por exemplo, de John Hart Ely), aconselhava o Poder Judiciário a garantir e defender a ordem jurídica, mas sem envolver-se, desnecessariamente, em conflitos de natureza política.
Como se sabe, no Brasil, tem-se lembrado com frequência da idéia de Bickel de que o Poder Judiciário é um poder contramajoritário. Contudo, o que na teoria original era uma “dificuldade”, aqui foi convertido em “virtude”. Não é incomum, de fato, sermos confrontados com teóricos e mesmo magistrados a regozijarem-se com o fato de o Poder Judiciário brasileiro, frequentemente, não apenas anular atos dos demais Poderes, mas até mesmo substituí-los em produção normativa. Em verdade, a linha divisória do legislador negativo (o Rubicão kelseniano) foi há algum tempo ultrapassada em terras de Macunaíma. Nesse quadro, aliás, as “virtudes passivas” do Judiciário são quase sempre esquecidas. Vivemos no Brasil, com orgulho, pelo que noticia a grande imprensa, o apogeu do ativismo judicial. A pergunta que incomoda, contudo, os mais precavidos (alguns diriam “os medrosos”) e que, tenho que confessar, me faço permanentemente é a seguinte: “dará certo?”.
Sendo convidado a falar sobre o futuro, Max Weber, esse gênio que sempre fará falta a seus pósteros, advertia em famoso escrito que “a cátedra não existe nem para os demagogos nem para os profetas”. Se a fórmula brasileira, portanto, capitaneada pelo Supremo Tribunal Federal e os doutrinadores que a defendem, terá sucesso, ou não, é um juízo que só o tempo, esse, sim, senhor de toda a Razão, poderá proferir.
[1] Alexander Bickel.  The Last Dangerous Branch: The Supreme COurt at the Bar of Politics. N. York: Vail-Ballou Press 2d ed. 1986
[2] Ver Jonathan S. Carter. Passive Virtues Versus Aggressive Litigants: The Prudence of Avoiding a Constitutional Decision in Snyder v. Phelps, in http://www.nclawreview.org/2010/03/passive-virtues-versus-aggressive-litigants-the-prudence-of-avoiding-a-constitutional-decision-in-snyder-v-phelps/, acesso em 23.01
Néviton Guedes é desembargador federal do TRF da 1ª Região e doutor em Direito pela Universidade de Coimbra.
Revista Consultor Jurídico

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