Aprovado na Câmara, texto que prevê hospitalização forçada de dependentes sem intervenção da Justiça pode congestionar serviço no estado, que já opera além do limite de sua capacidade
Valquiria Lopes - Jornal Estado de Minas
Segundo autor da proposta, principal alvo são usuários de crack que perderam referências familiares e passam dias nas ruas usando a droga, sem perspectiva de recuperação ou de trabalho |
Vencida a primeira etapa para transformar em lei o Projeto 7.663/10, que trata da internação de dependentes de crack em todo o país, especialistas acostumados a lidar com os pedidos de hospitalização já preveem uma corrida por internações que a rede de saúde em Minas não teria condições de atender. A proposta, aprovada pela Câmara dos Deputados, autoriza a internação involuntária de usuários de crack e outras drogas mediante laudo médico – o que hoje não ocorre no estado. Nesse caso, o pedido pode ser feito pela família, por servidores públicos das áreas da saúde e assistência social ou de órgãos integrantes do Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (Sisnad), sem passar pela Justiça. Atualmente, em território mineiro só há internação de usuários, principalmente da pedra, por determinação judicial, a chamada compulsória. Mesmo com essa restrição, o serviço trabalha com 100% de ocupação nos 1,4 mil leitos destinados a receber pacientes dependentes químicos e de saúde mental, para desintoxicação e estabilização clínica – média inferior a duas vagas por município.
“Para atender a demanda que será criada com as internações involuntárias, o estado precisará se organizar, porque hoje a rede está aquém da necessidade de atendimento. É preciso aparelhamento, qualificação de pessoal, construção de unidades e abertura de concurso para contratação de profissionais”, defende o coordenador do Núcleo de Saúde da Defensoria Pública de Minas Gerais, Bruno Barcala. Segundo ele, ainda não há como prever o impacto da mudança na procura pela internação, mas o crescimento é uma certeza. Dados da Subsecretaria de Políticas sobre Drogas, órgão ligado à Secretaria de Estado de Esportes, mostram que 10% da população brasileira é dependente de álcool e outras drogas. Em Minas, cerca de um milhão de pessoas têm problemas com substâncias lícitas ou ilícitas, o que, porém, não significa que todos precisem de internação.
Apesar de traçar um cenário preocupante devido à falta de vagas no estado, o defensor público prevê uma repercussão positiva com a aprovação do projeto, que ainda deverá passar por votação no Senado. Para ele, as regras fixadas na proposta vão facilitar o acesso dos dependentes químicos ao tratamento. “Não defendo a internação contra a vontade do dependente, mas há casos em que ela é necessária. Permitir a hospitalização sem passar pela Justiça significa ampliar as chances de conseguir o atendimento”, diz. Na Defensoria Pública, 117 pedidos de internação compulsória foram levados à Justiça no ano passado. Em 2013, até ontem, já foram 64. Segundo Barcala, somente entre 30% e 40% das ações propostas são deferidas. “A sanção da lei criará fluxos e estabelecerá regras para a internação”, destaca.
Pela proposta de lei, de autoria do deputado e médico Osmar Terra (PMDB/RS), o prazo máximo para a pessoa ficar hospitalizada é de 90 dias. Atualmente, não há uma regra para a permanência. Há casos em que o paciente é mantido nessa modalidade de tratamento por 15 dias, enquanto outros passam de oito meses como internos.
O projeto estabelece que a internação involuntária não deve ultrapassar os três meses, diferentemente da versão anterior do texto, que previa tempo máximo de 180 dias. O processo dependerá de avaliação sobre o tipo de droga consumida, o padrão de uso e da comprovação da impossibilidade de outras opções terapêuticas. A família pode pedir a interrupção do tratamento a qualquer momento. Todas as internações e altas deverão ser informadas ao Ministério Público, à Defensoria Pública e a outros órgãos de fiscalização do Sisnad em até 72 horas. As informações permanecem em sigilo.
Leitos
Há duas semanas, a Secretaria de Estado de Saúde confirmou a falta de leitos para atender a demanda por internação compulsória e informou não haver solução imediata para o problema. “O estado tem encontrado dificuldades, porque o Ministério da Saúde não autoriza a abertura de leitos”, explicou a coordenadora estadual de Saúde Mental, Tanit Sarnur. Segundo ela, a situação é agravada ainda pelas decisões judiciais, que estipulam períodos de internação independentemente da avaliação médica.
Mais otimista que a defensoria, o subsecretário de Políticas sobre Drogas, Cloves Benevides, acredita ainda não ser possível prever aumento na demanda por internação de dependentes. Ele explica ainda que a procura pela internação por via judicial passará a ser regulada, após a aprovação da lei, por decisão médica, com prazo limite e objetivo estabelecido. Além dos 1,4 mil leitos psiquiátricos e em hospitais gerais para atendimento de emergências ligadas ao uso de drogas, o estado conta com 1,6 mil vagas para tratamento secundário em 31 instituições parceiras. Outras 32 entidades estão em processo de credenciamento. Para 2014, segundo o subsecretário, R$ 490 milhões serão investidos na implantação de 400 leitos e ampliação da rede de atendimento psicossocial. O pagamento das internações será dividido entre União, estados e municípios.
Fluxo
Também coordenador do Fórum Brasileiro de Gestores de Políticas sobre Drogas, Benevides explica que a transformação do projeto em lei poderia culminar em uma nova estratégia de atendimento, inclusive facilitando o acolhimento dos dependentes. Para o subsecretário, a internação involuntária será voltada especificamente para quadros de estabilização clínica e desintoxicação, o que é um avanço, porque hoje a hospitalização involuntária é feita de maneira inadequada.
O autor do projeto, deputado Osmar Terra (PMDB/RS), afirmou ao site da Câmara que a proposta é voltada para usuários que não têm condições de se reabilitar. “São pessoas que não têm família, dormem nas ruas, perderam tudo e não conseguem trabalhar, vivendo apenas esperando os próximos 15 minutos para usar a droga.”
O que diz a lei
Lei Federal 10. 216/01, em relação às internações (artigo 6)
Voluntária: aquela que se dá com o consentimento do usuário
Involuntária: ocorre sem o consentimento do usuário e a pedido de terceiros (por não ser obrigatória, não é praticada em Minas)
Compulsória: determinada pela Justiça, com exigência de laudo médico
Projeto de Lei 7.663/2010, em relação às internações (artigo 23-A)
Passa a obrigar o Sistema Único de Saúde a internar usuários
de crack e outras drogas involuntariamente, nos seguintes moldes:
A hospitalização deve ser precedida da elaboração de documento que formalize a vontade do familiar que solicita a internação e de laudo médico
O término ocorrerá por determinação do médico responsável ou por solicitação escrita de familiar ou responsável legal
Nas internações voluntárias e compulsórias
Voluntária: deve ser precedida da elaboração de documento que formalize a vontade da pessoa que optou pelo tratamento
Compulsória: é determinada, de acordo com a legislação vigente, pelo juiz competente
Enquanto isso...
...Vagas reservadas para dependentes
O Projeto de Lei 7.663/10 tornou-se mais conhecido por concentrar esforços na internação involuntária de dependentes químicos, mas estabelece também a reinserção social dos usuários. Segundo o texto, todas as obras públicas brasileiras que tenham mais de 30 trabalhadores deverão reservar 3% das vagas para pessoas que passaram por tratamento de combate à dependência química. Outra determinação é que as instituições do chamado Sistema S (Senai, Senac, Sesi e Sesc) colaborem para o treinamento dessas pessoas. A lei traz também como inovação a dedução de Imposto de Renda para empresas e pessoas físicas que investirem em prevenção e tratamento da dependência química. Em Minas, mais de 12 mil usuários de drogas passam pelas diversas modalidades de tratamento da dependência.
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