Professora e psicóloga à frente da ONG Tortura Nunca Mais, Cecília Coimbra destaca a vigência da violência naturalizada durante a Ditadura Militar, mas que sempre fez parte da historiografia do país
Por: Ricardo Machado e Andriolli Costa
Em 1º de abril de 2014, o Brasil relembra os 50 anos do Golpe que deu início a um dos períodos mais conturbados da história do país: a Ditadura Militar. Durante os mais de 20 anos que se seguiram à tomada de poder, o Brasil sofreu com a perda das liberdades individuais, com a repressão violenta às manifestações democráticas, com torturas e assassinatos justificados pela segurança contra um suposto inimigo comum: os “comunistas”.
Para a psicóloga, militante e coordenadora da ONG Tortura Nunca Mais, Cecília Coimbra, existem vários motivos para “desomenagear” este momento. Para ela, a Ditadura Militar provocou efeitos marcantes que ainda hoje permeiam a sociedade brasileira: o obscurantismo de parte de nossa história, a criação da figura dos “desaparecidos”, a naturalização dos autos de resistência e a banalização da tortura. No entanto, ainda que nela tenha sido refinada e naturalizada, a violência institucionalizada não foi invenção da ditadura, mas faz parte de um contexto que sempre permeou a história do país.
“A história do Brasil é a história da tortura”, pontua a professora, em entrevista por telefone à IHU On-Line. “Carregamos em nossa história mais de 300 anos de escravidão, em que o negro é tratado como mercadoria. Isso gera um contexto em que certas pessoas não são humanas. Certas pessoas precisam ser tratadas de forma diferente, e para elas vale tudo.” Durante a ditadura, esses párias sociais eram os “comunistas” ou “terroristas”, para os quais a tortura era mais do que justificada em nome da “segurança” dos demais. Hoje, como vemos nos inúmeros casos de justiceiros que assolam o país, estes párias são os pobres, os favelizados e os “criminosos”.
Militante do Partido Comunista Brasileiro, Cecília Coimbra era estudante do curso de História. Mais tarde, já professora, aproximou-se do Movimento Revolucionário 8 de Outubro – MR8 e iniciou a graduação em Psicologia na Universidade Gama Filho. Na mesma área, concluiu em seguida mestrado (Fundação Getúlio Vargas) e doutorado (USP). Seu pós-doutorado, também na USP, foi em Ciência Política. Atualmente é professora aposentada, porém mantendo vínculo com o Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal Fluminense - UFF. Interessada no nexo que une a psicologia à ditadura, afirma que não se trata de acaso o fato desta ciência e da psicanálise terem se desenvolvido tanto em nosso país no período autoritário. Ex-integrante do Conselho Regional de Psicologia, foi presidente da Comissão Nacional de Direitos Humanos do Conselho Federal de Psicologia. À frente do Tortura Nunca Mais, trava batalha incessante em nome da verdade e da memória de um período sombrio de nossa história.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Em que medida e como as práticas policiais contemporâneas refletem a herança ditatorial do regime militar?
Cecília Coimbra – Após 50 anos, estamos desomenageando hoje o Golpe Militar muito em função do fato de ele não ter sido só uma lembrança triste da nossa história, com a implantação da tortura como instrumento oficial do Estado brasileiro. É principalmente para pensar os efeitos que aqueles mais de 20 anos de ditadura civil-militar produziram na sociedade brasileira. Entre estes, podemos colocar o desconhecimento da nossa história. Até hoje não sabemos efetivamente o que aconteceu nesse período — nem mesmo nós, que sobrevivemos, que estivemos presos, que fomos testemunhas de tortura e da morte de alguns companheiros. Essa história ainda não foi contada, pelo menos não oficialmente. Temos hoje funcionando uma Comissão Nacional da verdade que, para nós, é extremamente limitada. No Tortura nunca mais, no Rio de Janeiro, fazemos uma análise dos efeitos nefastos que a Comissão Nacional da Verdade está produzindo atualmente. Os acordos foram feitos, e sabemos que essa história só será contada até certa parte — digamos, até a página três. A partir daí, em nome de uma pseudogovernabilidade, os acordos não permitem que se saiba o que aconteceu.
Desaparecidos
O segundo grande efeito são os dispositivos que a ditadura inventou e sofisticou e que hoje continuam sendo aplicados na população pobre. Naqueles que se dizem diferentes, naqueles caracterizados hoje como vândalos ou baderneiros. Que dispositivos seriam esses? Bem, a ditadura brasileira inventou uma figura nefasta: a do desaparecido. Esta figura veio da Guerra da Argélia, e a ditadura inaugura isso na história brasileira. Mais do que isso, a partir da década de 1970 ela também a exporta para os demais países latino-americanos. Tanto que teremos na Argentina mais de 30 mil desaparecidos.
Esta é uma figura das mais perversas, porque a família continua sendo torturada cotidianamente. Como o Estado não assume que perdeu ou que matou, a pessoa fica ‘pairando no ar’. Não está em lugar nenhum. Essa figura hoje ainda é muito utilizada. No Rio de Janeiro temos, nos últimos cinco anos, quase 10 mil desaparecidos. Isso é uma coisa escandalosa que acontece em nosso cotidiano. A grande maioria dos desaparecidos é das populações mais pobres, e são justamente agentes do Estado que produzem esse desaparecimento. Por isso até hoje não temos um número exato de desaparecidos em nossa assim dita democracia.
Autos de resistência
Outra coisa que ainda hoje é utilizada contra a pobreza no sentido de sua criminalização são os chamados autos de resistência. E o que é isso? É aquele em que você mata, executa e simplesmente notifica “morto ao reagir à prisão”. Isso foi muito utilizado durante a ditadura. Não é que foram inventados pela ditadura, mas foram legalizados em 1962. É interessante estudarmos isso. É onde vemos duas pessoas: quem primeiro usa dos atos de resistência? O Fleury , que foi um torturador de São Paulo, e o Mariel Mariscot , que foi do esquadrão da morte do Rio de Janeiro — os chamados Homens de Ouro. Isso antes do Golpe, mas depois essa prática também foi muito utilizada; assim como hoje. Com a alegação de resistência à prisão você é executado e esses processos simplesmente não vão adiante. Nenhum policial que registra que uma morte foi auto de resistência é punido. Normalmente o processo é arquivado.
Tortura
Outro grande efeito foi a banalização da tortura. Você passa a acreditar que alguns segmentos da população necessitam ser torturados. Eu lembro que alguns torturadores, quando não tinham o que fazer, nos chamavam de madrugada para “bater papo” — como eles diziam —, e afirmavam isto claramente: que a tortura era necessária. A ditadura institui uma prática que sempre houve no Brasil. Ela não inventou a tortura, que sempre existiu desde que o Brasil foi descoberto.
IHU On-Line – Como a tortura empreendida contra as pessoas contrárias ao regime militar foi, também, resultado de um processo cultural e histórico brasileiro mais antigo?
Cecília Coimbra – Historicamente, nos anos 1940-50 vai sendo produzida uma figura extremamente perigosa chamada “comunista”. Quando eu era adolescente, meu pai, que era uma pessoa bastante reacionária de direita, dizia que os comunistas eram “contra a família” e que “comiam perninha de criança”. Parece brincadeira, piada, mas isso colava. Havia uma produção intensa de um anticomunismo muito grande. Depois, durante a ditadura, houve também o termo “terrorista”. Para essas pessoas se justificava a tortura, como hoje para o traficante — afinal, “todo mundo” é traficante no Rio de Janeiro. Você acaba banalizando a tortura e naturalizando-a.
Ano passado, houve uma pesquisa feita pelo Núcleo de Estudos da Violência da USP, apontando que na população de São Paulo em torno de 43% das pessoas eram a favor da tortura. Eu até achei baixo o número. As pessoas se escandalizaram, mas do jeito que nós vemos os grandes meios de comunicação de massa, os desenhos para criança, os enlatados norte-americanos, em que a violência e a tortura vão sendo naturalizados, é até pouco.
O extermínio e, principalmente, a tortura, são práticas muito utilizadas através da figura do desaparecido, na ditadura brasileira. Obviamente que a ditadura sofisticou, generalizou e naturalizou o uso desses dispositivos. Agora, a história do Brasil é a história da tortura, não é, meu amigo? Carregamos em nossa história mais de 300 anos de escravidão em que o negro é tratado como mercadoria. Isso gera um contexto em que certas pessoas não são humanas. Certas pessoas precisam ser tratadas de forma diferente, e para elas vale tudo.
Outra questão que deve ser pensada é a introdução do termo Guerra Civil. “Vivemos em uma Guerra”. Isso foi muito utilizado no período da Ditadura, a chamada Guerra Suja, e como estamos em uma guerra, tudo se justifica. Até ir contra as Convenções de Genebra. A ligação entre criminalidade e pobreza entra no Brasil no final do século XIX e é atualizada nos anos 1980, especialmente no Rio de Janeiro. Isso vai sendo associado naturalmente: onde está o pobre está o terror, é onde está o perigo. Na época da ditadura, nós, os “terroristas”, éramos as pestes. Hoje, são os traficantes e a pobreza em geral. Com isso, você vai produzindo subjetividades, modos de ver, existir, pensar e agir no mundo coerentes com esse modelos hegemônicos que interessam ao capitalismo.
IHU On-Line – O biopoder se legitima produzindo positividades, como já alertou Foucault. Nesse sentido, como o controle das subjetividades dos sujeitos passa a ser uma estratégia fundamental para as técnicas de governo do Estado? Qual o papel da comunicação (imprensa) neste processo?
Cecília Coimbra – Foucault nos traz algumas contribuições muito importantes. Uma delas é o que ele chama de Dispositivo da periculosidade. Com a ascensão da sociedade disciplinar e a emergência do capitalismo — como eu comentava sobre as ditas classes perigosas — você vai colocando uma essência no sujeito. Ou seja, o perigoso é aquele que mesmo antes de ter cometido algum ato ilegal deve ser vigiado e controlado, porque com ele está a essência do mal. Então você vai inclusive controlar a virtualidade do sujeito. Isso é terrível.
Outro conceito importantíssimo é a questão do poder sobre a vida, o biopoder. Guattari falava que era principalmente por meio da mídia que se produziam modos de viver e de existir, que se produziam subjetividades aderentes ao regime. A mídia tem um papel importantíssimo nisso, mas o biopoder se exerce em diferentes contextos, por diferentes profissionais e em diferentes áreas. Dois grandes braços do biopoder hoje são a medicalização e a judicialização. A medicina e o direito aliados, como sempre se viu na história do Brasil. No primeiro, tudo é doença, tudo é patologizado. No segundo, você criminaliza, pede mais leis, mais ordem. Em nome da segurança — e Foucault foi profético nisso — você controla tudo. Você exerce um poder imenso sobre a vida de cada um em nome da “governamentalidade”.
IHU On-Line – O antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, em uma entrevista publicada recentemente na Revista Piauí, afirmou que "foi preciso a esquerda para realizar o projeto da direita". De que maneira o uso da força policial (Belo Monte, Museu do Índio, desapropriações para obras da Copa do Mundo) para garantir o atual projeto de governo remontam o período de exceção?
Cecília Coimbra – Nós não mudamos de sociedade, continuamos no capitalismo. Estas pessoas (no Governo), hoje, são gestoras do capital. Deleuze , Guattari, Foucault nos mostram como as noções de direitos, de humano e de cidadania são introduzidas com as revoluções burguesas. Tudo isso é introduzido com o capitalismo. Eu trabalho com Direitos Humanos, e é em nome do capitalismo que se banaliza a seguinte discussão: “direitos humanos para quem, amiguinho?”. Aqueles ditos diferentes, a grande maioria da sociedade brasileira, os seguimentos pobres, estes nunca tiveram seus direitos humanos garantidos. Ou seja, certos conceitos que a esquerda usa ainda hoje são inventados pelo próprio capital. Eu já fui marxista, hoje não sou mais, mas acredito que não precisamos de Deleuze, Guatarri e Foucault para se pensar que Marx já dizia isso. E essa própria esquerda que está hoje gerando o capital — não só no Brasil — esqueceu que o Estado está vinculado ao capital. Não existe no capitalismo diferença entre público e privado, ambos estão a serviço do capital. Os dois funcionam para que a lógica do capital se mantenha. E é muita ingenuidade ou mau-caratismo ocupar o aparelho de Estado e dizer que vai promover um “país para todos”. Isso é brincadeira. E eu nem acho que isso seja esquerda. Acho inclusive que não existe hoje esquerda ou direita, essas coisas acabaram. Quando vemos as alianças que foram feitas por esses governos ditos democrático-populares, acordos com Maluf , com Marcos Maciel , com Antônio Carlos Magalhães , com todos aqueles que respaldaram e apoiaram a ditadura, é de se ver que não tem esquerda no país. Esses ex-companheiros esquecem a sua história e hoje se prestam a gerir o capitalismo.
IHU On-Line – Por que o modelo das Unidades de Polícia Pacificadora – UPPs surge como a “solução” para a violência nas periferias cariocas e, atualmente, passa por uma crise de credibilidade? O que as UPPs têm em comum com a ditadura?
Cecília Coimbra – Ano passado eu tive uma aluna no mestrado da UFF que fez uma dissertação brilhante sobre as UPPs. Ela, que é moradora do Cantagalo , vai mostrando como é a implantação do biopoder, do controle da vida do sujeito em nome de sua segurança, em nome da sua liberdade. Ela vai mostrando um conceito muito interessante, também do Foucault, que é o de “povo e população”. Nas UPPs, a tentativa é de transformar o povo em população, pois o povo é o que sai nas ruas, que não é controlável, mas a população é. Ela dizia que, quando questionava as UPPs, a própria família dizia: “Então você está a favor do tráfico?”. Olha como vai se produzindo — e o capitalismo adora isso — raciocínios binários, de que o bom está aqui, e o mal, ali. Ela descreve que quando o Bope entrou no Cantagalo, os cachorros latiam enlouquecidamente; e dizia, no texto, que “só os cachorros estranhavam”. As manifestações de 2013 foram muito importantes e deram força para que a população pudesse estranhar também e falar. E começar a perder o seu medo. Nas UPPs tudo é controlado: o ir e vir, o som, que tipo de lazer você vai ter, qual baile, quais músicas serão permitidas...
Eu lembro muito sobre o que o Agamben falava dos campos de concentração a céu aberto, hoje. As UPPs são o exercício claro do biopoder em cima do controle de todas as condutas do indivíduo, que diz: “em nome da vida, eu preciso eliminar a vida”. Que bom que hoje estamos começando a perceber — e os moradores estão trazendo isso — que é preciso questionar as UPPs. Que até então elas eram vistas como o remédio mágico para a violência. Uma forma muito sedutora, e o interessante é que se utiliza tanto da violência quanto da sedução. Você controla o outro não só pela violência, mas também por meio da mídia e da produção de subjetividade e da grande sedução que você exerce sobre o outro dizendo que, para sua segurança, certas medidas de exceção necessitam ser tomadas. A tal ponto que você próprio passa a querer essas medidas, pedindo que o Estado tenha controle sobre você.
IHU On-Line – Como a ideia de “Segurança Nacional” se torna uma espécie de paranoia coletiva, resultando em certa conivência social (e em alguns casos apoio) no desrespeito aos direitos humanos?
Cecília Coimbra – É isso que estamos vendo nas manifestações. Quando os grandes meios de comunicação veiculam “os vândalos” e “os baderneiros”, vemos companheiros nossos, por falta de informação, criminalizando determinadas práticas. Produzir subjetividades, produzir crenças de que certos modelos são melhores do que os outros, produzir raciocínios e lógicas dicotomizantes e binaristas são formas de produzir novos modos de viver e entender o mundo. Assim, da mesma forma que no período da Ditadura, nós éramos a “lepra”, os “criminosos”, os “terroristas”, hoje são produzidos outros “terroristas”. É a mesma lógica e, inclusive, vemos hoje pessoas apoiando as medidas de exceção que estão para ser votadas. Um novo AI-5 vem aí, que é o chamado AI-5 da Copa. Nós precisamos estar alertas.
IHU On-Line – Por que a tortura existiu e por que ela sobrevive? Qual a grande lição do período em que a tortura era a regra e as liberdades eram a exceção?
Cecília Coimbra - Porque esses “sujeitos” continuam sendo produzidos — pois o sujeito é uma produção. Esses sujeitos temerosos, aterrorizados, amedrontados, em um mundo onde você não pode falar com o seu vizinho, pois “cuidado, ele pode ser um psicopata!”. Veja como a questão da medicalização e da judicialização se juntam para produzir o terror e a insegurança. Eu não estou dizendo que crimes não existem, afinal, eu mesma moro em uma região problemática. Agora, isso é fortalecido e ecoa nos meios de comunicação de forma estrondosa, produzindo medo das pessoas de sair de casa, de ficar na rua em determinados horários da noite. Por que a tortura se mantém? Porque se mantém a produção do terror, do medo, da insegurança. E no momento em que você produz a insegurança, também se produzem pessoas facilmente cooptáveis para uma tutela maior. Pessoas inclusive que pedem essa tutela, pois, em nome da “nossa segurança”, é justificado que alguns segmentos da população sejam torturados, sim, ou até mesmo exterminados.
Leia mais...
- As marcas indeléveis da tortura. Entrevista com Cecília Coimbra publicada na edição 358 da IHU On-Line.
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