Chamar ex-presos e perseguidos políticos de 'falsos perseguidos, que ganham bolsas-ditadura' é um desrespeito que beira os limites éticos da profissão.
Caroline Silveira Bauer (*)
Nas últimas semanas, em função das rememorações dos 50 anos do golpe e da implantação da ditadura civil-militar brasileira, inúmeros eventos têm sido realizados para avaliar interpretações historiográficas, refletir sobre as políticas de memória implantadas pelo Estado, denunciar a impunidade dos agentes da repressão, e homenagear e lembrar resistentes e aqueles que foram mortos e desaparecidos.
Da mesma forma, proliferam-se lançamentos editoriais e reimpressões de obras clássicas, oferecendo ao público desde abordagens revisionistas, visões consagradas e novas abordagens que problematizam conceitos, cronologias e protagonismos. Não faltaram, também, manifestações editoriais de militares, militantes, e também de historiadores, sobre a efeméride. Este texto faz referência a um pronunciamento em especial, feito pelo professor Ronaldo Vainfas, da Universidade Federal Fluminense, em sua página pessoal no Facebook, e compartilhado em outros espaços na rede.
O texto inicia com uma crítica à cobertura midiática sobre os 50 anos do golpe, considerada pelo historiador como “patética”. Sem explicitar os motivos de seu julgamento, passa a criticar a postura de algumas personalidades que depuseram sobre sua percepção sobre a ditadura, como Tom Zé, que acreditava estar condenado à morte, ou Fernanda Montenegro, que sofreu uma ameaça de morte. Segundo o autor, esses medos poderiam ser inteligíveis à época – “porque todos viviam apavorados” –, mas não em 2014 – “mas em pleno 2014 alguém levar isto a sério [...] é de chorar”.
Viver em 64 ou em 68 não significava viver apavorado, mas sim em um regime de terrorismo de Estado, em que a ameaça de sequestro, tortura, morte e desaparição era uma constante, quando o “inimigo”, classificado como o “subversivo”, nunca estava claramente estabelecido – parte da estratégia repressiva da ditadura. Assim como o medo não cessa com o fim da ditadura, não obedece a mesma cronologia, e permanece como algo residual, latente na memória daqueles que viveram o terror.
Ainda, caberia um questionamento sobre quem o autor considera digno de sentir medo. Apenas aos militantes das organizações de esquerda armada? Somente eles eram as vítimas da ditadura? Esta consideração é altamente questionável, em primeiro lugar, através da análise dos novos dados sobre os atingidos pela repressão: camponeses, indígenas, trabalhadores, etc. Posteriormente, pois a noção de “vítima” precisa ser problematizada: foram vítimas apenas aqueles que foram mortos e desaparecidos? Gostaria de entender a linha de raciocínio do autor, que invalidou a percepção do Tom Zé, questionando-o: “ele foi militante de alguma organização? Os tropicalistas foram militantes da luta armada?” Parece que o historiador, neste caso, assumiu uma função de juiz, estabelecendo quem pode falar e se manifestar como vítima, ao invés de compreender as falas dos dois artistas.
Sobre as considerações de Fernanda Montenegro, considera-as inverossímeis e, para construir seu argumento, remete aos crimes cometidos pelo fascismo italiano e pelo nazismo que aconteciam “na calada”. “Só pode ser piada o que dizem uns e outros sobre as ações da ditadura brasileira. Os agentes da repressão no Brasil devem dar gargalhadas. Quem sabe ficam indignados por serem tratados como idiotas”, afirma Vainfas, que não leva em consideração que o terror, por sua ilegalidade, caracteriza-se, sim, pela clandestinidade; porém, necessita de um mínimo de publicidade, para que suas ações sejam conhecidas e, assim, o medo disseminado pela sociedade. Vainfas parece esquecer ações espetaculares da ditadura, como o assassinato de Marighella, o massacre da Chácara São Bento ou a Chacina da Lapa, ou ainda o atentado do Rio-Centro.
Concordo que muitos historiadores endossam mitos, ou assumem memórias como explicações históricas. Porém, questiono se as considerações feitas sobre a ditadura e o ensino baseiam-se em pesquisas empíricas, pois são diversos os estudos que comprovam a militarização do ensino – em todos os níveis – e a repressão nos espaços escolares, principalmente nas universidades. Estes trabalhos permitem duvidar de considerações como “a maior parte do professorado era esquerdizante, ignorante” ou, então, “os militares não estavam nem aí para que os estudantes liam na universidade”, feitas pelo professor em seu texto. Aliás, a crítica que Vainfas faz a estes supostos mitos baseia-se em uma experiência pessoal: “fui aluno de graduação da UFF nesta época e nunca vi censura nenhuma.” Sabemos como é complicado sustentar uma argumentação a partir de sua própria memória como contraponto ao que apontam as pesquisas sobre a ditadura.
No entanto, o que mais choca no texto do colega historiador são suas considerações sobre os ex-presos e perseguidos políticos; considera muitos deles “falsos perseguidos, que ganham bolsas-ditadura!”. Trata-se de um desrespeito que beira os limites éticos da profissão, além de endossar uma versão sobre as políticas indenizatórias – as quais possuem muitas críticas, é claro – feitas pelos setores mais autoritários e negacionistas sobre o passado recente brasileiro.
Isto, sem falar na comparação que reabilita o agente Paulo Malhães, ao compará-lo com Adolf Eichmann. Para o professor, diante do nazista, Malhães não é mais que “uma formiga, um verme, uma barata”. Mas a quem interessa comparar os dois regimes? Qual a finalidade desta comparação? Seria instituir uma “escala” para medir os maiores ou menores terrores? Ou as ditabrandas e as ditaduras?
Por fim, uma última consideração: “O que a maioria dos pesquisadores produz hoje sobre o golpe de 64 é de embrulhar o estômago de historiadores comprometidos com o ofício, e não com ideologias ou mitologias interesseiras e interessadas.” Caberia um questionamento ao autor se seu texto poderia ser considerado de um historiador comprometido com o ofício, pois considerar “idiotas” pontos de vistas opostos ao seu, chamar os professores à época de “esquerdizante, ignorante”, reabilitar Malhães ao compará-lo com Eichmann ou se perguntar “who knows, who cares”, é de uma postura que não contribuiu absolutamente em nada para os debates políticos e historiográficos sobre os 50 anos do golpe. E, quando a se comprometer com o ofício, eu me importo.
(*) Caroline Silveira Bauer é professora de História Contemporânea na Universidade Federal de Pelotas. Doutora pela Universidade Federal do Rio Grade do Sul e pela Universitat de Barcelona, é autora do livro "Brasil e Argentina: ditaduras, desaparecimentos e políticas de memória".
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