ANOS DE CHUMBO
Quando o advogado Idibal Pivetta foi preso pelos militares durante a última ditadura e ficou incomunicável, seu defensor, designado pela OAB-SP, José Carlos Dias, não teve dúvidas: foi ao Superior Tribunal Militar pedir uma entrevista pessoal e reservada com o colega, como prevê o Estatuto da Ordem. Mesmo sem estar inscrito para falar no tribunal naquela sessão, Dias pediu a palavra ao presidente da corte, general Adalberto Pereira dos Santos. Contrariando as expectativas e o próprio regimento do tribunal, o militar permitiu que o advogado subisse à tribuna e relatasse o caso.
Dias protocolou o pedido no STM e, quando retornou ao seu escritório em São Paulo, havia um recado para que ele se dirigisse à Auditoria Militar. Lá havia um telex do STM informando que a incomunicabilidade de Pivetta fora derrubada. Dias conseguiu ver o colega. “Esse fato, e tantos outros, mostra o que precisávamos criar para que conseguíssemos caminhar na defesa de nossos perseguidos políticos”, disse o advogado em debate sobre o direito de defesa na ditadura, promovido pela Faap no último dia 19 de março. Também participaram do encontro os advogados Belisário dos Santos Júnior, Idibal Pivetta e Rosa Cardoso da Cunha. Eles contaram algumas das estratégias que empregaram durante o regime militar para defender os presos políticos.
Dias disse que, antes de o direito a Habeas Corpus ser suspenso pelo AI-5, em 1968, um dos expedientes adotados para atuar na Justiça Militar consistia em impetrar HCs com a alegação de que o cliente estava preso por um crime que não era político. “O que queríamos antes de mais nada era um recibo de vida, para que pudéssemos depois entrar com pedido de liberdade.”
HCs disfarçados
Com a suspensão do Habeas Corpus, os advogados foram obrigados a adotar mecanismos alternativos. Para evitar a morte dos presos, o advogado Belisário dos Santos Júnior informava as prisões à Justiça. “Comunicar a prisão era muitas vezes salvar a vida de uma pessoa”, resume.
Outro método empregado pelos advogados consistia em levar denúncias e documentos dos detidos para fora dos presídios. “Naquela época a gente não era revistado ao entrar e sair das prisões, isso não se admitia. Com isso, alguns advogados, após falar com seus clientes, saíam da prisão com denúncias importantes, que foram levadas a foro internacional, porque aqui dentro elas não tinham a menor repercussão”, contou Belisário.
Advogado de presos políticos por 30 anos e ele mesmo tendo sido um preso político, Idibal Pivetta passou 42 dias incomunicável quando esteve preso no DOI-Codi. Ele diz que era comum o advogado apresentar um pedido de informações sobre o preso, para que as famílias soubessem onde ele estava e tentassem fazer alguma coisa. “Era um Habeas Corpus disfarçado”, explicou.
Um episódio importante narrado por ele envolveu o dramaturgo Augusto Boal, que havia sido seu professor de teatro. Boal estava em Buenos Aires, mas o governo brasileiro negava visto de entrada no país a ele e a centenas de outros brasileiros. A partir de um pedido de familiares do dramaturgo, Pivetta entrou com um Mandado de Segurança no STF, que ordenou ao governo a concessão do visto. “Isso desencadeou no exterior uma série de pedidos de ‘clientes’ — eram mais que clientes, eram amigos, pessoas que lutavam pela liberdade e justiça social — e conseguimos mais de 300 vistos de passaporte”.
A salvação nas Auditorias
Apesar do ambiente hostil, muitas vezes foi na própria Auditoria Militar que denúncias de tortura vieram à tona. “Por incrível que pareça, alguns [militares] tomaram conhecimento da tortura que existia no Brasil naquele momento, e isso servia muito para evitar mortes, torturas e assassinatos”, disse Pivetta.
A importância do espaço para denúncia nas Auditorias Militares também foi enfatizada por Rosa Cardoso da Cunha. “Não vejo a Auditoria Militar como um lugar de opressão, onde as pessoas vinham e se defrontavam com a perda da liberdade, mas como um lugar de insurreição e reparação.”
Rosa conta que era ali, na Auditoria, que os presos políticos relatavam as torturas e se mostravam vivos e dispostos a seguir na luta. “Isso era muito importante para eles se reconstituírem como pessoa. Nós demos muito apoio a essa reconstrução da identidade dos presos”, afirmou Rosa.
“A integridade ganhou”, afirmou Belisário dos Santos. “Seguramente, com tudo o que houve de condenação, pessoas que perdemos para a morte, tortura ou execução forçada, o direito de defesa prevaleceu”.
Direito enxovalhado
Durante o evento, José Carlos Dias fez uma crítica aos tempos atuais. Ele disse que o direito de defesa vem sendo enxovalhado no Brasil, e que essa atitude hostil tem tido o respaldo do Supremo Tribunal Federal.
“Os advogados que militam na advocacia criminal podem dar testemunho do grande desaponto com a maneira com que a Justiça vem sendo praticada nesse país, a partir do Supremo Tribunal Federal”, afirmou. "Estamos assistindo a isso nos nossos tribunais, a partir do STF. Decisões que constituem erros judiciários da maior gravidade."
Questionado se poderia dar um exemplo decisão judicial errada, respondeu: "Não. todos sabem".
Elton Bezerra é repórter da revista Consultor Jurídico.
Revista Consultor Jurídico
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