1. Considerações introdutórias
Assim como nenhuma forma de manifestação de vida consegue evitar a ação corrosiva e implacável do tempo, a lei penal também nasce, vive e morre. E, desde que uma lei entra em vigor, ela rege todos os atos abrangidos por sua destinação, até que cesse a sua vigência. A lei anterior, como regra, perde sua vigência quando entra em vigor uma lei nova regulando a mesma matéria. E, como diz Damásio de Jesus , “entre estes dois limites — entrada em vigor e cessação de sua vigência — situa-se a sua eficácia. Não alcança, assim, os fatos ocorridos antes ou depois dos dois limites extremos: não retroage nem tem ultra-atividade. É o princípio tempus regit actum”. Em outros termos, a lei aplicável à repressão da prática do crime é a lei vigente ao tempo de sua execução.
O princípio da irretroatividade penal, talvez um dos mais importantes em matéria de aplicação da lei penal, já era defendido pelos integrantes da Escola Clássica. A despeito de sua importância político-constitucional, nem sempre esse princípio recebeu apoio incondicional dos grandes pensadores, havendo doutrinadores de escol que o conceberam com muitas reservas, conforme demonstra a literatura especializada . Contudo, o dinamismo do Direito Penal, que procura acompanhar a evolução cultural dos povos, percebeu que, ao menos em tese, as leis novas são melhores que as mais antigas e teriam melhores condições para fazer justiça. Essa natureza dinâmica do Direito determinou a necessidade de conciliar, no âmbito da sucessão de leis no tempo, o princípio tempus regit actum com o da aplicação da lei posterior, sempre que for mais favorável ao indivíduo. Diante dessa necessidade, procurou-se temperar aquele velho princípio para adequá-lo às necessidades modernas, determinando que a lei penal não retroage, salvo para beneficiar o infrator (retroatividade da lei penal mais benigna), que, finalmente, foi recepcionado pela Constituição Federal do Brasil de 1988 (art. 5º, XL).
Pode acontecer, no entanto, que infração penal iniciada sob a vigência de uma lei venha a consumar-se sob a vigência de outra; ou, então, que o sujeito pratique conduta criminosa sob a vigência de uma lei, e a sentença condenatória venha a ser prolatada sob a vigência de outra, que comine pena distinta da primeira; ou, ainda, que durante a execução da pena surja lei nova regulando o mesmo fato e determinando sanção mais suave.
Afinal, qual a lei a ser aplicada: a do tempo da prática do fato ou a posterior? Essa é uma questão aparentemente simples relativa ao chamado direito intertemporal, mas que, no quotidiano, pode apresentar inúmeras dificuldades para a solução do conflito de leis penais no tempo.
2. Lei intermediária e conjugação de leis
Problema interessante surge quando há uma sucessão de leis penais, e a mais favorável não é nem a lei do tempo do fato nem a última, mas uma intermediária, isto é, uma lei que não estava vigendo nem ao tempo do fato delitivo nem no momento da solução do caso. Um setor da doutrina considera que não pode ser aplicada a lei intermediária, pois a lei penal não se refere a ela expressamente, além do que não estava em vigor em nenhum momento essencial — nem no do fato nem no do julgamento. Contudo, de acordo com os princípios gerais do Direito Penal intertemporal, deve-se aplicar a lei mais favorável. Se a lei intermediária for a mais favorável, deverá ser aplicada. Assim, a lei posterior, mais rigorosa, não pode ser aplicada pelo princípio geral da irretroatividade, como também não pode ser aplicada a lei da época do fato, mais rigorosa. Por princípio excepcional, só poderá ser aplicada a lei intermediária, que é a mais favorável. Nessa hipótese, a lei intermediária tem dupla extra-atividade: é, ao mesmo tempo, retroativa e ultra-ativa!
Finalmente, uma outra questão tormentosa a ser analisada no conflito intertemporal: na busca da lei mais favorável, é possível conjugar os aspectos favoráveis da lei anterior com os aspectos favoráveis da lei posterior?
Alguns autores da doutrina nacional e estrangeira opõem-se a essa possibilidade, porque isso representaria a criação de uma terceira lei, travestindo o juiz de legislador . Bustos Ramirez , contrariamente, admite a combinação de leis no campo penal, pois, como afirma, nunca há uma lei estritamente completa, enquanto há leis especialmente incompletas, como é o caso da norma penal em branco; consequentemente, o juiz sempre está configurando uma terceira lei, que, a rigor, não passa de simples interpretação integrativa, admissível na atividade judicial, favorável ao réu. No mesmo sentido era o entendimento de Frederico Marques, segundo o qual, se é permitido escolher o “todo” para garantir tratamento mais favorável ao réu, nada impede que se possa selecionar parte de um todo e parte de outro, para atender a uma regra constitucional que deve estar acima de pruridos de lógica formal . Não era outro o entendimento do saudoso Assis Toledo que professava: "em matéria de direito transitório, não se pode estabelecer dogmas rígidos como esse da proibição da combinação de leis. Nessa área, a realidade é muito mais rica do que pode imaginar a nossa "vã filosofia"...parece-nos que uma questão de direito transitório - saber que normas devem prevalecer para regular determinado fato, quando várias apresentam-se como de aplicação possível - só pode ser convenientemente resolvida com a aplicação dos princípios de hermenêutica, sem exclusão de qualquer deles. E se, no caso concreto, a necessidade de prevalência de certos princípios superiores conduzir à combinação de leis, não se deve temer este resultado desde que juridicamente valioso. Estamos pois de acordo com os que profligam, como regra geral, a alquimia de preceitos de leis sucessivas, quando umas se destinam a substituir as outras" .
A nosso juízo, esse é o melhor entendimento, que permite a combinação de duas leis, aplicando-se sempre os dispositivos mais benéficos. O Supremo Tribunal Federal teve oportunidade de examinar essa matéria e decidiu pela possibilidade da conjugação de leis para beneficiar o acusado (HC 69.033-5, Rel. Min. Marco Aurélio, DJU, 13 mar. 1992, p. 2925).
Recentemente (outubro de 2013), no entanto, o STJ publicou, dentre outras, a Súmula 501, com o seguinte verbete: “É cabível a aplicação retroativa da Lei n. 11.343/2006, desde que o resultado da incidência das suas disposições, na íntegra, seja mais favorável ao réu do que o advindo da aplicação da Lei n. 6.368/1976, sendo vedada a combinação de leis”. A única novidade nessa súmula limita-se ao seu final, qual seja, a vedação de conjugação de leis, para retirar seu conteúdo mais benéfico ao infrator. Estaria o STJ fazendo uma discriminação para a Lei de Tóxicos, isto é, limitando essa interpretação restritiva da conjugação de leis mais benéficas somente em relação a esse diploma legal (Lei n. 11.343/2006). A despeito de o texto mencionar expressamente referido diploma legal, acreditamos que o Tribunal da Cidadania estará ampliando sua interpretação restritiva para abranger outros diplomas legais.
Logicamente, por nossa colocação anterior, e na mesma linha daquela interpretação mencionada do STF (HC 69.033-5), discordamos de mais esse entendimento sumular do Superior Tribunal de Justiça. Mas esse é, desafortunadamente, o seu atual entendimento sumulado.
3. Leis excepcionais e temporárias
As leis excepcionais e temporárias são leis que vigem por período predeterminado, pois nascem com a finalidade de regular circunstâncias transitórias especiais que, em situação normal, seriam desnecessárias. Leis temporárias são aquelas cuja vigência vem previamente fixada pelo legislador, e são leis excepcionais as que vigem durante situações de emergência.
Dizia Grispigni, com acerto, que não devem ser confundidas as leis temporárias com o caráter contingente e transeunte que certas leis penais podem apresentar, caráter político-social que não diz respeito à natureza da lei . As leis temporárias e excepcionais, nos termos do art. 3º do CP, têm ultratividade. Frederico Marques , analisando o conteúdo e a estrutura dessas leis, afirmava que: “por ter sido elaborada em função de acontecimentos anormais, ou em razão de uma eficácia previamente limitada no tempo, não se pode esquecer que a própria tipicidade dos fatos cometidos sob seu império inclui o fator temporal como pressuposto da ilicitude punível ou da agravação da sanção”. Em outros termos, a circunstância de o fato ter sido praticado durante o prazo fixado pelo legislador (temporária) ou durante a situação de emergência (excepcional) constitui elemento temporal do próprio fato típico.
Jescheck classifica como uma exceção ao princípio da retroatividade da lei mais favorável quando a lei anterior é uma lei temporal, pois “Uma lei deste tipo é aplicável aos fatos puníveis praticados sob sua vigência, embora tenha deixado de viger (§ 2º, IV), pois a derrogação de uma lei temporal vem condicionada somente pelo desaparecimento do motivo que a originou e não por uma mudança na concepção jurídica. Caso contrário, a lei temporal perderia autoridade na medida em que fosse aproximando-se o termo final de sua vigência”.
Alguns autores brasileiros , embora reconhecendo a conveniência da exclusão da retroatividade de lei penal mais benéfica em relação às leis excepcionais e temporárias, têm sustentado a inconstitucionalidade do art. 3º do Código Penal, diante da previsão do art. 5º, XL, da CF, in verbis: “A lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu”. Contudo, não estamos convencidos do acerto dessa interpretação. Referido dispositivo precisa ser analisado também em seu contexto histórico. Em primeiro lugar, não se pode esquecer que o princípio da irretroatividade da lei penal é uma conquista histórica do moderno Direito Penal, que se mantém prestigiado em todas as legislações modernas, como garantia fundamental do cidadão. Essa é a regra geral que o constituinte de 1988 apenas procurou elevar à condição de dogma constitucional. Em segundo lugar, deve-se destacar que o enunciado constitucional citado encerra duas premissas: 1ª) a irretroatividade da lei penal constitui-se na premissa maior, um princípio geral histórico elevado à condição de dogma constitucional; 2ª) a retroatividade da lei penal mais benéfica constitui-se na premissa menor, a exceção. Como se vê, o badalado dispositivo constitucional consagra uma regra geral e uma exceção: regra geral — irretroatividade da lei penal; exceção — retroatividade quando beneficiar o réu. Assim, como o que precisa vir expresso é a exceção e não a regra geral, não se pode exigir exceção da exceção para excluir da retroatividade benéfica as leis examinadas.
Nesse sentido era o entendimento de Frederico Marques , que sentenciava: “Entendida a lei temporária ou excepcional como descrição legal de figuras típicas onde o tempus delicti condiciona a punibilidade ou maior punibilidade de uma conduta, a sua ultra-atividade não atinge os princípios constitucionais de nosso Direito Penal intertemporal. A lex mitior que for promulgada ulteriormente para um crime que a lei temporária pune mais severamente não retroagirá porque as situações tipificadas são diversas”. E prosseguia o saudoso mestre, afirmando que, nessas hipóteses, nem se poderá falar em lex mitior, que só existirá, efetivamente, se abranger no seu conteúdo normativo não só a conduta mas também as circunstâncias anômalas da lei excepcional ou temporária, que se acrescentam à ação para torná-la punível ou agravar a sua sanção.
Nos crimes permanentes ou continuados aplicar-se-á a lei posterior em vigor, desde que ainda perdure a permanência ou a continuidade, mas resultam impuníveis a continuidade dos atos precedentes à entrada em vigor da lei.
4. Retroatividade das leis penais em branco
Como vimos no capítulo anterior, a maioria das normas penais incriminadoras compõe-se de normas completas, integrais, possuindo preceitos e sanções. Há, contudo, algumas normas incompletas, com preceitos genéricos ou indeterminados, que precisam da complementação de outras normas, sendo conhecidas, por isso mesmo, como normas penais em branco. A delimitação e constitucionalidade das leis penais em branco sempre foi objeto de debate na doutrina em função do princípio de legalidade e de reserva legal. E, em virtude dessa problemática, surge uma questão inevitável: a norma penal em branco retroage ou não? Por outro lado, não seriam inconstitucionais as normas penais em branco estrito senso, isto é, aquelas complementadas por normas de categorias inferiores à lei ordinária, sem, portanto, passar pela elaboração do regular e devido processo legislativo (art. 22, I, da CF)? Aliás, não poucas vezes, essas normas inferiores surgem no bojo de simples portarias, regulamentos, resoluções etc., como ocorre, por exemplo, com a hipótese de substância entorpecente e drogas afins, ou, mais abrangentemente, com as normativas do Banco Central e do Conselho Monetário Nacional relativamente aos crimes financeiros, particularmente, o de evasão de divisas.
Indiscutivelmente, referidos órgãos não têm legitimidade e tampouco autorização constitucional para elaborar normas com conteúdo incriminador, como vem ocorrendo desde as últimas décadas do século passado.
Primeiramente, precisamos discorrer sobre a questão da retroatividade das normas ditas integradoras ou complementadoras. O tema é profundamente controvertido, tanto na doutrina nacional quanto na estrangeira. Os argumentos são os mais variados em ambas as direções. A nosso juízo, contudo, a polêmica tem como fundamento maior a definição que se atribua a “norma penal em branco”. Como pontificava Magalhães Noronha , a norma penal em branco não é destituída de preceito. Ela contém um comando, provido de sanção, de se obedecer ao complemento preceptivo que existe ou existirá em outra lei. Com efeito, a norma penal em branco válida é aquela que contém o núcleo essencial da conduta punível descrito no preceito primário da norma incriminadora, sob pena de violar o princípio da reserva legal de crimes e respectivas sanções (art. 1º do CP). Nesses termos, a validez da norma complementar decorre da autorização concedida pela norma penal em branco, como se fora uma espécie de mandato, devendo-se observar os seus estritos termos, cuja desobediência ofende o princípio constitucional da legalidade. Aliás, tratando-se de norma penal em branco, a própria denúncia do Parquet deve identificar qual lei complementar satisfaz a elementar exigida pela norma incriminadora, ou seja, deve constar da narrativa fático-jurídica qual lei desautoriza a prática da conduta imputada, sob pena de se revelar inepta, pois a falta de tal descrição impede a demonstração do aperfeiçoamento da adequação típica.
Do exposto, devemos diferenciar duas situações completamente distintas no momento de analisar a retroatividade das leis penais em branco: de um lado, os casos em que a norma penal incriminadora permanece, com seu preceito sui generis e sua sanção, modificando-se somente a norma complementadora, e, de outro, os casos em que a própria norma penal incriminadora é reformada ou revogada.
As mudanças ocorrem, de regra, na norma complementar. E, em relação a essa norma, continua perfeitamente válida a lição de Soler quando afirmava que: “Só influi a variação da norma complementar quando importe verdadeira alteração da figura abstrata do Direito Penal, e não mera circunstância que, na realidade, deixa subsistente a norma; assim, por exemplo, o fato de que uma lei tire de certa moeda o seu caráter, nenhuma influência tem sobre as condenações existentes por falsificação de moeda, pois não variou o objeto abstrato da tutela penal; não variou a norma penal que continua sendo idêntica”. Mas, quando a alteração afeta a própria norma penal incriminadora, seja seu preceito primário, seja seu preceito secundário, então são válidas todas as considerações acerca da retroatividade e ultratividade da lei penal mais benigna.
Concluindo, as leis penais em branco não são revogadas em consequência da revogação de seus complementos. Tornam-se apenas temporariamente inaplicáveis por carecerem de elemento indispensável à configuração da tipicidade . Recuperam, contudo, validez e eficácia com o surgimento de nova norma integradora, que, sendo mais grave, a nosso juízo, não pode retroagir para atingir fato praticado antes de sua existência.
Quanto à questionada constitucionalidade de normas complementares de outras, tidas como incompletas, pode-se afirmar, de plano, que o legislador deve agir com criteriosa cautela, evitando eventual ampliação da conduta incriminada na norma que pretende complementar. Não se pode esquecer, por outro lado, que a norma integradora não pode alterar ou ultrapassar os limites estabelecidos pelo preceito da norma penal em branco, que é a incriminadora. Sua função restringe-se a especificações e detalhamentos secundários, que podem ser transitórios, temporários e até fugazes. Se a norma complementar, especialmente se tiver cunho ou natureza administrativa, ultrapassar o “claro da lei penal” (criando, ampliando ou agravando o comando legal), como já afirmamos, estará violando o princípio nullum crimen nulla poena sine lege, e, por consequência, desrespeitando o princípio constitucional da reserva legal (art. 5º, XXXIX, da CF). Logo, estar se-á diante de norma complementadora flagrantemente inconstitucional, não por ser norma integradora, mas por ultrapassar os limites que lhe são reservados como tal, alterando o comando legal, que é exclusivo da lei incriminadora (elaborada pelo Congresso Nacional, sob o crivo do devido processo legislativo), mesmo carente de complemento normativo. Não se trata de insegurança jurídica ou indeterminação, mas de violação mesmo da garantia constitucional dos princípios da legalidade e da tipicidade estrita, que ficariam altamente comprometidos.
5. Retroatividade e lei processual
A lei processual não se submete ao princípio da extra-atividade da lei penal mais benéfica (ultratividade e retroatividade). É pacífico o entendimento doutrinário-jurisprudencial de que, em matéria processual, vige o princípio tempus regit actum, que se relaciona aos atos do processo, ao contrário do princípio tempus comissi delicti, que está relacionado ao fato delitivo . Isso implica afirmar que a nova lei processual aplica-se de imediato, sem efeito retroativo, respeitando-se, portanto, a validade dos atos praticados sob a vigência da lei processual anterior.
Entende-se, no âmbito do direito intertemporal, como lei processual aquela que disciplina o processo e o procedimento, sem relação direta com o direito de punir do Estado. É bom frisar que o princípio tempus regit actum aplica-se, sem exceção, tão somente às normas que regem a realização dos atos processuais, isto é, as que se destinam a regular a formalização processual e a organização judiciária, lato sensu. Em qualquer caso em que uma lei dita processual, posterior à prática do crime, determine a diminuição de garantias ou de direitos fundamentais ou implique qualquer forma de restrição da liberdade, não terá vigência o princípio tempus regit actum, aplicando-se, nessas hipóteses, a legislação vigente na época do crime. Isso pode ocorrer, por exemplo, em matéria de prescrição, prisão preventiva, prisão provisória etc.
O princípio da irretroatividade da lei penal limita-se às normas penais de caráter material, entre as quais se incluem aquelas que de qualquer modo atingem algum direito fundamental do cidadão ou restringem sua liberdade, como é o caso das que proíbem a liberdade provisória, tornam crimes inafiançáveis etc., ao contrário do que entendeu a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal no HC 71.009, publicado no DJU de 17-6-1994, referindo-se à proibição de liberdade provisória. O fato de o STF, por uma de suas turmas, ter admitido, circunstancialmente, a retroatividade de norma semelhante não altera sua natureza jurídica, ou seja, norma que proíbe a liberdade provisória é de direito material, a despeito dessa decisão do STF, que, episodicamente, invocou razões de política criminal para fundamentar, dentre outras, tal decisão.
Sustentamos, finalmente, que também são alcançadas pela irretroatividade aquelas normas conhecidas como híbridas , na expressão de Claus Roxin, ou seja, leis penais que disciplinam matéria tanto de natureza penal quanto de natureza processual penal; aliás, é irrelevante a natureza — material ou processual — das normas penais repressivas para esse efeito, pois toda e qualquer norma penal que cause algum gravame na situação do agente é, por determinação constitucional, irretroativa. Nesses termos, decisão sobre sua natureza, se processual ou penal material, não passa de reflexão meramente acadêmica, que não tem o condão de alterar sua essência.
Em outros termos, toda lei penal, seja de natureza processual, seja de natureza material, que, de alguma forma, amplie as garantias de liberdade do indivíduo, reduza as proibições e, por extensão, as consequências negativas do crime, seja ampliando o campo da licitude penal, seja abolindo tipos penais, seja refletindo nas excludentes de criminalidade ou mesmo nas dirimentes de culpabilidade, é considerada lei mais benigna, digna de receber, quando for o caso, os atributos da retroatividade e da própria ultra-atividade penal. Por outro lado, toda lei penal (material ou processual) que, de alguma forma, represente um gravame aos direitos de liberdade, que agrave as consequências penais diretas do crime, criminalize condutas, restrinja a liberdade, provisoriamente ou não, reduza os meios de defesa, simplifique os procedimentos penais, ou limite a produção de provas, caracteriza lei penal mais grave e, consequentemente, não pode retroagir.
Quando, por fim, restar dúvida insuperável sobre qual das normas aplicáveis é a mais benéfica, sustentamos que a melhor solução será ouvir o próprio interessado, isto é, aquele que sofrerá as consequências da lei penal, devidamente assistido por seu defensor. No direito comparado, encontramos solução semelhante no Código Penal espanhol (art. 2º, 2, da Ley Orgánica 10/95).
6. Retroatividade da lei penal mais grave em crimes “continuado” ou “permanente”: Súmula 711 do STF
Recentemente, equiparando o tratamento do crime continuado e do crime permanente, o Supremo Tribunal Federal editou a Súmula 711 com o seguinte conteúdo: “A lei penal mais grave aplica-se ao crime continuado ou ao crime permanente, se a sua vigência é anterior à cessação da continuidade ou da permanência”.
Considerando que crime continuado e crime permanente são institutos distintos, equipará-los, especialmente para ampliar a punibilidade de ambos, é uma opção de alto risco, ferindo princípios sagrados, como o da irretroatividade da lei penal mais grave. O crime permanente é uma entidade jurídica única, cuja execução alonga-se no tempo, e é exatamente essa característica, isto é, manter-se por algum período mais ou menos longo, realizando-se no plano fático (e esse fato exige a mantença do elemento subjetivo, ou seja, do dolo), que se justifica que sobrevindo lei nova, mesmo mais grave, tenha aplicação imediata, pois o fato, em sua integralidade, ainda está sendo executado. É necessário, convém destacar, que entre em vigor o novo diploma legal mais grave antes de cessar a permanência da infração penal, isto é, antes de cessar a sua execução.
Mas o que acabamos de dizer nada tem que ver com o princípio constitucional da irretroatividade da lei penal mais grave (art. 5º, XL, da CF), pois se trata, em verdade, da incidência imediata de lei nova a fato que está acontecendo no momento de sua entrada em vigor. Assim, não é a lei nova que retroage, mas o caráter permanente do fato delituoso, que se protrai no tempo, e acaba recebendo a incidência legal em parte de sua execução e a expande para toda sua fase executória; nesse entendimento, repita-se, não há nenhuma contradição e tampouco violação ao mandamento constitucional, pois não se poderá pretender que apenas um fragmento da conduta (realizado sob o império da nova lei) seja punido pela lei atual, deixando o restante para a lei anterior, na medida em que o crime realmente é único e não havia se consumado. Nesse particular, não merece qualquer reparo a Súmula 711 do Supremo Tribunal Federal.
Contudo, apresentamos seriíssimas restrições à indigitada Súmula 711, relativamente à entidade crime continuado, na medida em que não se pode confundir alhos com bugalhos: nunca se poderá perder de vista que o instituto do crime continuado é integrado por diversas ações, cada uma em si mesma criminosa, que a lei considera, por motivos de política criminal, como um crime único. Não se pode esquecer, por outro lado, que “o crime continuado é uma ficção jurídica concebida por razões de política criminal, que considera que os crimes subsequentes devem ser tidos como continuação do primeiro, estabelecendo, em outros termos, um tratamento unitário a uma pluralidade de atos delitivos, determinando uma forma especial de puni-los”. Admitir, como pretende a Súmula 711 do STF, a retroatividade de lei penal mais grave para atingir fatos praticados antes de sua vigência, não só viola o secular princípio da irretroatividade da lei penal, como ignora o fundamento da origem do instituto do crime continuado, construído pelos glosadores e pós-glosadores, qual seja, o de permitir que os autores do terceiro furto pudessem escapar da pena de morte. Com efeito, a longa elaboração dos glosadores e pós-glosadores teve a finalidade exclusiva de beneficiar o infrator e jamais prejudicá-lo. E foi exatamente esse mesmo fundamento que justificou o disposto no art. 5º, XL, da Constituição Federal: a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o infrator. Não se pretenderá, certamente, insinuar que o enunciado da Súmula 711 do STF relativamente ao crime continuado beneficia o infrator!
Por certo, mesmo no Brasil de hoje, ninguém ignora que o crime continuado é composto por mais de uma ação em si mesmas criminosas, praticadas em momentos, locais e formas diversas, que, por ficção jurídica, são consideradas crime único, tão somente para efeitos de dosimetria penal. O texto da Súmula 711, determinando a aplicação retroativa de lei penal mais grave, para a hipótese de crime continuado, estará impondo pena (mais grave) inexistente na data do crime para aqueles fatos cometidos antes de sua vigência. Por outro lado, convém destacar que o art. 119 do Código Penal determina que, em se tratando de concurso de crimes, a extinção da punibilidade incidirá em cada um dos crimes, isoladamente. Essa previsão resta prejudicada se for dada eficácia plena à indigitada Súmula 711. Nesse sentido, já se havia pacificado o entendimento do STJ, consoante se pode perceber do seguinte aresto: “Consolidado o entendimento de que, no crime continuado, o termo inicial da prescrição é considerado em relação a cada delito componente, isoladamente” (RHC 6.502/MG, 5ª Turma, Rel. José Dantas, j. 5-2-1998, v. u.). Dessa forma, aplicando-se retroativamente a lei posterior mais grave, alterar-se-á, consequentemente, o lapso prescricional dos fatos anteriores, afrontando o princípio da reserva legal.
Enfim, a nosso juízo, venia concessa, é inconstitucional a Súmula 711, editada pelo STF, no que se refere ao crime continuado.
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