TEMPO DE SERVIÇO
O sistema remuneratório dos servidores públicos é muitas vezes mal interpretado. Apesar de tratados, no passado, como marajás, houve, nos últimos 20 anos, efetivos esforços que limitaram os gastos com pessoal, destacando-se, especialmente, a Emenda Constitucional 41/2003, que instituiu o regime de subsídio. Porém, o sistema não é perfeito e precisa ser aprimorado, como tenta fazer a PEC 63/2013, em tramitação no Senado Federal, ao pretender instituir a “parcela mensal de valorização do tempo de serviço”, algo semelhante ao antigo adicional por tempo de serviço.
A partir da EC 41/2003, o regime constitucional do subsídio impõe a apenas poucos categorias o pagamento, em parcela única, da remuneração do titular do cargo, o que não afasta, evidentemente, parcelas de caráter indenizatório (artigo 37, parágrafo 11º, da CF), que se somam ao subsídio constituindo a retribuição do servidor pelo exercício de seu cargo.
Celso Antônio Bandeira de Mello[1] ensina que, na vedação constitucional do artigo 39, parágrafo 4º, da CF “não se incluem as verbas indenizatórias, qual, por exemplo, o pagamento de 'ajudas de custo' para acobertar despesas de mudança de servidor designado para servir em local fora da sede, ou a do art. 57, § 7º, onde se prevê que os senadores e deputados perceberão, quando de sessão legislativa extraordinária, um pagamento de parcela 'indenizatória', não superior ao subsídio mensal que lhes corresponde. (…) [O] disposto no art. 39, §4º, tem que se entendido com certo contemporamentos, não se podendo admitir que os remunerados por subsídio, isto é, por parcela única, fiquem privados de certas garantias constitucionais que lhes resultam do § 3º do mesmo artigo, combinado com diversos incisos do art. 7º, a que ele se reporta”.
Contudo, o subsídio não importa a valorização do tempo de serviço do agente público. Comparando o subsídio inicial e o subsídio final dos integrantes de carreiras como o Ministério Público ou a Advocacia Geral da União, a diferença não passa de 20%, o que, em termos de política de recursos humanos, representa um desestímulo aos mais experientes.
Outrossim, as parcelas de caráter indenizatório, como o auxílio-moradia e o auxílio-alimentação, não se incorporam aos proventos de aposentadoria, pois o regime próprio de previdência, que observa critérios que preservam o equilíbrio financeiro e atuarial, tem caráter contributivo, excluindo-as do cálculo do benefício (artigo 37, parágrafo 11º, artigo 40, parágrafos 2º e 3º da CF). Assim, o problema da desvalorização do tempo de serviço se reflete na inatividade.
Nesse contexto, a PEC 63, de 2013, veio em bora hora, pois corrige uma injustiça: a desvalorização do tempo de trabalho de magistrados e membros do MP. Porém, da forma que está redigida, a proposta padece de inconstitucionalidades marcantes, que pode fadá-la ao fracasso.
A primeira delas é relegar as outras carreiras jurídicas mencionadas pela Constituição da República como essenciais à Justiça. Com efeito, o Ministério Público exerce, ao lado da Defensoria e da Advocacia, uma função essencial à Justiça. O Poder Judiciário é o ente ao derredor do qual esses órgãos exercitam suas atribuições. O MP, a Defensoria e a Advocacia Pública são igualmente essenciais a um mesmo Poder.
Sobre o assunto, Gilmar Mendes[2] ensina que “são também funções essenciais à Justiça a Advocacia Pública e Privada e a Defensoria Pública. O constituinte não as tratou com a minúcia que devotou ao Ministério Público — opção que não deve ser interpretada como valoração diferente da relevância dos entes que compõe esse capítulo da Carta. Todos, dentro das peculiaridades, são fundamentais para realização da Justiça”.
O texto da PEC 63/2013 comete o equívoco de se referir às demais carreiras jurídicas, a Defensoria Pública, a Advocacia Geral da União e o Departamento de Polícia Federal, mas apensar valorizar o tempo do defensor, do delegado ou do procurador federal apenas se estes deixarem as suas carreiras e ingressarem na magistratura ou no Ministério Público.
Segundo o texto atual da PEC, a Constituição passaria a ter a seguinte redação:
“Art. 93. ...........................................................................................
............................................................................................................
§ 1º Os magistrados fazem jus a parcela mensal de valorização por tempo de exercício, não sujeita ao limite previsto no art. 37, XI, calculada na razão de cinco por cento do respectivo subsídio a cada cinco anos de efetivo exercício em atividade jurídica, até o máximo de trinta e cinco por cento.
§ 2º Considera-se atividade jurídica, para fins do § 1º, aquela decorrente do exercício na magistratura, no Ministério Público, emcargos públicos de carreiras jurídicas e na advocacia.” (NR)
“Art. 128...........................................................................................
.......................................................................................................
§ 7º Os membros do Ministério Público fazem jus a parcela mensal de valorização por tempo de exercício, não sujeita ao limite previsto no art. 37, XI, calculada na razão de cinco por cento do respectivo subsídio a cada cinco anos de efetivo exercício em atividade jurídica, até o máximo de trinta e cinco por cento.
§ 8º Considera-se atividade jurídica, para fins do § 7º, aquela decorrente do exercício no Ministério Público, na magistratura, emcargos públicos de carreiras jurídicas e na advocacia.”
Na motivação da PEC 63, consta que a “reestruturação, atualização e implantação dos planos de carreira dos servidores públicos em geral, as carreiras ditas de Estado vêm tendo o elenco de parcelas remuneratórias convoladas em valor único — o subsídio — como facultado pelo artigo 37, parágrafo 8º, da Constituição. Assim, a Administração Pública, no que compete ao Poder Executivo, tem adotado tabelas de retribuição com valores crescentes, a partir do nível inicial até o final da carreira, incorporando, desse modo, também a parcela devida pelo tempo no cargo ou carreira — o antigo Adicional por Tempo de Serviço”[3].
É um pleito justo. Porém, da maneira como foi concebida, a PEC 63, de 2013, trará mais problemas do que soluções.
A exemplo dos magistrados e integrantes do Ministério Público, os membros da Defensoria Pública da União, da Advocacia-Geral da União são estruturadas em apenas três categorias, o que, segundo a motivação da PEC 63, os tornariam igualmente merecedores da parcela mensal de valorização.
É verdade que nas demais carreiras do Poder Executivo as promoções ocorrem de forma automática, independente de vaga, em classes e padrões. No entanto, que essas carreiras do Poder Executivo mencionadas na motivação da PEC não são carreiras jurídicas a que o texto PEC 63 se refere. Na Advocacia-Geral da União, por exemplo, a promoção para os dois níveis superiores à categoria inicial depende de vaga, como ocorre na magistratura ou no MP. Eis o sutil equívoco da Proposta de Emenda.
Se for mantida a redação sugerida pela PEC 63/2013 para o parágrafo 2º do artigo 93 e para o parágrafo 8º do artigo 128 da Constituição Federal, no qual se reconhece o tempo de serviço exercido em outros “cargos públicos de carreiras jurídicas”, será criado um impacto desproporcional com efeitos sem precedentes sobre todas as carreiras jurídicas do serviço público.
Para Daniel Sarmento[4], esse tipo de tratamento desrespeita o princípio da igualdade. Segundo ele, “embora a teoria do impacto desproporcional ainda não tenha sido explicitamente examinada pela jurisprudência constitucional brasileira, é importante destacar que nossos tribunais vêm se mostrando cada vez mais abertos à argumentação sobre o impacto real de determinadas medidas sobre grupos vulneráveis, independentemente da comprovação de qualquer intenção discriminatória. O caso mais importante e conhecido neste particular é o acórdão do STF, proferido na ADI 1.946-DF, julgada em 2003, em que se examinou a constitucionalidade da incidência do limite dos benefícios previdenciários de R$ 1,2 mil, estabelecido pela Emenda Constitucional 20, sobre o salário-maternidade. A consequência da aplicação do referido teto sobre o salário maternidade seria a transferência, para o empregador da gestante, da responsabilidade pelo pagamento da diferença entre o seu salário e o referido limite durante o período da licença maternidade. Ora, o argumento em que se louvou o STF para, por unanimidade, em decisão de interpretação conforme a Constituição, impedir a incidência questionada, foi o de que ela teria como efeito concreto o aumento da discriminação contra a mulher no mercado de trabalho. Como a isonomia entre gêneros constitui cláusula pétrea (artigo 5º, inciso I, combinado com artigo 60, parágrafo 4º, inciso IV, CF), entendeu-se que o limite dos benefícios não poderia ser aplicado ao salário-maternidade, sob pena de inconstitucionalidade”.
O impacto desproporcional se repete no texto atual da PEC 63. Se a proposta reconhece que o tempo dedicado pelo magistrado ou promotor em outros cargos é considerado atividade jurídica no cálculo parcela indenizatória de valorização, deveria também reconhecê-lo para os ocupantes dos cargos desses cargos, no exercício regular de suas atribuições.
Como não o fez, PEC 63/2013 criará a quixotesca situação segundo a qual o Procurador Federal, o Defensor Público Federal e o Delegado da Polícia Federal somente terão tempo de serviço valorizado se resolverem deixar sua carreira e se tornarem magistrados ou promotores. Ou seja, valoriza-se o tempo de serviço na AGU, na DPU e no DPF somente se os seus membros deixarem seus cargos.
Não é preciso destacar que isso não faz o menor sentido.
A solução para esse problema, que viola o direito fundamental da igualdade, é introduzir na PEC 63/2013 um parágrafo 4º ao artigo 131 e um parágrafo 5º ao artigo 134 da Constituição, reproduzindo, com as adaptações necessárias, a redação sugerida pela proposta ao parágrafo 2º do artigo 93 e para o parágrafo 8º do artigo 128 da CF. Essa sugestão, aliás, já foi apresentada, em requerimento administrativo dirigido ao Presidente do Conselho Superior da Advocacia-Geral da União ainda pendente de apreciação, pelo Procurador Federal Carlos Studart Pereira, à época representante eleito da carreira com assento naquele órgão.
Mas esse não é o único problema. A PEC 63 precisa de mais ajustes para não receber a pecha da inconstitucionalidade. Outro problema que apresenta se dá quando estende a chamada “parcela mensal de valorização” aos aposentados. Na verdade, ao fazê-lo, estará transformando a parcela mensal indenizatória, em remuneratória.
Com efeito, indenizar não é remunerar. Indenização recompõe um direito violado, restaura a legalidade malferida. O trabalhador receber auxílio-alimentação para recompor a necessidade de se alimentar fora de casa, em razão do exercício da função. O proprietário de um carro abalroado por um acidente tem direito a indenização para ressarcir seus prejuízos. Indenizar é isso. Pagar mais, em reconhecimento ao tempo de serviço, não é indenização, mas salário ou, no mundo dos sinônimos jurídicos, subsídio.
No serviço público, a concessão de indenizações, ao contrário da remuneração, não está ligada ao órgão ao qual o servidor se vincula, mas à situação fática, ao direito lesado que merece reparação. A remuneração do servidor, ao contrário, comporta distinção em razão do cargo, conforme artigo 37, parágrafo 11º e artigo 39, parágrafo 1º da Constituição Federal.
Indenização e remuneração seguem regimes jurídicos distintos, inclusive quando o servidor passa para a inatividade. Ambas as Turmas do Supremo Tribunal Federal, em diferentes precedentes interpretando a redação do artigo 40, parágrafo 4º, da Constituição Federal, assentaram que verbas indenizatórias são estranhas à remuneração do servidor e, por serem devidas apenas aos que estão em atividade, não se estende aos proventos dos inativos - RE 332.445/RS, relator ministro Moreira Alves, 1ª Turma, julgado em 16 de abril de 2002. No mesmo sentido: RE 232.019/RS, relator ministro Sepúlveda Pertence, 1ª Turma, julgado em 30 de outubro de 2001, e RE 231.326/RS, relator ministro Marco Aurélio, redator do acórdão ministro Nelson Jobim, 2ª Turma, julgado em 19 de setembro de 2002.
Não é à toa que não incidem imposto de renda, contribuição previdenciária e nem se aplica o teto constitucional sobre indenizações. Se indenizar e remunerar, sob o ponto de vista do tratamento constitucional, são coisas distintas, não há que se falar em equiparação de espécies remuneratórias ou aumento de vencimentos, afastando-se, assim, a aplicação do artigo 37, inciso XIII, da CF e da Súmula 339 do STF. Ou, nas palavras do ministro Luiz Fux, ao votar pela repercussão geral no RE 710.293/SC “a questão não se encerra na vigência do enunciado, mas na sua incidência ou não no auxílio-alimentação, tratado no pronunciamento como verba indenizatória livre do alcance da súmula”.
Tratar a parcela de valorização do tempo de serviço como verba indenizatória desconsidera o caráter contributivo, o equilíbrio financeiro e atuarial do regime de previdência dos servidores públicos (artigo 40, parágrafo 1º da CF), afinal, para o cálculo dos proventos de aposentadoria, por ocasião da sua concessão, serão consideradas as remunerações utilizadas como base para as contribuições do servidor aos regimes de previdência de que tratam este artigo e o artigo 201 da CF.
A extensão da parcela mensal de valorização para a inatividade cria um benefício sem sua respectiva fonte de custeio, o que compromete o direito social fundamental da aposentadoria, consagrado no artigo 7º, inciso XXIV da Constituição.
A PEC 63 de 2013 resolve o problema de valorização do tempo de serviço, mas cria tantos outros e lega, para as gerações futuras, déficits da previdência do servidor público.
Para contornar esse empecilho, bastaria a PEC 63/2013 ser emendada durante o processo legislativo, para alterar a redação do parágrafo 4º do artigo 39 da Constituição, dispondo que “O membro de Poder, do Ministério Público, da Defensoria Pública, da Advocacia-Geral da União, o detentor de mandato eletivo, os Ministros de Estado e os Secretários Estaduais e Municipais serão remunerados exclusivamente por subsídio fixado em parcela dupla, compreendida a remuneração e a parcela mensal de valorização, vedado o acréscimo de qualquer gratificação, adicional, abono, prêmio, verba de representação ou outra espécie remuneratória, obedecido, em qualquer caso, o disposto no art. 37, X e XI”.
A PEC 63, de 2013, é necessária para o aprimoramento e valorização do serviço público. No entanto, uma série de ajustes se fazem necessários durante o processo legislativo, para não condenar essa bela iniciativa aos atos normativos fulminados pela inconstitucionalidade.
[1] MELLO, Celso Antônio Bandeira. Curso de direito administrativo. 21ª ed., Malheiros: São Paulo, 2006, p. 259
[2] MENDES, Gilmar Ferreira, COELHO, Inocêncio Mártires e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 3ª ed., São Paulo: Saraiva, 2008, p. 999.
[3] http://www.senado.gov.br/atividade/materia/getPDF.asp?t=140444&tp=1
[4] Livre e Iguais – Estudos de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 151.
Ricardo Marques de Almeida é procurador federal no Rio de Janeiro.
Revista Consultor Jurídico
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