Existe uma história que Daniela Skromov já ouviu centenas de vezes. O mesmo começo, meio, fim e os mesmos personagens, as mesmas vítimas. São os autos de resistência, nome dado às mortes provocadas por policiais em serviço. “Chegamos, fomos recebidos a tiros e obrigados a revidar. Atiramos, o suspeito foi a óbito, nenhum policial foi ferido e nenhuma viatura atingida”, relembra a coordenadora do Núcleo Especializado de Cidadania e Direitos Humanos da Defensoria Pública de São Paulo. Acostumada a ajudar as famílias das vítimas de abusos da polícia a buscar reparação do Estado, Daniela questiona o roteiro contado pelos PMs para justificar as mortes praticadas.
“Uma realidade tão complexa comportaria a mesma narrativa sempre? Nos outros crimes de homicídio existem mil dinâmicas: arranhão, crime passional, jurou de morte...”, afirma a defensora. “Essa é sempre uma narrativa faroeste padrão que desafia a inteligência”. De acordo com ela, se os bandidos atiraram primeiro nesses casos, era natural que fossem bem sucedidos na maioria das vezes, já que têm o elemento surpresa a seu favor. “Mas não é o que ocorre. Ou a bandidagem é ruim de pontaria, de estratégia ou então a narrativa está errada”, diz. “Talvez todas as opções estejam corretas”.
Resposta. Tem uma coisa que é típica de democracias de baixa densidade, sem consolidação, comum em países muito desiguais e com forte herança autoritária, que é o caso do Brasil. Existe uma modulação da percepção de ilegalidade. Não é a violação em si que causa espanto à sociedade, é a qualidade da vítima. É mais ou menos assim: conforme a hierarquia social da vítima me causa mais ou menos espanto a violação do direito dela. Ou melhor, identifico como violação de direito na medida em que a pessoa tem uma posição social mais alta. Se ela tem uma posição social mais baixa, não identifico como uma violação de direito.Pergunta. Por que é aceitável socialmente que o morador de periferia tenha um tratamento injusto nas mãos do Estado?
P. Como isso se reflete no Judiciário?
R. Essa modulação está presente na leitura dos aplicadores da lei e do sistema de Justiça como um todo: começa com a polícia e acaba com o Judiciário. É como se vários tipos de óculos fossem utilizados para enxergar e detectar se aquilo é uma violação de direitos ou não. Tome como exemplo crimes sexuais. Neles basta a palavra da vitima para condenar o acusado. Isso é muito comum. Costuma se dizer que este tipo de crime acontece na calada, por isso fica difícil ter testemunha. Logo basta a palavra da vítima, mesmo que seja criança, para ser aceita pelas autoridades. Agora veja como é em um caso de tortura de um suspeito, ou de alguém que não tenha a ficha limpa: pode existir um laudo dizendo que ele sofreu lesão, e a palavra dele afirmando que sofreu lesão. Aí o argumento do juiz é: ‘a palavra da vítima restou isolada nos autos’. São dois casos em que a palavra da vítima é encarada de forma diversa. Em um dos casos a palavra serve para condenar, e no outro ela não tem força suficiente nem para dar início a um processo criminal por tortura. Porque não só a vítima é uma pessoa considerada exterminável, alguém cuja palavra vale menos, como os acusados são agentes estatais.
P. Qual a relação que o Ministério Público tem com os suspeitos apresentados pela Polícia?
R. A cadeia é cheia de gente azarada e fisicamente débil. Porque eu digo isso: todo processo que gera uma cadeia é geralmente uma prisão em flagrante, que ocorre na rua ou no barraco. É um vulnerável que é capturado, seja porque tropeçou, não tem amigos, está fraco fisicamente, ou porque mora em um barraco onde ninguém pede licença para entrar, é passível de invasão. É deste tipo de gente que a cadeia está cheia. Quem coloca elas lá é a policia, e quem as mantêm lá é o MP e o Judiciário. O MP vê nessas pessoas a grande criminalidade, e tem a necessidade de isolá-las do convívio social. Quando na verdade, na maior parte, essas pessoas fazem integram uma criminalidade banal, seja tráfico de pouca quantidade de drogas, sejam crimes sem violência. O MP em São Paulo tem como clientela indesejada - mas que ele detesta e vê como isolável - essa parcela da população, capturada pela polícia e pobre. E no final ele acaba agindo como o braço jurídico da PM. E o público que lota as prisões é em geral esse mesmo público que é morto pela polícia. E aí, me parece que o MP não consegue ter a isenção valorativa necessária para defender essas pessoas contra quem ele próprio estabelece uma cruzada.
Há uma mistura de apoio ideológico valorativo à cultura da matança, com o medo, com a cultura do compadrio, com uma cultura burocrática
P. O promotor Rogério Zaggalo, que em 2013 disse que se a Tropa de Choque matasse manifestantes ele arquivaria o processo, não é exceção?
R. Não. Com a diferença que ele tem menos freios inibitórios. Se bem que agora ele tem moderado suas declarações, talvez por ter sido punido. Mas ele continua sendo um símbolo de um órgão que não cumpre com seu papel fundamental, que seria realizar um controle externo sério, independente e imparcial da atividade da polícia. O que implicaria em assumir investigações.
P. Além de pedir o arquivamento do processo, de que outras maneiras um promotor colabora para inocentar policiais que matam?
R. Às vezes é normal denunciarem policiais para dar uma satisfação social, quando é um caso de muita pressão, e depois pedem a soltura ou fazem uma acusação de baixa qualidade em termos de veemência. É importante lembrar que o tribunal do júri é um pouco como um teatro. Já vi um promotor, durante os júris dos highlanders, [apelido dado a um grupo de extermínio da PM que agia na zona sul de São Paulo], que cortavam as mãos e cabeça da vítima, o promotor fazia a acusação lendo ‘bláblábláblá’, e os jurados dormindo. E aí chega o advogado de defesa e faz um espetáculo. No júri, o teatro é meio caminho andado, e às vezes é como se formalmente o promotor trabalhasse na acusação, mas materialmente trabalhasse na absolvição.
P. Os jurados que inocentam policiais mesmo com provas contundentes contra a tropa, o fazem por ideologia?
R. Acho que a resposta transita entre um apoio social, na crença de que essas pessoas [supostos bandidos] devem morrer, porque não valem nada, e o medo. Acho que esses advogados de defesa ganham os casos por instigar algo que é a síntese desses dois discursos. Eles falam para o júri: ‘E depois, quem vai salvar vocês? Quando o bandido chegar vocês vão chamar quem? O Batman?’. É um discurso alterado, inflamado em tom de voz. Os advogados despertam um medo profundo nas pessoas, o que é natural com qualquer um que lida com a polícia quando a polícia está no banco dos réus. Juízes, promotores, defensores... É normal lidar com esse medo, é humano. Você não está falando apenas com uma pessoa armada, mas sim com cem mil pessoas armadas. Existe um espírito de corpo fortíssimo na Polícia.
Me parece que o MP não consegue ter a isenção valorativa necessária para defender essas pessoas contra quem ele próprio estabelece uma cruzada
P. Os promotores têm medo de peitar a policia?
R. Existem promotores e promotores. Tudo que dá errado é um caldeirão de variáveis, isso é um fenômeno complexo. Existe um apoio ideológico de alguns ao extermínio de indesejáveis. O Zagallo externou isso. Ele é um símbolo de algo maior. Há uma mistura de apoio ideológico valorativo à cultura da matança, com o medo, com a cultura do compadrio, com uma cultura burocrática, que é muito comum, de fazer o trabalho nos estritos termos que você dá o mínimo de satisfação social, mas você não toma aquilo para si como algo fundamental. Enfim, típica cultura do serviço público no pior sentido da palavra.
P. Você falou na cultura do compadrio...
R. Sim, ela existe no sistema de Justiça. Policiais militares fazem a escolta de juízes e promotores. Os promotores precisam da investigação da policia para realizar o seu trabalho, porque ao contrário do que os cidadãos pensam, os promotores não investigam. Eles têm poder para isso, mas não investigam em São Paulo. Em oito anos nunca vi uma investigação autônoma do MP. Raríssimas vezes o juiz pede outro promotor quando discorda do pedido de arquivamento feito pelo MP. Juízes, promotores e defensores convivem diariamente entre si. Já ouvi de juízes: ‘nossa, tive uma briga com aquele promotor, agora não posso me indispor com ele, convivo todo dia com ele’. E pragmaticamente falando, isso acontece. Assim como já ouvi defensor falar: ‘Sei que o que o juiz faz é injusto, mas se eu levar a ferro e fogo todas as decisões dele, ele desconta nos meus réus, ele desconta em outros casos’. É algo pernicioso do hábito, da rotina.
P. As investigações são mal feitas?
A maioria dos condenados por tráfico são condenados tendo como base apenas a palavra dos policiais
R. Muito mal feitas, com muitas falhas. Não temos uma polícia investigativa estruturada, e isso não vale só para homicídios cometidos por policiais. Eu garanto que a imensa maioria dos presos é em flagrante, porque não existe investigação. Na maior parte dos casos que temos aqui, não tentaram nem ouvir testemunhas oculares dos crimes. Sabe aquela diligência de ir ao local e ouvir as pessoas? A imensa maioria dos casos é arquivado sem essa diligência. A maior parte é arquivado sem que se puxe a ficha do PM, sem que se veja em quantos casos com mortes ele já se envolveu. Estamos em uma média de 800 casos de auto de resistência por ano, e a maior parte arquivada sem a devida investigação. A Polícia Civil teria que entregar um produto mínimo, e o promotor, vendo que foi insatisfatório, teria que mandar de volta. Na maioria dos casos a Civil não faz e o MP não cobra nem investiga.
P. Qual o valor da palavra de um policial em um caso de tráfico ou em um auto de resistência?
R. Como não há investigação, a maioria das prisões são em flagrante, e a maioria dos condenados por tráfico são condenados tendo como base apenas a palavra dos policiais. Isso dá um poder de carta branca para os PMs, os juízes talvez não tenham a dimensão disso. Os policiais sabem que chegando lá no processo penal, eles têm o poder acima da lei, porque a palavra deles vale muito mais e vale por si. A maior parte dos autos de resistência é arquivado apenas com a palavra dos policiais como testemunhas, e pasmem, dos policiais envolvidos. Em mais de 90% dos casos isso acontece: o promotor pede arquivamento e o juiz aceita.
P. Como uma investigação precária prejudica o esclarecimento de um suposto auto de resistência?
R. Na maioria dos autos de resistência se diz que os bandidos atiraram primeiro. Não é nem sequer dito nem periciado onde esses tiros foram parar. É um nível baixo, inaceitável do ponto de vista objetivo, seguindo o Código Penal. Em alguns casos os policiais plantam arma na mão do morto, para embasar a versão de que houve confronto. Uma perícia datiloscópica [que verifica impressões digitais], te desafio a encontrar um processo que tem isso. Se fizesse isso nas supostas armas encontradas com bandidos, iria encontrar digitais de policiais. Não se preserva cena do crime... É algo que é arquivado basicamente com base no discurso dos policiais e na desconstrução das vítimas enquanto pessoas. Não existe objetividade e racionalidade, como se esperaria em uma investigação.
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