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segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Foucault, o corpo e o poder disciplinar

Introdução

    Ao afirmar que “em qualquer sociedade, o corpo está preso no interior de poderes muito apertados, que lhe impõem limitações, proibições ou obrigações” (FOUCAULT, 2004, p. 126), Foucault já explicita que micropoderes perpassam todo o corpo social, acarretando em transformações e modificações de condutas nos indivíduos. O corpo social, ao longo dos séculos, se consolida como algo fabricado, influenciado por uma coação calculada, esquadrinhado em cada função corpórea, com fins de automatização.
    O homem é o principal alvo e objeto do poder, que tem como meta, a tarefa de incorporar nos corpos características de docilidade. É dócil “um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado” (Ibid, p. 126). Suas formas de modelagens são dadas através do adestramento, sendo utilizado como uma poderosa ferramenta de controle, que age de forma disciplinadora, considerado como uma das “fórmulas gerais de dominação” (Ibid, p. 126).
    Assim “a disciplina, segundo a genealogia foucaultiana, diz respeito tanto a uma modalidade de poder que se caracteriza por medir, corrigir, hierarquizar, quanto torna possível um saber sobre o indivíduo” (PINHO, 1998, p. 189). Sob o olhar da disciplina existem técnicas que norteiam todos os processos de modelagem.
As técnicas de controle disciplinar
    Fórmulas pelas quais o poder se exemplifica:
  • Escala. Tem como premissa o trabalho no detalhe, agindo sobre o corpo de modo infinitesimal, exercendo “sobre ele uma coerção sem folga” (FOUCAULT, 2004, p. 126).
  • Objeto. Onde “se faz mais sobre as forças do que sobre os sinais” (Ibid, p. 126).
  • Modalidade. Controle do tempo, espaço e movimento: “coerção ininterrupta, constante, que vela sobre os processos da atividade mais que sobre seu resultado” (Ibid, p. 126).
    A modelagem dos corpos atribui caracteres de docilidade, tornando o corpo útil e produtivo ao aumentar sua submissão e obediência. Seria, portanto, uma política de coerções, uma ideologia calculada no detalhe que tem como finalidade o controle e modelagem de atitudes, gestos e comportamentos.
    Ressaltando que este poder coercitivo se aplica na sociedade de diferentes modos, de formas múltiplas, através “de origens diferentes, de localizações esparsas, que se recordam, se repelem, ou se imitam, apóiam-se uns sobre os outros, distinguem-se segundo seu campo de aplicação, entram em convergência e esboçam aos poucos a fachada de um método geral” (Ibid, p.127).
    A disciplina produz, para a modelagem e controle dos corpos, ferramentas que vão nortear todo o processo de construção do poder e normatização das condutas, adotando caracteres para sua aquisição: “constrói quadros; prescreve manobras; impõe exercícios; enfim, para realizar a combinação das forças, organiza ‘táticas’” (Ibid, p. 150). Diante destes processos progressivos é retirado cada momento do tempo dos indivíduos, perpassando uma escala gradual e evolutiva em busca do aumento de suas potencialidades, criando assim “uma nova maneira de gerir o tempo e torná-lo útil, por recorte segmentar, por seriação, por síntese e totalização” (Ibid, p. 145).
    A disciplina “visa não unicamente o aumento de suas habilidades, nem tampouco aprofundar sua sujeição, mas a formação de uma relação que no mesmo mecanismo o torna tanto mais obediente quanto é mais útil, e inversamente” (Ibid, p. 127). Portanto, ela fornece subsídios para o aprimoramento das técnicas, aumentando em grandeza diretamente proporcional suas utilidades, enraizadas em preceitos de docilidade. Seriam, portanto, para Foucault, “métodos que permitem o controle minucioso das operações do corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças e lhes impõem uma relação de docilidade-utilidade” (Ibid, p. 126).
A reprodução das disciplinas
    A disciplina aflora nesta modelagem de condutas revelando-se de diversas formas:
1.     Princípio da localização imediata ou quadriculamento
    O poder disciplinar cria um espaço analítico para “vigiar o comportamento de cada um, apreciá-lo, sancioná-lo, medir as qualidades ou os méritos” (Ibid, p. 131). Meio para se conhecer, controlar, vigiar e também, de “articular essa distribuição sobre um aparelho de produção que tem suas exigências próprias” (Ibid, p. 132), visando a manipulação dos processos para se atingir o resultado eficaz.
    Na busca do melhor rendimento e aumento de produtividade, o poder disciplinar parte para o controle das atividades, disciplinando o tempo dos indivíduos: “trata-se de constituir um tempo integralmente útil” (Ibid, p. 137). Criam-se gestos idênticos e repetitivos para aumentar a precisão dos movimentos, aumenta-se a relação de afinidade entre os corpos e os objetos, para a busca do ápice, até sua utilização exaustiva: “o máximo de rapidez encontra o máximo de eficiência” (Ibid, p. 140). A rapidez é ensinada como uma virtude, uma qualidade tão importante quanto à eficiência.
2.     Elementos intercambiáveis com função de esquematizar uma doutrina
    Frente a isso o poder disciplinar “individualiza os corpos por uma localização que não os implanta, mas os distribui e os faz circular numa rede de relações” (Ibid, p. 133). Intenção de criar um conjunto, com funções que se diferem, mas que se regem do mesmo modo (homogêneo), e para um objetivo comum.
    A grande ferramenta utilizada pelo poder disciplinar para dissipar sua dominação é o exercício, que dentre algumas de suas características está a de servir “para economizar o tempo da vida, para acumulá-lo de uma maneira útil, e para exercer o poder sobre os homens por meio do tempo assim arrumado” (Ibid, p. 146).
    A composição das forças surge com uma proposta de constituir um meio produtivo que vai de certo modo “compor forças para obter um aparelho eficiente” (Ibid, p. 147). Surgindo a idéia do homem como uma máquina multissegmentar, cuja finalidade é a ação conjunta para a busca de um melhor rendimento.
    Este, portanto, se tornou o “ponto chave” da manipulação das condutas (controle do tempo, do espaço e das funções corpóreas), cuja função é a de moldar corpos para fins e objetivos de transformação do homem em “máquina”, tendo como seu combustível o estímulo, para o ápice e a plenitude de funções, buscando a todo custo a melhoria do desempenho. Tornando o homem produtivo, o poder disciplinar o tem explorado para fins de dominação.
Conclusão
    Na sociedade contemporânea, estamos submetidos a um tipo de poder disciplinar capaz de gerir todo um grupo social, com interesses que norteiam todo um aparato de ideologias, que vão moldar e normalizar condutas. O poder age “tomando os corpos dos indivíduos como alvos e pontos de aplicação, investindo-os e produzindo-os conforme uma ordem moral, social, política, produtiva e normativa capitalista-burquesa” (PRADO FILHO; TRISOTTO, 2008, p. 117).
    Esta sociedade faz uso de “técnicas que são simplesmente denominadas ‘disciplina’. A disciplina é uma anatomia política do ‘detalhe’, é dispositivo tático de poder, sustentado por uma racionalidade econômica ou técnica. A disciplina torna-se arte e técnica de compor forças para obter um aparelho eficiente” (WELLAUSEN, 2007, p. 9-10).
    “Essas técnicas que permitem o controle detalhado das operações do corpo, que realizam a sujeição permanente de suas forças e lhes impõe uma relação de docilidade-utilidade, são o que Foucault chama de ‘disciplinas’. Estas visam à formação de uma relação que torna o corpo humano tanto obediente quanto útil, constituindo uma política de coerções que trabalham sobre o corpo, ‘uma manipulação calculada de seus elementos, de seus gestos, de seus comportamentos’. Essa política passa a ter domínio sobre o corpo dos outros, para que operem como se quer, através das técnicas. A disciplina, arte das técnicas para a transformação, tem por alvo os indivíduos em sua singularidade. E o poder de individualização tem como instrumento a vigilância permanente, classificatória, permitindo distribuir os indivíduos, julgá-los, medi-los, localizá-los e, por conseguinte, utilizá-los ao máximo. Desta forma, ‘a disciplina fabrica corpos submissos e exercitados, corpos ‘dóceis’” (NIEMEYER; KRUSE, 2008, p. 464).
    A disciplina ao agir no detalhe, vai agir sobre os corpos nas mais importantes e também atenuadas incumbências do dia a dia: do simples andar com uma vestimenta característica, ao controle, especifico, em dietas alimentares. Atualmente, investem nos corpos como “uma tecnologia política que desestabiliza fronteiras entre o familiar e o estranho nas práticas corporais contemporâneas” (FRAGA, 2006, p. 63).
    Foucault considera o poder capitalista como uma das formas aparentes da disciplina, exercendo uma vigilância disciplinar sobre o proletário, com o pressuposto de mantê-los sempre sobre seu domínio, tornando-os passivos e não rebeldes. Este “poder capitalista, possui uma positividade no sentido de pretender gerir a vida dos indivíduos e das populações para utilizá-los ao máximo, com um objetivo ao mesmo tempo econômico e político: torná-los úteis e dóceis, trabalhadores e obedientes.” (MACHADO, 2004, p. 30).
    Na proposta de gerir grupos o poder faz uso do controle para otimizar ganhos (resultados): “máximo de rapidez e eficácia” (Ibid, p. 31), maior ganho em menor tempo.
    No que tange a modelagem dos corpos, as técnicas da disciplina visa a criação de “não apenas corpos padronizados, mas também subjetividades controladas” (MISKOLCI, 2006, p. 682). O controle dos corpos se tornou tão importante na atualidade que se constata através da aparência física tudo “aquilo que cada um quer mostrar de sua subjetividade” (SANT'ANNA, 2004, p. 20).
    A noção de beleza exterior se tornou tão importante que marca a atualidade como a sociedade da aparência, dos rostos e corpos belos e esbeltos, tudo, graças aos mecanismos exigidos e tidos como verdadeiros pelo poder disciplinar que fazem do uso de atributos, como veículos de informação, para controlarem a sociedade.
Referências bibliográficas
  • FOUCAULT, M. “Os corpos dóceis”. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 29ª ed. Tradução de Raquel Ramalhete. Petrópolis, RJ: Vozes, 2004a, p. 125-52.
  • FOUCAULT, M. “Os recursos para o bom adestramento”. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 29ª ed. Tradução de Raquel Ramalhete. Petrópolis, RJ: Vozes, 2004b, p. 153-72.
  • FRAGA, A. B. “Anatomias emergentes e o bug muscular: pedagogias do corpo no limiar do século XXI”. In: Carmen Lúcia Soares. (Org.). Corpo e História. 3 ed. Campinas: Autores Associados, 2006, v. , p. 61-77.
  • MACHADO, R. “Duas filosofias das ciências do homem”. In: Calomeni, T. C. B. (Org.). Michel Foucault: entre o murmúrio e a palavra. Campos, RJ: Editora Faculdade de Direito de Campos, 2004, p. 15-37.
  • NIEMEYER, F; KRUSE, M. H. L. “Constituindo sujeitos anoréxicos: discursos da revista Capricho”. Texto contexto - enferm. ,  Florianópolis,  v. 17,  n. 3, set.  2008, p. 457-65.
  • PINHO, L. C. “As tramas do discurso”. In: Castelo Branco, G.; Baêta Neves, L. F.. (Org.). Michel Foucault: da arqueologia do saber à estética da existência. Londrina/Rio de Janeiro: Nau, 1998, v., p. 183-192.
  • PRADO FILHO, K. ; TRISOTTO, S. “O corpo problematizado de uma perspectiva histórico-política”. Maringá: Psicologia em Estudo, v. 13, n. 1, 2008, p. 115-21.
  • REVISTA EDUCAÇÃO – Especial Biblioteca do Professor 3: Foucault pensa a Educação, São Paulo, 1º mar. 2007.
  • SANT'ANNA, D. B. “É possível realizar uma história do corpo?”. In: SOARES, Carmen. (Org.). Corpo e História. Campinas: Autores Associados, 2004, v.1. p. 3-23.
  • WELLAUSEN, S. S. “Os dispositivos de poder e o corpo em Vigiar e punir”. In: Rago, M.; Martins, A. L. (Orgs.). Revista Aulas. Dossiê Foucault. Campinas, SP, n. 3, dez. 2006/mar. 2007, p. 1-23.
     
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