Daniel Cerqueira
Rio de Janeiro (RJ)
Doutor em economia pela PUC-Rio, mestre em economia pela FGV-Rio, desde 1996 é pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). Desde 1999 tem produzido pesquisas, principalmente, nos seguintes temas: violência e criminalidade, segurança pública e economia do crime
Nesta entrevista Daniel Cerqueira apresenta as principais conclusões de sua tese de doutorado intitulada “Causas e conseqüências do crime no Brasil, onde cria diversos indicadores inéditos no Brasil para compreendermos melhor a situação da criminalidade brasileira nos últimos anos.
Como você começou seus estudos sobre criminalidade?
Em 1999, o Prof. Luiz Eduardo Soares me convidou para assessorá-lo quando ele era Coordenador de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro. Naquele momento eu lhe respondi que não entendia nada de crime e que o meu negócio era pesquisa em macroeconomia e finanças, tendo em vista que a minha formação acadêmica e profissional não só no mestrado em economia da FGV, mas como analista do Banco Central e pesquisador do Ipea era toda nessa área. Contudo, O Luiz Eduardo, com muita astúcia, usou um argumento irrefutável e sedutor aos olhos de um economista, da lei da oferta e da procura, em que já havia centenas de bons economistas trabalhando com macroeconomia, mas pouquíssimos estudando crime. Nesse momento eu capitulei e desde então venho estudando o assunto junto ao grupo de estudo de violência que formamos no Ipea.
Qual é a idéia principal da sua tese?
Minha tese, intitulada “Causas e conseqüências do crime no Brasil”, contém três artigos diferentes, com três temas diferentes e três metodologias diferentes. No primeiro artigo tentamos contar a história dos homicídios no Brasil desde 1981, quando produzimos diversos indicadores básicos que não existiam no Brasil, como a prevalência de drogas ilícitas, de bebidas alcoólicas e de armas de fogo, entre outros. Aqui a intenção era saber se o conhecimento que dispomos na academia poderia ajudar concretamente no entendimento da questão, no sentido de documentar os determinantes mais importantes que alimentaram a dinâmica dos homicídios no Brasil e o seu grau de importância a cada década. No segundo artigo, queríamos investigar cuidadosamente o papel das armas de fogo para estimular ou desestimular os crimes violentos e contra o patrimônio. E por fim, o terceiro capítulo envolve teorias matemáticas e econômicas mais rebuscadas, onde estimamos o custo do bem estar da violência letal no Brasil.
E qual foi a motivação para esta pesquisa?
Eu queria entender as causas que levaram a essa enorme tragédia, em que um milhão de pessoas foram assassinadas no Brasil, nos últimos 30 anos. Além disso, como a arma de fogo aparecia sempre como elemento com alto potencial criminogênico, pensávamos em investigar com maior nível de detalhamento e rigor científico a relação causal entre armas e crimes violentos e contra o patrimônio. Um grande incentivo para essa pesquisa se deu numa reunião do FBSP aqui em São Paulo, quando o pesquisador Túlio Kahn, que ressaltou a importância do estudo sobre armas e desarmamento, disponibilizou uma valiosa base de dados. Por fim, com base em um método de aferir a disposição marginal para evitar a violência letal, estimamos que, a cada ano, os custos das mortes violentas representam 2,3% do PIB, o que demonstra que este é um problema crucial a ser estudado.
É muito difícil o estudo de áreas tão complexas como essas?
Sim, particularmente por dois motivos: pela absurda escassez de dados minimamente confiáveis (pelo menos aqui no Brasil) e pela necessidade de desenvolver métodos quantitativos que permitam uma interpretação de causa e efeito entre os objetos estudados. Contudo, outro ponto que julgo crucial e que muitas vezes dificulta o avanço dos estudos nessa área é a necessidade de superarmos barreiras epistemológicas que decorrem da discussão multidisciplinar. Tendo em vista a complexidade do fenômeno em questão, a sua melhor compreensão depende de se conjugar olhares e saberes diferentes. Deste modo, o conhecimento do economista, do sociólogo, do psicólogo e do policial, entre outros, são complementares e não concorrentes. Contudo, Há sempre diferenças de linguagens e metodologias, que muitas vezes fazem com que um não entenda muito bem o outro.
E como isolar um efeito inserido em tamanha complexidade?
Vamos partir de um exemplo genial que um deputado do Sul nos deu recentemente quando afirmou num programa de TV que: “– Está vendo, no Rio Grande do Sul há muitas armas, porém a taxa de crimes é baixa. Logo não há relação entre a prevalência de armas de fogo e crimes. Digo que o exemplo é genial, pois em apenas uma frase o deputado revelou a simploriedade e o despreparo intelectual de quem está acostumado a fazer política pública fazendo regra de três. O argumento é falso porque a taxa de crimes depende de um conjunto de fatores entre os quais a prevalência de armas. Nesse caso, é possível que os demais determinantes como o trabalho da polícia, os incentivos socioeconômicos, etc. estejam atuando no sentido de manter a taxa de crimes baixa, a despeito das armas. Para uma análise criteriosa, o efeito dos outros determinantes possíveis, bem como das especificidades das cidades têm que ser expurgados. Esse exemplo é similar ao caso do Silva que tem uma alimentação saudável, com verduras e fibras, mas é ao mesmo tempo um sedentário e fumante contumaz e termina por sofrer um enfarte. Ninguém em bom juízo, ao observar o Silva, diria que não há uma relação entre alimentação saudável e probabilidade de sofrer um enfarte. A questão aqui é que o efeito da alimentação saudável foi analisado por meio de experimentos controlados, como é possível se fazer nas ciências físicas e biomédicas. Nas ciências sociais, contudo, os experimentos controlados são raros. É exatamente aí que se insere a importância de uma área de estudo em econometria conhecida como “identificação causal”, onde a idéia passa por desenvolver uma metodologia para imitar um experimento natural (ou seja, isolar o efeito da variável que se quer estudar), mas com indicadores não controlados em laboratório. Basicamente, para o método funcionar há que encontrar um indicador que tenha causado impacto na variável que se quer estudar o efeito, mas que não tenha qualquer outra relação com a variável que, potencialmente, sofre o efeito. No caso, das armas, essa variável foi a sanção do Estatuto do Desarmamento, que gerou impacto na demanda por armas, mas não tem relação alguma com o crime, a não ser por meio das armas.
E como se deu a análise histórica dos homicídios no Brasil desde 1981?
Como eu disse, a idéia era investigar se a evolução dos homicídios no Brasil era um puzzle, ou podia ser explicada pelo conhecimento disponível na academia. Para fazer essa análise, acompanhamos a evolução de oito fatores causais, entre aqueles em que há maior grau de consenso na literatura internacional sobre o tema, sendo eles: os fatores socioeconômicos (desigualdade de renda e renda domiciliar per-capita), os fatores demográficos (proporção de homens jovens na população), a taxa de encarceramento, a taxa de efetivo policial e a prevalência de armas de fogo, de drogas ilícitas e de bebidas alcoólicas. Nesse ponto, o maior obstáculo foi justamente o de produzir tais indicadores, absolutamente cruciais para a análise do crime, que não existiam no Brasil para o período, desde 1981. Em segundo lugar, tomamos emprestado dos vários estudos publicados no Brasil e em outros países, as estimativas do efeito causal de cada um dos fatores listados sobre a taxa de homicídios. Em particular utilizamos um indicador conhecido em economia como “elasticidade”, que mede o efeito percentual da variação de uma variável sobre outra. Por exemplo, estimamos que a elasticidade entre armas de fogo e taxa de homicídios era em torno de 2. Isso quer dizer que a cada 1% do aumento na prevalência de armas nas cidades a taxa de homicídios deveria variar +2%. Então, a partir da evolução dos fatores selecionados – que julgamos ser mais importantes para determinar a taxa de crime – e das elasticidades estimadas, publicadas em revistas especializadas, calculamos o efeito potencial de cada um dos fatores sobre a taxa de homicídios.
E foi fácil encontrar essas bases de dados?
Na verdade, não. Descobrimos até um caso de censura de informações absolutamente públicas que era, na verdade, ainda um resquício da ditadura. Trata-se dos dados sobre o efetivo das polícias militares. Conforme apuramos, por uma questão de “segurança nacional”, a categoria profissional de policiais militares foi a única a não ser explicitamente considerada em todas as pesquisas do IBGE até 1999, inclusive nos censos populacionais. Também, até alguns meses atrás, o Ministério do Emprego e Trabalho, que produz uma base de dados denominada RAIS (Relação Administrativa de Informações Sociais), censurava essa informação, até o momento em que vários colegas, por intermédio do FBSP, conseguiram a liberação dos dados, que foram publicados no Anuário 2010 do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Por outro lado, tivemos que produzir vários indicadores para suprir lacunas ocasionadas pela inexistência de dados sobre a prevalência de drogas ilícitas, álcool e armas de fogo. Para tanto, analisamos os dados de cada indivíduo morto no Brasil desde 1981. A idéia era que observando como as pessoas morrem, muita informação poderia ser extraída da forma como essas viviam. Daí, verificamos os indivíduos que morreram por ingestão de cocaína e outras drogas ilícitas, por ingestão de álcool e por suicídio e homicídio por arma de fogo. A partir dessas informações construímos indicadores em linha com o que é feito na literatura internacional. Além disso, cruzamos dados provenientes de inúmeras fontes como Censos, PNADs, RAIS e Anuários Estatísticos, entre outros.
E a que conclusão você chegou? A origem do problema é social, demográfica, falta de polícia...
Logo no princípio descartamos a questão das bebidas alcoólicas. Verificamos que a sua prevalência era relativamente constante ao longo das três décadas, o que implica dizer que o crescimento da taxa de homicídios não poderia ser explicado por esse elemento, ainda que a ingestão de álcool tenha um efeito de fazer aumentar o crime violento. Aparentemente, o aumento das taxas de homicídios no começo dos oitenta se deu como conseqüência dos dramas socioeconômicos vividos naquele momento, que fez a renda per-capita diminuir 11,7% entre 1981 e 1983, ao passo que crescia substantivamente a desigualdade de renda. Essa estagnação econômica ocorreu num cenário de inchaço das grandes cidades que fez a população das metrópoles aumentar 47% entre 1970 e 1980. Nesse momento, o stress social e os incentivos socioeconômicos a favor do crime foram os ingredientes para fazer detonar a violência urbana. Nesse momento, a resposta do Estado se deu por aumentar o efetivo policial e pela tentativa de aprisionar um maior número de indivíduos. Contudo, como o sistema de justiça criminal não estava preparado para o enorme desafio que se avizinhava, a partir de meados da década de oitenta fica explícito o processo de esgarçamento e de falência das polícias. Uma evidência desse processo é o fato de que enquanto no começo da década para cada 100 homicídios ocorridos a polícia prendia 61 homicidas, esse número era apenas de 32 ao final dos oitenta, um tributo a impunidade. Nos últimos anos dessa década, observou-se ainda um crescimento mais acentuado na demanda por drogas ilícitas e por armas de fogo. Essa mistura de impunidade e do estabelecimento de mercados ilícitos, que utiliza a violência como instrumento para garantir os contratos e expandir os mercados, esteve associada à explosão de homicídios na virada da década. Já nos anos 90, o papel das questões socioeconômicas e demográficas fica relegado a um segundo plano. Nesse período a sociedade aturdida com o crescimento da violência letal respondeu com a solução do “cada um por si”, quando se observou o crescimento vertiginoso da indústria de segurança privada e uma verdadeira corrida armamentista que só fizeram jogar mais lenha na fogueira dos homicídios. A reversão desse processo começa a ocorrer em 2000, quando vários fatores parecem confluir para um ciclo virtuoso da segurança pública no Brasil: o Governo Federal e os governos municipais começaram a atuar mais decisivamente na questão; os indicadores socioeconômicos e demográficos evoluíram de forma positiva; na maioria dos estados observou-se um aumento do efetivo policial e das taxas de encarceramento; e, após 2003, começa a haver um maior controle das armas de fogo. O fato negativo foi o aumento de 133% na demanda por drogas ilícitas (entre 2001 e 2007) e o alastramento desses mercados para várias regiões do país, outrora pouco violentas, o que tem levado a um processo de convergência das taxas de homicídios entre as várias unidades federativas.
E todos esses pontos foram suficientemente estudados pela Academia?
Nem tanto. Por exemplo, pelo que conheço, muito pouco se estudou sobre o impacto da segurança privada na sociedade brasileira. Um dos pontos que merece maiores investigações diz respeito ao fato de que na década de 1980, os rendimentos financeiros dos policiais caíram, enquanto os da segurança privada aumentaram. Claramente, a má remuneração do policial contribuiu para o sucateamento da instituição. Pior, má remuneração e ausência de mecanismos de controle quanto a desvios de conduta conduzem a um claro conflito de interesses, pois gera o incentivo para o mesmo profissional estar nos dois lados do balcão. Assim, quanto pior a situação da segurança pública, maiores os ganhos com a segurança privada. Outro ponto que carece de estudos é a questão que relaciona oportunidade no mercado de trabalho para os jovens e crimes. Na literatura internacional existem estudos que documentam que esta relação ocorre apenas nos crimes contra o patrimônio. Por fim, pouquíssimo sabemos sobre a questão das drogas e como desestimular a demanda e prevenir os crimes ocasionados pelos efeitos sistêmicos da existência do mercado ilícito. Este último tema constitui uma grande lacuna na literatura especializada e no debate de políticas públicas no mundo.
E quais os principais pontos em sua pesquisa sobre o desarmamento?
Do ponto de vista teórico, o desarmamento poderia gerar uma diminuição na taxa de crimes letais. Por outro lado, é possível imaginar que estando o cidadão de bem desarmado haveria um incentivo para o criminoso profissional perpetrar seus delitos sem o risco de ser repelido à bala. Se as duas hipóteses acima estivessem corretas, não haveria uma política pública inequívoca sobre armas que fizesse aumentar o bem-estar social. Portanto, a prova dos nove necessariamente passa por analisar empiricamente a questão. Então, o propósito dessa pesquisa era basicamente testar essas duas hipóteses: Será que o desarmamento tem efeitos para fazer diminuir os crimes violentos letais? Será que o desarmamento faz aumentar os crimes contra o patrimônio? Para responder a essas questões analisamos vários tipos de incidentes violentos e crimes contra o patrimônio em todos os municípios paulistas entre 2001 a 2007, com base nos dados do Ministério da Saúde (MS) e da Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo. Investigamos os homicídios registrados pela polícia, os homicídios registrados pelo MS, além dos homicídios por PAF, aqueles perpetrados apenas dentro das residências, bem como os suicídios e os suicídios por PAF. Analisamos ainda as lesões corporais dolosas, os latrocínios, os roubos de veículos e os delitos relacionados às drogas ilícitas. A análise empírica foi desenvolvida com base em um método que isolou possíveis efeitos de mudança no trabalho de polícia, questões associadas às especificidades dos municípios e o problema de causalidade reversa, em que possivelmente a maior taxa de crimes nas cidades poderia fazer aumentar a prevalência de armas. Portanto, os resultados obtidos podem ser interpretados como relações causais, muito mais do que meras correlações estatísticas. Basicamente os resultados indicaram que a cada 1% a mais de armas nas cidades há um aumento de 2% na taxa de homicídios. Por outro lado, curiosamente a taxa de lesões corporais dolosas aumentou em face do desarmamento. Ou seja, com menos armas em circulação, como diria o Maluf: fere, mas não mata. Em relação aos crimes profissionais, não há nenhuma relação estatística. Ou seja, o bandido não responde ao incentivo se há mais ou menos armas nas ruas. O que explica esse tipo de crime tem a ver com a impunidade e eficiência da polícia, incentivos socioeconômicos, mas não com a mera disponibilidade de armas. Moral da história: Menos armas menos crimes!
E qual sua opinião sobre um novo referendo sobre o desarmamento?
É uma discussão despropositada e oportunista. A sociedade já votou a questão há seis anos atrás. Querer voltar a esse debate hoje é um golpe contra a democracia, que iria dividir novamente o país e dissipar esforços em um ponto cuja efetividade é extremamente duvidosa. Melhor seria conjugar esforços para melhorar a Lei do ED e aprimorar os mecanismos para o controle, fiscalização e destruição das armas ilegais.
Por fim, qual o papel das drogas no perfil da criminalidade?
Para mim, o problema do século referente à segurança pública diz respeito à demanda por drogas ilícitas, sendo que as duas soluções propostas no âmbito internacional não deram resultados, que se referem à guerra às drogas e à redução de danos. Por um lado, após anos de bilionários orçamentos alocados ao combate às drogas, os EUA não conseguiram fazer reduzir a oferta dessas drogas. Por outro lado, a política de redução de danos, que é uma política importante de saúde pública, não toca sequer nos dois principais problemas: a prevenção e a redução da demanda e dos crimes violentos que decorrem da instituição do mercado ilícito. Precisamos entender os inúmeros canais que arrastam nossos jovens para as drogas, para evitar que esses venham a consumi-la pela primeira vez.
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