Chegará o dia em que o Supremo Tribunal Federal terá de analisar se a Lei Ficha Limpa ofende ou não o princípio constitucional da presunção de inocência (artigo 5º, inciso LVII, da Constituição da República). Opiniões favoráveis ou contras, o certo é que esse será mais um caso de grande contribuição analítica acerca da interpretação dos direitos fundamentais. Aí poderemos verificar, por puro empirismo, se o Tribunal usará o conceito de suporte fático amplo de direitos fundamentais, ou rumará pelos caminhos do chamado suporte fático restrito. A discussão é incipiente no Brasil, mas as diferenças são notáveis e levam a uma total reestruturação da concretização constitucional.
Qualquer argumentação fundada na teoria do suporte fático restrito realiza eliminações a priori no âmbito de proteção de um direito fundamental. Geralmente, tal procedimento baseia-se na seguinte fórmula: “não existe restrição ao direito X porque esse direito não abrange a hipótese Y”. O STF é farto em exemplos desse tipo de raciocínio. Cite-se o Mandado de Segurança 21.729, em que o Ministro Francisco Rezek afirmou que o sigilo bancário não é protegido pelo artigo 5º, inciso X, da CF porque este artigo fala em “intimidade”, conceito que não incluiria contabilidade. Ou, ainda, a ADI 2.566, na qual a Advocacia-Geral da União, tencionando defender o artigo 4º, parágrafo 1º, da Lei 9.612/1998, alegou que o “proselitismo” não é alcançado pelo âmbito proteção da liberdade de expressão, o que levaria à constitucionalidade da lei atacada[1].
Sob a perspectiva da teoria do suporte fático amplo, seria impossível realizar a exclusão a priori de quaisquer fatores isolados que possam de alguma maneira se relacionar com a presunção de inocência. O suporte fático amplo dos direitos fundamentais recomenda a extensão máxima do âmbito desses direitos, a ponto de incluir, a priori, a proteção de condutas consideradas como criminosas pelo ordenamento. Nessa linha, o direito à liberdade de expressão, por exemplo, abarca a priori a manifestação de palavras, gestos ou símbolos injuriosos ou caluniosos contra uma pessoa. Após a devida argumentação, entretanto, o usual é que essas manifestações ofensivas acabem por subsumir-se aos tipos penais respectivos.
Isso pode parecer estranho àqueles que travam primeiro contato com essa teoria, mas a menção às conseqüências dessa concepção pode ser esclarecedora. Primeiro, dizer que um direito fundamental não exclui de antemão a proteção de nenhum tipo de elemento isoladamente considerado não significa somente dizer que, a princípio, não há proibição imanente na seara dos direitos fundamentais. Exprime, sobretudo, que qualquer direito fundamental pode ser restringido – relatividade dos direitos – e que qualquer intervenção nesses direitos deve passar pela devida justificação constitucional. É dizer: o conceito amplo de suporte fático de direitos fundamentais, ao mesmo tempo que, em se tratando em direitos de defesa, potencializa a realização das liberdades humanas, exige uma forma de fundamentação qualificada quando o assunto é intervenção do Estado nessas liberdades.
Não se contenta, pois, em dizer que a intervenção X é lícita porque o direito fundamental Y não abrange determinada situação – morrendo aí a fundamentação, sem qualquer critério constituído. Ao revés, infiltra-se profundamente nas problemáticas do caso decidendo para alcançar a decisão constitucionalmente adequada.
Segundo, no plano da dogmática constitucional, a teoria do suporte fático amplo afasta-se da tradicionalíssima tripartição de José Afonso da Silva – normas de eficácia plena, contida e limitada. Não só todos os direitos fundamentais possuem eficácia pelo mero fato de estarem positivados, como também todos os direitos fundamentais podem sofrer restrições, inclusive os ditos de “eficácia plena”.
Terceiro, a teoria do suporte fático amplo é a única inteiramente compatível com a conhecida técnica de sopesamento dos direitos fundamentais proposta por Robert Alexy. Se os princípios são mandados de otimização, essa otimização só é possível quando a colisão ocorra de modo que o âmbito de proteção de cada um dos direitos colidentes não esteja restrito a priori.
No caso da Ficha Limpa, podemos ver o uso da teoria restrita do suporte fático quando os defensores da constitucionalidade da lei em apreço invocam o fato da presunção de inocência não abranger processos que não sejam da área criminal; ou, ainda, quando se limitam a dizer que a presunção de inocência não pode ser um direito “tão amplo assim”. Ainda que aqui não se faça apologia à inconstitucionalidade da restrição, o problema dessas assertivas é exatamente o explanado acima: tolhe do âmbito de proteção de um direito elementos isoladamente considerados sem que a argumentação seja convincente e sem que haja critérios adequados para tanto.
Pode-se dizer que é um caminho muito mais confortável, porque automatiza conclusões a partir de premissas não controláveis – e essas conclusões são, apesar de tudo, evidentemente lógicas, pois se a presunção de inocência não abrange as citadas hipóteses, a lei ficha limpa não significa intervenção no direito. O problema, nesse sentido, é de argumentação, pois não há critérios sólidos que indiquem que essas limitações imanentes à presunção de inocência realmente existem.
Em suma, socorrendo-nos da lição de Virgílio Afonso da Silva[2], ao nosso ver o mais adequado em termos de interpretação constitucional seria reconhecer que: (i) qualquer elemento isoladamente considerado que tenha relação com a presunção de inocência integra o suporte fático desse direito e, portanto, é protegido a priori pela Constituição; (ii) a presunção de inocência estende-se, a princípio, a todos os tipos de processos judiciais e não possui limites imanentes à sua realização; (iii) a Lei Complementar n. 135/2010 traz diversos dispositivos que importam restrição à presunção de inocência, dentre os quais se destaca aquele que alterou o art. 1º, inciso I, alínea “e”, da Lei Complementar n. 64/1990[3]; (iv) restringir direitos fundamentais não é procedimento constitucionalmente vedado, mas característica inafastável do próprio caráter relativo dos direitos fundamentais; e (v) a problemática, sob o influxo da teoria do suporte fático amplo, situa-se na análise de eventuais princípios em colisão e em fundamentação que, passando pelo controle de racionalidade, respeite certas regras de linguagem, a fim de “distinguir os argumentos corretos dos incorretos, os válidos dos inválidos”[4] e, assim, alcançar uma resposta constitucionalmente adequada.
O resultado, por evidência, poderá ser no sentido da constitucionalidade ou inconstitucionalidade da intervenção contida na Lei Complementar 135/2010, porque não há interpretação que leve a uma única resposta correta. O que se ressalta, aqui, é que na doutrina e na jurisprudência não se tem dado a devida atenção a esse importante debate sobre o suporte fático dos direitos fundamentais. A teoria do suporte fático amplo parece mais adequada a uma fundamentação racional da decisão jurídica, pois exige que a realização normativa do direito seja otimizada à luz do caso concreto, e não por meio de limitações abstratas e imanentes a direitos fundamentais que não obedecem a critérios visíveis.
Referências bibliográficasALEXY, R. Teoría de La argumentación jurídica. 2. ed. Madrid: CEPC, 2007.
________. Teoria dos direitos fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2008.
ATIENZA, M. As razões do direito: teorias da argumentação jurídica. 3. ed. São Paulo: Landy, 2006.
BARROSO, L.R. Interpretação e aplicação da Constituição. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2008.
BONAVIDES, P. Curso de direito constitucional. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 1993.
FREITAS, J. A interpretação sistemática do direito. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2004.
SILVA, J. A. Curso de direito constitucional positivo. 20. ed. São Paulo: Malheiros, 2002.
SILVA, V. A. Direitos fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia. São Paulo: Malheiros, 2009.
[1] Os exemplos foram extraídos de SILVA, V. A. Direitos fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 114-125. Para explanações mais detalhadas, conferir a obra.
[2] SILVA, Op. cit, p. 119.
[3] “Art. 1º: São inelegíveis:
I – Para qualquer cargo:
(...) e) os que forem condenados, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado, desde a condenação até o transcurso do prazo de 8 (oito) anos após o cumprimento da pena, pelos crimes:
1. contra a economia popular, a fé pública, a administração pública e o patrimônio público; 2. contra o patrimônio privado, o sistema financeiro, o mercado de capitais e os previstos na lei que regula a falência; 3. contra o meio ambiente e a saúde pública; 4. eleitorais, para os quais a lei comine pena privativa de liberdade; 5. de abuso de autoridade, nos casos em que houver condenação à perda do cargo ou à inabilitação para o exercício de função pública; 6. de lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores; 7. de tráfico de entorpecentes e drogas afins, racismo, tortura, terrorismo e hediondos; 8. de redução à condição análoga à de escravo; 9. contra a vida e a dignidade sexual; e 10. praticados por organização criminosa, quadrilha ou bando”.
[4] Sobre o assunto, Cf. ATIENZA, M. As razões do direito: teorias da argumentação jurídica. 3. ed. São Paulo: Landy, 2006; e ALEXY, Robert. Teoría de La argumentación jurídica. 2. ed. Madrid: CEPC, 2007.
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