PEC 37
Os promotores de Justiça são muito bem intencionados, carregando a bandeira da instituição na eterna luta contra o crime. Deve ser assim, obtendo-se, no combate, equilíbrio imprescindível, pois li em algum lugar que tudo é binário, ou seja, a aplicação da teoria dos opostos. Diga-se, então, que os conflitos existentes entre a perseguição penal e a resistência do imputado são legítimos. Há na Justiça um fim sempre perseguido: o trânsito em julgado de decisão absolutória ou condenatória, embora a doutrina sempre afirme que uma condenação nunca passa em julgado, no Brasil, pois há o instituto da revisão a favor do réu.
Acentua-se que a atividade acusatória é, na verdade, quase sempre, uma pretensão resistida. Aqui, o acusador-mor é sempre o Ministério Público. Para fazê-lo, precisa ter poder. A campanha contra a PEC 37 é, no fim das contas, a procura de uma porção maior de atribuições, além daquela que a instituição já detém, porque, embora fiscalizando externamente a atividade policial, investigar não pode. Eis aí. Essa briga tomou para mim, enquanto estudante, característica toda especial depois de ler El Poder, de Bertrand de Jouvenel. A gula dos pretendentes a porções maiores de atributos persecutórios ou condenatórios sempre me fascinou, assumindo proporções bem pragmáticas na medida em que o homem é bicho. Somos animais e reagimos à maneira deles, valendo isso desde que, lá atrás, a crer-se na teoria darwiniana, um símio qualquer se pôs sobre as patas traseiras, vivendo a partir daquilo em permanente desequilíbrio. Funciona assim.
Dentro do contexto, discussão cerebrina sobre interpretações mais ou menos sedutoras da Constituição Federal não me impressionam. Vivemos, contando tempo da geratriz familiar primeira, em comunidades mais ou menos organizadas — umas menos do que mais — mas sempre protótipos de acomodações regradas. Além delas, ao lado e dentro delas, a briga fundamental é pela detenção e conservação de maior dose possível de poder. Há no entremeio grupos menores, e menores, e menores ainda, numa redução e aperfeiçoamento levando a um dito “mandonismo”. Dir-se-iam osIlluminati. Em suma, a humanidade é dividida entre quem manda e quem obedece. O homem (e nisto a mulher) precisa do pai. Este pode ser representativo da figura do ditador, do rei, do papa, do pastor da igrejinha posta na esquina, do babalaô, ou mesmo do genitor biológico, mas é sempre assim.
Enfastia-me, no contexto, a untuosa discussão sobre as vírgulas no texto constitucional, visto que em 1988, quando alguns dos debatedores ainda se encontravam na primeira infância, o Ministério Público montou lobbys poderosíssimos nos degraus da constituinte, obtendo uma sorte qualquer de maiorização do poder que detinha. Continue-se na constituinte de 1988: havia um presidente da Associação Nacional do Ministério Público, Fleury Filho, ainda vivo e bastante, a monitorar, nos degraus do Congresso, aparelhamento metódico no sentido de sair de lá com maior dose de força. Foi injustiçado porque, candidato depois a cargo eletivo qualquer, sua classe o abandonou. Merecia aplausos intestinos pelo que trouxe. E trouxe o inquérito civil público, hoje usado, às vezes, para disfarçar inquéritos policiais movidos nos gabinetes da Instituição.
A OAB, no contexto primário e rude em que ponho as coisas, devotou-se a reagir àquilo, mas os advogados sempre cuidaram muito melhor dos problemas alheios. São tímidos quando se trata de fato próprio. Exemplo bastante é a discrição do presidente do Conselho Federal respeitante à PEC 37. Tenho também, visceralmente, implicância muito grande com o silêncio do Ministério Público Federal, começando muito longe, aliás, atinente às hoje quase mil e trezentas faculdades de Direito grassando, como urtigas venenosas, nos escaninhos do Ministério da Educação, sabendo-se que o hoje prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, é responsável pela autorização de no mínimo duzentos e quarenta delas. E não se diga que não houve provocação. Este cronista tem naquilo o seu assunto preferido já faz quarenta anos, mas abjura no vazio. Existem no momento, em função daquilo que classifico como omissão injustificável, setecentos e quarenta e poucos mil advogados no país, a grande maioria desnutrida intelectualmente. Tal inflação avilta a beca do advogado e a toga dos juízes e promotores, estes diretamente engolfados na necessidade de moralização dos cantos escuros daquele organismo reitor da educação brasileira e omissos na tarefa de pesquisa e colheita de dados, servindo a tanto, com muita certeza, o já citado inquérito civil público.
O Ministério da Educação (antes também da cultura), vomitou escolas e escolas de Direito sem o mínimo pudor, pondo milhares de jovens disputando migalhas deixadas aqui e ali. Então, o Ministério Público, entidade poderosíssima, escolhe politicamente seus inimigos, fazendo-o até saudavelmente, mas fecha os olhos, contrito, àquelas mesmas soturnas provocações éticas a lhe esburacarem as togas, enquanto este velho e encanecido advogado conflita para manter a beca nos ombros com a indispensável dignidade. Eis aí uma lembrança extremamente ética. A instituição não pode eleger, a seu critério, embates politicamente corretos ou soberanamente necessários à remoralização do país, passando à margem de um dos maiores — se o maior não for — sinal demonstrativo de antiga, rotineira e persistente manutenção de um apodrecido statu quo da criação e manutenção de cursos de ciências jurídicas e sociais na nação. Na verdade, semanas atrás, o Ministro da Educação aparece na televisão com o presidente do Conselho Federal da OAB, suspendendo a autorização à implantação de tais cursos. Havia uns cem esperando a vez. Um piscar de olhos e acontece. É só esperar.
O Ministério Público trouxe da constituinte de 1988 preciosíssima dose de atribuições concernentes ao chamado inquérito civil público. Fez bem à nação, convenha-se, mas extrapola enquanto se transforma agora em arauto da violação do segredo dos lares brasileiros, adquirindo compulsivamente computadores de última geração destinados ao espiolhamento das intimidades da cidadania, tudo encaixado blindadamente nos gabinetes herméticos. Nesta linha de pensamento, a reação deixa de ser o desenvolvimento de vetustos comentários sobre a hermenêutica constitucional. Vira a insurgência de um cão de guerra que nasceu, desenvolveu-se e se agregou, a partir de tempo remoto, numa luta para que o Brasil fosse um país onde o lar recebesse o respeito do beleguim, a liberdade fosse garantida sem as morféticas prisões temporárias decretadas sem precaução maior, a imagem do cidadão não fosse conspurcada nos jornais com vazamentos maldosos, estes para que houvesse mais adiante, quiçá, a exculpação colhendo homens e mulheres deixados sem alma e sem honra, pois destruídas as duas por uma imprensa irresponsável, ela própria, a imprensa, que no anuário vertente enaltece as virtudes daqueles entrantes nos portões e nas alcovas da brasilidade, tudo como se fora a certeza e não a suspeita incidental.
Por fim, vertendo da globalidade, exsurge uma ditadura fiscal-tributária, transformando o burguês de pequeno porte, o cidadão respeitável e respeitoso, o funcionário público de mínima credencial, em cidadãos amedrontados e aterrorizados pela sanha dos prepostos do senhor feudal. Não se fale dos grandes sonegadores, daqueles que precisam, sim, prestar contas à Justiça, mas se deve falar da imensa maioria dos cidadãos que precisam acreditar na imaculabilidade de seus lares, na possibilidade de emissão de seus pensamentos mais íntimos sem a vigilância maquiavélica de um computador desentranhado dos infernos, da confiança, enfim, em que possa, a cidadania, fechar os portões de sua casa, falar livremente ao telefone, enviar e receber suas comunicações românticas, até, sem que o esbirro de maus bofes esteja a lhes dessacralizar a discrição que fez lá atrás, na Revolta dos Barões, surgir o brocardo transmitido pelos séculos à humanidade: My House, My Castle. Minha casa, meu castelo.
Paulo Sérgio Leite Fernandes é advogado criminalista.
Revista Consultor Jurídico
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