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O verdadeiro desafio não é inserir uma idéia nova na mente militar, mas sim expelir a idéia antiga" (Lidell Hart)
Um verdadeiro amigo desabafa-se livremente, aconselha com justiça, ajuda prontamente, aventura-se com ousadia, aceita tudo com paciência, defende com coragem e continua amigo para sempre. William Penn.

sábado, 10 de agosto de 2013

Estamos precisando voltar As RUAS: Antropólogo Luiz Eduardo Soares fala sobre onda de protestos no Brasil




 (Bruno Veiga/Divulgação)
O antropólogo Luiz Eduardo Soares parece a pessoa certa para explicar os movimentos que tomam as ruas do Brasil, dado seu conhecimento e experiência com a análise política, o comportamento social e as políticas de segurança pública. No entanto, faz questão de deixar claro que não sabe de muita coisa: “É necessário afirmar com humildade nossa ignorância ante um processo cuja natureza nos desafia, intelectualmente”. Em entrevista a Ângela Faria, ele fala da tendência em tentar entender o novo com os olhos do passado, dos desafios postos à segurança pública e às famílias que convivem, a partir das últimas semanas, com uma nova inclinação dos jovens em direção às ruas e à política. “O tempo é de imprevisibilidade e sustos, riscos e ameaças, mas também de beleza: o novo insinuando-se pelas frestas de nossa democracia, que sofre de esclerose 
precoce”, provoca.

Que lições a juventude está dando ao país? 

A primeira lição que os jovens nas ruas nos dão é a seguinte: as coisas podem mudar, porque somos nós que fazemos a história, combinando liberdade e limites, circunstâncias e oportunidades, imaginação e ousadia, disposição solidária para empreendimentos coletivos em torno do interesse público, evocando valores fundamentais – tais como equidade e justiça – e repudiando o autoritarismo tecnocrático dos governos, que desprezam a participação e só dialogam com os lobistas dos grandes interesses privados. As coisas podem mudar se acreditarmos nisso e a alma não for pequena. Mas mudar como e em que direção, com quais consequências, a que preço? Não sei. Não se sabe em que vai dar o movimento, não se pode saber, nem há garantias. E aí está o primeiro ponto sem cujo reconhecimento não produziremos as condições indispensáveis à futura compreensão do que o movimento significa. Neste momento, é necessário afirmar com humildade nossa ignorância ante um processo cuja natureza nos desafia, intelectualmente. Explico: diante de um fenômeno que rompe a rotina e surpreende a expectativa de estabilidade, as reações individuais são as mais variadas. Entretanto, de um modo geral, nosso primeiro impulso é defensivo. Qualquer mudança nos ameaça, porque traz consigo a fantasia de que nosso mundo pessoal, tão precário e incerto, está em risco e pode ruir a qualquer momento. Essa fantasia provém da radical insegurança que nos é constitutiva, seres mortais que somos. Não apenas a vida humana é frágil, como aquilo que chamamos “realidade” é débil e movediço. Nossa tendência, portanto, é projetar nossas categorias e nosso modo de pensar sobre os fatos novos para descrevê-los exorcizando o que neles é novo e inscreve uma diferença em nossos esquemas cognitivos e em nosso sistema de práticas. Projetar o velho sobre o potencialmente novo apenas confirma nossas crenças, apazigua a angústia suscitada pelo desconhecido e presta um serviço a nosso aparato de autodefesa, domesticando a diferença e anulando sua força questionadora. Em outras palavras: explicações que funcionam como consagrações do que já se sabe – ou se supõe saber – não produzem conhecimento. Se o propósito é conhecer, devemos desnaturalizar as imagens já formadas, inclusive porque, nesse campo, toda interpretação é também intervenção, é também ação social.

Que desafios o novo quadro traz para o sistema de segurança pública?

Como diziam alguns cartazes, no Rio de Janeiro: “Desculpem o transtorno: estamos mudando o país”. Ou: “Não é Turquia, não é a Grécia, é o Brasil despertando da inércia”. Em outras palavras, não se muda sem turbulências. Perdão, pedestres, a cidade está em obras para servi-los. Como sabemos, reformar faz barulho. Tumultua. Não tem jeito. É claro que a participação massiva traz problemas para a segurança pública, mas não pode ser definida como um problema de segurança. Trata-se de um dilema que está longe de ser simples, pois é preciso respeitar a liberdade de manifestação, preservar o patrimônio público e garantir os direitos violados por eventuais agressões violentas, as quais têm ocorrido, mas, é necessário sublinhar, apenas por iniciativa de minorias e contra a vontade manifesta da massa. Não há solução perfeita, nem receitas, mas princípios gerais, que, observados, pelo menos reduzem os danos: a polícia não pode estar armada; e atenção: não há armas não letais – as assim chamadas são menos letais, porém também matam e ferem gravemente. A presença policial deve restringir-se a locais estratégicos, visando a defesa de posições-chave. Todos devem compreender que os policiais não são inimigos dos manifestantes e vice-versa. Mas essa compreensão depende de atitudes claras por parte dos policiais. Deve-se difundir a ideia de que cabe a todos evitar a violência de todo tipo em benefício da coletividade e do próprio movimento. Mesmo não havendo lideranças formais ou consensuais, está patente o intuito pacífico da imensa maioria dos que se envolvem – e disso dou testemunho como participante. Quem pratica violência agride o próprio movimento, segundo a percepção da maioria. A tendência é que o próprio movimento iniba a ação dos que traem seu espírito. Se a polícia usa recursos que realimentam o círculo vicioso, contribui, paradoxalmente, para recompor a unidade do grupo, quando seria mais saudável que autogestionariamente as dinâmicas coletivas múltiplas inventassem meios não violentos de reduzir a violência, diferenciando-se internamente e pactuando suas condições de convívio ou de existência política. 

A violência policial agravou a situação?

Não há dúvida de que a brutalidade criminosa de segmentos policiais, em algumas cidades, ofereceu o combustível que faltava para que o movimento mudasse de escala, ampliando-se extraordinariamente as adesões. Os custos materiais (e pessoais) de algumas ações violentas e condenáveis cometidas por manifestantes foram infinitamente menores do que os prejuízos que advieram das tentativas policiais, mesmo as bem-intencionadas, de evitá-los. É momento de confiar mais na responsabilidade coletiva dos cidadãos que se manifestam, porque o fazem justamente em torno de temas republicanos e democráticos, por mais que sejam variadas as motivações. Este não é momento de polícia. A segurança tem de ser a da massa que se manifesta. A praça é do povo. Ou a coletividade em movimento respeitará limites ou terá de arcar com o desafio de ver-se traindo, na prática —em função de divisões internas que são inteiramente naturais e incontroláveis —, alguns de seus valores, em se considerando aqueles que têm sido evocados, nas manifestações. Isso envolve riscos, claro, mas não há alternativas melhores. Digo isso porque é irrealista supor que alguma polícia do mundo possa controlar multidões nas ruas, sem consequências trágicas em grandes proporções, sem aumentar o mal que, supostamente, deseja evitar, e sem fortalecer o segmento sectário e violento da massa de manifestantes — segmento que, no Brasil, é residual. A questão é perigosa para a segurança pública, por óbvio, mas não há nada que as instituições da segurança possam fazer, além de reduzir danos e envolver-se o mínimo. Este é o tempo da sociedade e dos políticos, de negociação e abertura ao diálogo, de criatividade e flexibilidade, de autocrítica profunda, de repactuação em torno do próprio sistema político. Tempo de imprevisibilidade e sustos, riscos e ameaças, mas também de beleza: o novo insinuando-se pelas frestas de nossa democracia, que sofre de esclerose precoce.

A Polícia Militar está preparada para a democracia?

No âmbito da inadiável repactuação nacional, inclui-se a reforma da arquitetura institucional da segurança pública, o que envolveria a refundação do modelo policial, particularmente a desmilitarização das polícias ostensivas. Não se trata de viés ideológico. As PMs são incompatíveis com a democracia, malgrado esforços de tantos de seus profissionais, porque estão organizadas à semelhança do Exército, cuja finalidade é defender o território nacional e preservar a soberania do país, fazendo a guerra, no limite. Precisa funcionar com a metodologia do pronto emprego, para cumprir seus objetivos constitucionais. Necessita de centralização e vertebração hierárquica rigorosa. A missão constitucional de uma polícia ostensiva e preventiva, uniformizada, é garantir a vida, a incolumidade física e os direitos dos cidadãos, fazendo com que as leis sejam observadas. Como se vê, os fins são inteiramente distintos. Por que a organização deveria ser a mesma? Sabemos que a melhor forma de uma organização é aquela que melhor serve ao cumprimento das finalidades da instituição. Portanto: fins distintos, formatos organizacionais diferentes. As PMs envolvem-se em confrontos armados, é verdade. Mas esses enfrentamentos correspondem a 1% de suas atividades diárias. Para fazer face a esse tipo de desafio, há espaço para a formação de unidades especializadas. É absurdo comprimir 99% no molde ortopédico que, quando muito, equivaleria à necessidade de 1%.


A democracia direta está nas ruas. O que isso significa? Como fica a democracia representativa agora?

Esse é o nervo exposto do dilema nacional. Reitero que, em primeiro lugar, devo dizer: não sei. O que, hoje, dá-se a pensar o será à sombra do reconhecimento de minha ignorância ante eventos que inscrevem a diferença em nossos esquemas cognitivos e nos modelos tradicionais de ação coletiva. Eventos, portanto, que disparam uma dinâmica cujos desdobramentos são imprevisíveis e cuja natureza ignoramos, porque nada está dado e tudo se constitui, no processo, em sua positividade e contingência. Dito isso, ouso sugerir a seguinte interpretação: o movimento declara à nação que o rei está nu, proclama em praça pública que a representação parlamentar ruiu, depois que, capturada pelo mercado de votos, resignou-se a reproduzir mandatos em série, com obscena mediocridade, sem qualquer compromisso com o interesse público, ostentando o mais escandaloso desprezo pela opinião pública. O colapso da representação vem ocorrendo sem que as lideranças deem mostras de compreender a magnitude do abismo que se abriu – e aprofunda-se, celeremente – entre a institucionalidade política e o sentimento da maioria. As denúncias de corrupção se sucedem, endossando a visão negativa que, injustamente, mas compreensivelmente, generaliza-se. O Executivo prestigiado, em contexto de dinamismo econômico, pleno emprego e redução de desigualdades, sob a aura carismática de Lula, freou o desgaste do Estado, já avançado em sua face parlamentar. Quando o modelo começa a dar sinais de que está claudicando, a corrosão contamina a legitimidade (a credibilidade) de todas as áreas do Estado. Outro ponto importante: Tocqueville demonstrou que os segmentos sociais mais dispostos a agir e reagir não são os mais pobres e impotentes, mas aqueles que têm o que perder. Isso significa que os avanços sociais das últimas duas décadas ampliaram a faixa da população potencialmente disposta a resistir ante o risco de perda. Aqueles que ascenderam não entregarão sem luta suas conquistas. Se o que digo faz sentido, ou o parlamento abre os olhos e os ouvidos e promove uma radical autorreforma, o que implica a transformação profunda do sistema político – não só eleitoral –, ou caminhamos para cenários críticos. Não apocalípticos, mas críticos, marcados pelo esgarçamento das mediações institucionais e a corrosão mais profunda da legitimidade do Estado, em seu conjunto. Quando Estado e sociedade afastam-se, em ambiente normativo democrático, há chances de reconstrução, mas também riscos de bonapartismos aventureiros. 

O que o protesto contra o aumento das passagens sinaliza além da reivindicação econômica? 

O valor do transporte é apenas a cabeça de um imenso iceberg, formado por sua qualidade e pelo verdadeiro drama em que se converteu a mobilidade urbana. Formou-se uma cadeia metonímica no imaginário individual e coletivo, que transporta os significados do preço da tarifa às jornadas desumanas a que os trabalhadores têm sido submetidos, estendendo-se daí a outros aspectos negativos da experiência popular nas cidades: a precariedade do emprego ou do trabalho, as condições desiguais de moradia, saúde, educação, segurança e acesso à Justiça. Os elos de contiguidade simbólica e política conectam problemas entre si, acentuando sua marca permanente: a desigualdade. Portanto, além da questão de método democrático, estão em pauta, nas ruas, as questões substantivas mais graves e urgentes. Isso significa que não só o parlamento deve abrir os olhos, mas também os poderes executivos. Um governador sintonizado sairia na frente, propondo uma agenda de repactuação com a sociedade em torno da identificação de um plano modular – mas ambicioso e radical – de reformas, em torno não só do transporte público, da mobilidade urbana e de nosso irracional modelo econômico refém da indústria automobilística, mas também quanto aos investimentos: qual o lugar da Copa em nossa escala de prioridades? Que regiões das cidades vão receber investimentos? Que tipo de investimentos? Onde fica a participação efetiva da sociedade? Como reverter o autoritarismo tecnocrático, que acaba expressando interesses econômicos óbvios? Qual o lugar da sustentabilidade? Tudo isso aponta para um dado central: o colapso do PT como canal que por duas décadas expressou anseios por participação e atuou como instrumento de resistência ao autoritarismo tecnocrático do Estado brasileiro. Os governos petistas cooptaram entidades, aparelharam o Estado e domesticaram movimentos, com absoluto desprezo pela democracia e pelo sentido profundo da participação da sociedade. Produziram um vazio oceânico, que acabou preenchido pelo protagonismo emergente. Assim, a festa democrática nas ruas é também o funeral do PT, não como aparelho que investe no mercado de votos, mas como ator capaz de restaurar a credibilidade na representação. A ausência da União Nacional dos Estudantes, a UNE, é eloquente e escandalosa.

Há forças políticas classificando o novo momento como "manifestação autoral", como se manifestou Marina Silva no YouTube. Você concorda com essa análise?

Concordo. Marina está certíssima. Não faz mais sentido empregar o vocabulário que encadeava classe, organicidade, consciência de classe, partido, vanguarda intelectual, organizações da sociedade civil, enfim, coletividades radicadas em posições estruturais. Os atores, eventualmente, são coletivos, mas tendem a ser, crescentemente, individuais, unindo-se provisoriamente em função de temas circunstanciais, para agir contingencialmente, constituindo e desconstituindo agregações, deslocando-se por constelações de valores e opções práticas como o errante do novo século, o peregrino virtual, o nômade que, em vez de aderir a identidades institucionalizadas e crenças sincréticas, opera como sujeito sincrético, a editar possibilidades, trajetórias e experiências, reinventando-se na bricolage de si mesmo. Esse quadro não se confunde com individualismo, pois este novo personagem individual não se reduz ao ser egoísta e exclusivamente autointeressado, nem ao consumidor adaptado, inebriado pelo neon fetichista do mercado. A implicação política prenuncia-se: talvez tenhamos, como ocorre no campo religioso, menos identificações fixas e mais migração, menos escolha no cardápio que vem pronto e mais composição de dietas políticas idiossincráticas. Esse quadro envolveria rejeição a partidos e apoio a candidaturas avulsas da sociedade por mandatos limitados e não renováveis, por menores períodos de tempo e com mais transparência, etc. E atenção: o tempo da política está sendo reinventado. Deixou de resumir-se ao ciclo eleitoral.

Sempre se disse que a moçada só sabia se manifestar apertando a tecla do “curti” no Facebook. Aqui em BH, os cartazes “Saí do Face” fizeram sucesso. O que te sugere esse rito de passagem da touch screen para a praça? 

A participação em redes aproxima os brasileiros do modelo globalizado de tomada dos espaços públicos como método de democracia direta ou de ação política não mediada por instituições, partidos e representantes. Evidentemente, o modelo remete à ideia clássica da democracia direta como tipo ideal, sem cumpri-lo inteiramente, uma vez que as mediações nunca deixam de atuar, conectando diferentes procedimentos à energia da massa nas praças. O que conta, neste cenário dramatúrgico, são a memória idealizada e a linguagem comum, como se os eventos se citassem mutuamente, construindo uma constelação virtual de hiperlinks. Nesse contexto, tornam-se possíveis o orgulho, a vaidade, a máscara do heroi cívico, a política vivida em grupo como entretenimento cult antipolítico (mas também risco iminente de morte), a experiência gregária fraterna (ante um inimigo tão abstrato e fantasmático quanto óbvio e imediato, com o rosto policial e o sentido da tragédia), experiência que enche o coração de júbilo, exaltando os sentimentos e os elevando a uma escala quase espiritual, a convicção de que se pode prescindir de propostas e metas, ou da negociação de métodos para inscrever o curso da prática na vida da cidade, não só no chão das ruas.

Que desafios este novo momento impõe aos jornais, à mídia?

O mesmo que impõe a nós todos, a todos os que procuramos entender o que está acontecendo. É preciso saber menos e perguntar mais; julgar menos e escutar mais; prever menos e participar mais, retratando a experiência em curso e a compartilhando, na medida do possível. Criticar a violência de todas as partes, mas evitar os estigmas, as classificações, o vocabulário com que nos acostumamos a pensar e avaliar, como “vândalos”, “desordem”, “desorganizado”, “inorgânico”, “sem objetividade”, “disperso”. Esses são os nomes que damos à distância entre os eventos e nossos esquemas mentais. Vemos o que falta, porque não enxergamos com olhos abertos para ver. O que parece lacunar e negativo na realidade dos novos fenômenos talvez seja apenas o sinal de nossa impotência. Talvez estejamos olhando o espelho. Aposentemos as acusações simplificadoras, as associações precipitadas entre o que está acontecendo e o que já vimos antes. Não, não vimos este filme. Evitemos, por ora, a tentação de explicar.

Que desafios este novo momento impõe a pais e mães?
Eis aí uma bela e rara oportunidade de conversar em família sobre política, vida coletiva, escolhas individuais, caminhos alternativos, horizontes utópicos. Além do consumo e do próprio umbigo, o que dizer sobre o bem público? O que em nossa moral familiar diz respeito à vida em sociedade. Somos corresponsáveis pelas virtudes e deficiências da sociedade brasileira. Que tal dizer isso na mesa do jantar, desligar a TV e assistir, em família, aos documentários sobre nossa história política, de Silvio Tendler a Eduardo Coutinho, de João Moreira Salles a José Padilha? O Estado de Minas poderia sugerir títulos. Além disso, os pais e as mães poderiam convidar os filhos para participar da próxima manifestação, ou aceitar os convites deles. Eu fiz isso e vivi momentos inesquecíveis
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