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quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

Faltou discussão na guinada sobre o delito de descaminho

MUDANÇA DE ENTENDIMENTO


Uma das muitas “mudanças de posição” do Superior Tribunal de Justiça deveria merecer reflexão atenta, seja por contradições internas, seja pela incoerência com os propósitos que deveriam ser respeitados pelas regras da ordem jurídica penal. A partir do julgamento do Habeas Corpus218.961/SP (não conhecido), a 5ª Turma do STJ alterou entendimento consolidado sobre a natureza do delito de descaminho (2ª figura do artigo 334 do Código Penal), firmando entendimento pelo qual não se faz mais necessário o encerramento da discussão administrativo/tributária para fins de persecução do delito. Segundo o precedente, a natureza formal do crime faz prescindir qualquer verificação administrativa de eventuais tributos iludidos quando da entrada da mercadoria no país.
A classificação ganha mais importância por conta da Súmula Vinculante 24, do Supremo Tribunal Federal, que, em que pese voltada para os delitos previstos no artigo 1º da Lei 8.137 de 1990, afirma que não se tipifica crime material contra a ordem tributária antes do lançamento definitivo do tributo. Em diversos precedentes do STJ, a súmula vinculante 24 é apontada como baliza norteadora do raciocínio pelo qual a configuração de delito de descaminho, tipo penal a vulnerar a ordem tributária (pela supressão de tributo) depende de prévia e consolidada apreciação administrativa (constituição definitiva do crédito tributário).
Isso significa que entendimento que vinha sendo mantido pelo STJ, agora oscilante pelo posicionamento da 5ª turma, afirmava que o descaminho é delito de natureza material: tem como componente a ocorrência de um resultado lesivo, tal como ocorre com o homicídio, roubo, furto etc. Se é capital para a configuração desse tipo de delito a ocorrência do resultado naturalístico e sendo esse resultado o desfalque do erário pela ilusão do tributo, decorre logicamente que a configuração final do tributo depende do resultado do procedimento fiscal correspondente. Essa configuração, que interpreta o delito de descaminho como material também permite que se extinga a punibilidade, tal como em outros delitos de repercussão tributária, em caso de pagamento integral do tributo, a teor do que decorre do artigo 34 da Lei 9.249/95 e artigo 9º e parágrafo 2º da Lei 10.684/2003.
A compreensão da natureza material do crime de descaminho e de sua nítida configuração tributária não é novidade, embora a afirmação jurisprudencial dessa característica possa ser identificada num aglutinado de precedentes mais próximos entre si no tempo. Hungria já comentava a primazia da defesa ao erário que caracterizava a finalidade do tipo penal, afirmando, ao citar Impallomeni e Puglia que o descaminho e o contrabando são “autênticos crimes, ofensivos de um incontável direito subjetivo do Estado, qual o de cobrar impostos, que lhe são necessários para a consecução de seus próprios fins, e o de manter a ordem jurídica, que não pode pactual com o ensejo à ofensa de vitais interesses sociais ou a uma traiçoeira competição no mercado interno.” A afirmação é contundente no sentido de orientar-se à relevância da causação de ato lesivo ao fisco, pela ilusão de um tributo. No Superior Tribunal de Justiça, desde 2007, pelo menos, a inteligência sobre o fato de que o delito de descaminho é material gerou a reboque o entendimento de que sua configuração é lesiva contra a ordem tributária, com a consequência que vinha sendo mantida desde então, vinculada à perspectiva de que o processo envolvendo apuração desse tipo de delito depende de prévia consolidação do entendimento administrativo sobre a existência de tributo.
A 6ª Turma do STJ, no HC 48.805 (em 2007), afirmou que “não há razão lógica para se tratar o crime de descaminho de maneira distinta daquela dispensada aos crimes tributários em geral.” O score do precedente foi apertado (o empate favoreceu o paciente, por força regimental). No RHC 25.228, em 2010, o mesmo entendimento angariou a unanimidade. A 5ª Turma, por sua vez, também em 2010, por unanimidade no HC 139.998 consignou que: “O delito previsto na segunda parte do caput do artigo 334 do Código Penal configura crime material, que se consuma com a liberação da mercadoria pela alfândega, logrando o agente ludibriar as autoridades e ingressar no território nacional em posse das mercadorias sem o pagamento dos tributos devidos...”. O reconhecimento dessa característica permite aplicar-se à figura do descaminho, na dicção da própria ementa, o raciocínio dos delitos materiais contra a ordem tributária.
Até o recente julgamento do HC 218.961 da 5ª Turma e desde a consolidação do debate, o entendimento vinha sendo mantido sem percalços: o delito de descaminho tem natureza material, o resultado decorrente do tipo penal é a lesão ao erário pelo não recolhimento dos tributos devidos e, por força desse raciocínio, ao delito deve-se aplicar a mesma lógica dos demais crimes materiais contra a ordem tributária, exigindo-se o prévio reconhecimento administrativo da constituição do crédito tributário.
A abrupta mudança de entendimento, no entanto, causa perturbação na expectativa dos operadores do direito sobre o modo como o Superior Tribunal de Justiça trata delitos dessa natureza e seu próprio papel para um direito penal mais próximo de uma ordem democrática e estável.
Em parte, o novo entendimento invocou precedente do Supremo Tribunal, datado de 2010, em que o ministro Ayres Brito consignou na ementa que “(...) o delito de descaminho é rigorosamente formal, de modo a prescindir da ocorrência do resultado naturalístico.” O precedente do STF debatia, é verdade, a hipótese de descaminho na modalidade da alínea “c” do parágrafo 1º do artigo 334 do Código Penal. Essa peculiaridade facilitou bastante o entendimento do delito como formal, porque essa específica “modalidade” do delito compreende tão somente a guarda, exposição à venda ou venda de mercadoria sabidamente introduzida clandestinamente no país.
Entretanto, o mesmo Supremo Tribunal Federal, em julgado mais recente, explicitamente reconheceu a possibilidade de extinção da punibilidade do delito de descaminho pelo pagamento, entendimento que dependeu do entendimento do delito de descaminho como crime material. Na discussão, configurou-se que o pagamento do tributo é suficiente para fazer desaparecer a pretensão punitiva, afirmando-se também que a norma penal traz como resultado naturalístico justamente a supressão do tributo: o que implica no reconhecimento do caráter material da conduta incriminada.
No STJ, ainda neste ano de 2013, nenhum sinal havia de alteração de entendimento, que seguia unânime, como no HC 255.617/RS, relatado pelo ministro Jorge Mussi, 5ª Turma, julgado em 19/03/2013, DJe 26/03/2013. Outras decisões monocráticas, como as exemplificadas acima, evidenciavam a estabilidade dessa compreensão.
As razões para a mudança de entendimento colide com ao menos uma posição consolidada pelo Superior Tribunal de Justiça no que diz respeito ao próprio descaminho e sua relação com o reconhecimento de hipóteses de insignificância da lesão ao bem jurídico. O acórdão que determinou a mudança de posicionamento chega a debater a insignificância — não a aplicou pela suposta alta reprovabilidade da conduta do agente — mas não a incompatibiliza com a condição de crime formal, recém adotada. A princípio não haveria incompatibilidade se não fosse o critério de insignificância ainda persistente nas duas turmas criminais do STJ com relação ao descaminho.
É pacífico o entendimento de que o delito de descaminho, quando corresponde a lesão ao fisco de ordem inferior ao valor mínimo para prosseguimento da execução fiscal pela Fazenda Pública, fica amparado pela insignificância por causa de um raciocínio prático e simples: não há sentido em declarar-se a lesão ao bem jurídico que não corresponda ao próprio interesse do Estado em buscar sua respectiva reparação.
Embora não haja óbice ao reconhecimento da insignificância em crimes formais, por vezes essa própria característica tem impulsionado a inaplicabilidade dessa forma de reconhecimento da atipicidade. Veja-se recurso especial do Ministério Público Federal que foi unanimemente admitido e provido para desconsiderar o princípio da insignificância em caso de gestão fraudulenta (artigo 4ºcaput da Lei 7.492/86). No raciocínio empregado naquele Recurso Especial, a norma jurídica tem por finalidade manter a “estabilidade e higidez do Sistema Financeiro Nacional”, bens que “não podem ser quantificados”. Mesmo critério recebe o próprio delito de contrabando.
A despeito dessas considerações e das novas premissas estabilizadoras sobre a compreensão do delito de descaminho, o crime continua, nos termos de decisões da própria 5ª Turma a ser amparado pela hipótese de aplicação da insignificância do resultado. Nesse sentido, entende-se que “o princípio da insignificância aplica-se (com relação ao artigo 334 do CP) apenas ao delito de descaminho, que corresponde à entrada ou à saída de produtos permitidos, elidindo, tão somente, o pagamento do imposto.” Também a mudança de paradigma não abalou o entendimento de que “é possível a aplicação do princípio da insignificância ao delito previsto no artigo 334, do Código Penal, desde que o total do tributo iludido não ultrapasse o patamar de R$ 10 mil previstos no artigo 20, da Lei 10.522/02.” Em outras palavras, o aspecto da insignificância considerado pela 5ª Turma, no que respeita ao delito de descaminho, continua sendo o resultado lesivo ao erário, quantificado em termos de valor do suposto tributo devido, mantendo incólume a expressão do leading case no STJ.
Ao que parece, portanto, não há uma convicção, na 5ª turma, que permita olhar sob todos os ângulos que o delito de descaminho tem natureza formal. Em julgados posteriores à data da mudança de parâmetro, o reconhecimento da insignificância a partir da leitura da Lei 10.522/02 evidencia que sua natureza material persiste.
Somente essa colisão de parâmetros seria suficiente para demonstrar o quanto a mudança de posição de uma Corte Superior pode causar embaraços à expectativa de estabilização de entendimentos sobre a norma criminal. Mas a pergunta sobre “de que espécie de direito penal estamos falando?” sofre outras perturbações. Vejamos como fio de raciocínio a própria aplicação da insignificância ao direito penal. As turmas criminais do STJ passaram a reconhecer como critério de tipicidade a insignificância material da conduta ou do resultado a partir de orientações ideológicas que buscam imprimir ao direito penal a mínima intervenção e a fragmentariedade. No que diz respeito às conexões entre o direito penal e a preservação do erário pela tipificação de condutas contra a ordem tributária, o STJ, do mesmo modo, observou que a incidência da criminalização deve obedecer à realidade de ser a “ultima ratio” do ordenamento jurídico. Se há um explícito direcionamento no sentido de adotar-se um manifesto direito penal mínimo, parece que o critério do mínimo foi generosamente inflacionado no HC 218.691.
No julgado que determinou a abrupta mudança de raciocínio sobre a natureza do crime de descaminho, razões de uma política criminal inflacionária fizeram parte das razões para a alteração da postura. A “integridade do sistema de controle de entrada e saída de mercadorias do país”, que evidentemente não pode ser considerado um “bem jurídico”, passa a encontrar no direito penal um mecanismo de proteção a latere dos sistemas administrativos de sanção, sistemas que já pressupõem o perdimento da mercadoria, multa e cobrança de tributos e que tem o poder de realizar aquilo que o Superior Tribunal de Justiça afirmou que também cabe ao direito penal: controlar entrada e saída de mercadorias do país, proteger o comércio regular da concorrência ilegal etc. Enfim, uma lógica que abraça um direito penal voltado ao controle de resultados de controle da balança comercial ou a concorrência desleal confia que um sistema de criminalização será tudo, menos a “ultima ratio” para a obtenção de determinados resultados economicamente interessantes.
É evidente que não se descarta que há uma tendência ampla na sociedade brasileira em aceitar-se um direito penal que chegue à frente de qualquer outro sistema estatal de intervenção. Não se descarta também que existem propostas teóricas que buscam suportar logicamente uma intervenção penal sobre a economia, independentemente dos mecanismos administrativos voltados ao mesmo controle. Entretanto, a flutuação vista no caso do delito de descaminho não transitou por nenhuma discussão sobre o papel que a harmonização jurisprudencial a cargo do STJ pretende para esse delito. Sem aviso, o que foi objeto de discussão e conclusão foi revirado à unanimidade, sem diálogo com o que foi deixado para trás, sem os “poréns” próprios daquilo que passa de uma ponta à outra de um espinhoso caminho teórico e que deveria abarcar todos os cuidados requeridos para alterar-se uma peça de um sistema delicado e complexo.
A esperada organização hermenêutica do sistema penal, parcialmente incumbida ao STJ em virtude de suas funções constitucionais deve ser fruto de uma atenta reflexão. Espera-se que essa reflexão tenha como parâmetro que funções ou que limites podem ser afirmados para um direito penal (aparentemente) democrático e de que forma esses limites podem ser compreendidos e aplicados nas diuturnas situações onde, dentro ou abaixo do Tribunal da Cidadania, suas decisões servem, para repetir uma expressão antológica do falecido ministro Humberto Gomes de Barros, como um farol.
À mão do STJ, pareciam consolidadas todas as razões para afirmar, sem maiores percalços, a natureza material e tributária do delito de descaminho e, a partir disso, suas conexões com a súmula vinculante 24 e a dependência da verificação administrativa do crédito tributário como parâmetro verificador da existência de um dos elementos do tipo objetivo (a saber, o tributo). As razões para continuar afirmando dessa forma persistem em escala muito superior àquelas que, reduzindo o direito penal a um mecanismo de controle da balança comercial, ditaram essa perturbação no que parecia ser jurisprudência pacífica. Espera-se que a temática, até agora polemizada por uma das turmas criminais, seja definitivamente recolocada nos trilhos em que vinha tramitando quando o colegiado maior tiver de enfrentar o problema.
Joaquim Pedro M. Rodrigues é advogado em Brasília/DF.
Fabrício Campos é advogado, sócio do escritório Oliveira Campos Advogados e conselheiro da OAB-ES.
Conceição Aparecida Giori é advogada, sócia do escritório Oliveira Campos & Giori Advogados.

Revista Consultor Jurídico

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