Surgiu uma curiosa preocupação com a alternância de poder, sem a qual haveria a ameaça de uma inevitável degeneração do Judiciário brasileiro.
Na sua incansável tentativa de retirar dividendos políticos do julgamento da ação penal 470 – o chamado processo do “mensalão” –, o presidente do STF, Ministro Joaquim Barbosa, se deu ao direito de lançar um “alerta à nação” antes de encerrar a sessão na qual o Tribunal, por maioria de 7 votos a 4, acolheu os embargos infringentes opostos pelos réus e inocentou-os do crime de formação de quadrilha.
Dizendo ser aquela uma “tarde triste” para o STF, Barbosa denunciou a “maioria de circunstância”, formada a partir da chegada de Teori Zavascki e Luís Roberto Barroso ao Tribunal, como responsável por “lançar por terra todo o trabalho primoroso levado a cabo pela Corte no segundo semestre de 2012” quando, por maioria apertada, os Ministros presentes o haviam acompanhado na condenação por quadrilha. E, em tom tão fatalista quanto ameaçador, destacou que via naquela votação “apenas o primeiro passo” (De quem? Para onde?) eis que a nova composição do Tribunal teria “todo o tempo a seu favor para continuar nessa sua sanha reformadora”.
O “alerta” de Barbosa teve efeitos bem menos lineares que as suas performances anteriores à frente da Corte e do processo do “mensalão”. Veículos de massa, como o “Jornal Nacional”, deram apenas uma cobertura genérica à fala do Ministro, enquanto que todos os grandes jornais, por editoriais ou outros meios, fizeram ressalvas à maneira desqualificadora com a qual ele se referiu ao voto de seus novos colegas de pleno. Até porque, como seria possível defender as preocupações de Barbosa com o caráter supostamente “político” dos votos daqueles novos integrantes, quando ele próprio havia admitido, minutos antes, que a condenação e o patamar das penas que gostaria de ver mantidos resultavam não da aplicação rigorosa da lei, mas de uma conta “de chegada”, visando evitar a prescrição e colocar os condenados em regime fechado (“Ora!”)?
Outra parcela da opinião pública, porém, tirava claras e diretas implicações da fala do Ministro: “Nos próximos anos, além da renúncia de Joaquim Barbosa, deve haver a aposentadoria de outros cinco Ministros do STF. Se reeleita, Dilma terá tido a possibilidade de nomear uma Corte inteira. O Tribunal terá se tornado um mero departamento do governo. Qual será a resposta das ruas?,” indagava uma postagem de internet que correu pelas redes sociais. Surgia, assim, uma curiosa preocupação com a “alternância de poder”, sem a qual, argumentava-se, haveria uma inevitável degeneração do Judiciário brasileiro – e, mais ainda, da instância por meio da qual ele faz a “guarda da Constituição” (CF, art. 102), o Supremo Tribunal Federal.
Três aspectos dessa formulação, porém, evidenciam o seu caráter falacioso – e, no limite, a sua incompatibilidade com os princípios pelos quais a Constituição Federal ajuda a organizar o exercício de nossas liberdades públicas.
O primeiro é o seu atentado à soberania popular. A Constituição prevê que “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente” (art. 1o., parágrafo único). A cada pleito eleitoral, portanto – e não obstante todas as imperfeições do sistema eleitoral brasileiro –, os cidadãos devem ter a oportunidade de examinar da maneira mais livre possível os projetos em disputa e decidir pela continuidade ou pela mudança dos mandatários e das forças políticas que estes representam.
A possibilidade de reeleição, estabelecida pela Emenda Constitucional n. 16, de 1997 – essa sim, ao que se sabe, fruto de uma “maioria de circunstância” – não é a única maneira pela qual os cidadãos podem sinalizar para um interesse de continuidade: a eleição de outro candidato proveniente do mesmo bloco que governa, como ocorreu com Dilma em relação a Lula, é também uma manifestação legítima das pretensões da cidadania.
No momento em que as pesquisas apontam para fortes chances de reeleição da Presidenta Dilma, a disseminação de uma retórica abstrata em favor da “alternância no poder” pode até parecer um bom substituto para a incapacidade de enunciação de projetos alternativos por parte das oposições. Trata-se, no entanto, de medida que – essa sim – “lança por terra” o esforço para a construção, entre nós, do processo público, aberto e bem informado de escolha que está na base das principais teorias modernas de democracia representativa.
O segundo aspecto é a desconsideração dos meios de controle de nomeações do STF garantidos – ou, ao menos permitidos – pela Constituição brasileira.
A suposição de que um Chefe do Executivo dispõe de poder ilimitado para a composição da Suprema Corte diz mais sobre quem a vocaliza do que sobre o processo de nomeação dos Ministros em si. É verdade que, entre as principais dinâmicas políticas e institucionais que marcam a vida brasileira após o advento da Constituição de 1988, a nomeação de Ministros do STF é das que permanece mais opaca. Mas isso não ocorre porque faltam meios de controle, e sim porque esses meios não são utilizados na proporção em que poderiam sê-lo.
Basta ver o que são – mas, também, o que poderiam ser – as sabatinas do Senado aos candidatos do STF: não seria o caso de os Senadores transformarem esses processos em verdadeiras audiências públicas, nas quais os requisitos de “notório saber jurídico e reputação ilibada” (CF, art. 101) pudessem ser aferidos diretamente pelos cidadãos? Ou – caso se avalie que esses meios de participação e controle ainda são muito tímidos –, não seria o caso de se levantar discussão sobre como ampliá-los? Por que evitar o debate sobre as práticas atuais e as possibilidades de reforma, em favor de preocupações “de circunstância”, endereçadas para as eleições de 2014?
O terceiro aspecto, por fim, é o silêncio quanto à responsabilidade do Judiciário – e, mais particularmente, do STF –, sobre a promoção de sua própria solidez e legitimidade.
O processo do “mensalão” jogou muitos holofotes sobre o poder dos Juízes e dos Ministros da Suprema Corte. Holofotes, no entanto, tendem a iluminar partes de um objeto, ao mesmo tempo e com a mesma intensidade em que obscurecem outras. Que outros casos aguardavam nos escaninhos do STF, enquanto Barbosa lia as mais de mil páginas do seu voto na ação penal 470? A que políticas públicas se referem e quais são os interesses que eles afetam? Quanto tempo demora para o julgamento desses casos? Há casos que andam com maior velocidade que outros? O que determina as diferenças nos tempos de tramitação? Como, enfim, é formada a pauta do STF – ou seja, como são definidos os processos que serão julgados em um determinado ano ou mesmo em uma determinada sessão?
Essas são questões cuja resposta não deriva das urnas, mas sim do tempo, da seriedade e do compromisso mantido pelos integrantes da Magistratura e, antes de tudo, pelo Presidente do STF, que – por mais uma dessas imperfeições de nossas instituições – também acumula o cargo de Presidente do órgão ao qual caberia controlar todo o Judiciário: o Conselho Nacional de Justiça.
Ao invés de buscarem constranger o voto alheio, aqueles que se preocupam com um Judiciário mais sólido deveriam, isso sim, exigir uma nova “sanha reformadora” para torná-lo mais transparente, participativo e aberto ao controle por parte dos cidadãos. O resto é ideologia, para não dizer tentativa de golpe.
(*) PhD em Direito, Política e Sociedade pela Northeastern University (EUA). As opiniões expressas neste artigo são de caráter estritamente pessoal.
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