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quarta-feira, 28 de maio de 2014

Leia palestra de Gilmar Mendes sobre a relação do Estado com as religiões

LAICIDADE E COOPERAÇÃO




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Embora preveja a separação entre o Estado e as religiões, o texto constitucional brasileiro não levanta uma parede entre as instituições públicas e as que professam qualquer tipo de fé. Pelo contrário. A Constituição prevê, expressamente, exemplos em que as organizações eclesiásticas colaborem com o Estado em diversas atribuições públicas. 
Esse foi o teor do discurso do ministro Gilmar Mendes (foto), do Supremo Tribunal Federal, em palestra feita em São Paulo no dia 19 de maio, em evento na Associação dos Advogados de São Paulo. O evento contou ainda com juristas de renome, como Roque Antonio Carrazza e Ives Gandra da Silva Martins.

Leia a íntegra da palestra do ministro Gilmar Mendes:
Boa noite a todos. Gostaria de cumprimentar a todos na pessoa do Dr. Luís Carlos Moro, diretor desta AASP, desta Associação dos Advogados de São Paulo, de tanta tradição. Cumprimentar também o dr. Rosenthal, seu presidente, e a todos os senhores. E dizer da importância desse tema no contexto do constitucionalismo em termos históricos e também do constitucionalismo em termos de atualidade.
Nós temos hoje um debate bastante intenso aqui, mas também alhures, a propósito da temática da liberdade religiosa. É claro, todos sabem que o Estado de Direito que o constitucionalismo logrou construir parte da premissa da laicidade, da ideia da separação entre Estado e religião, inicialmente entre Estado e Igreja e, entre nós, a Constituição Republicana de 1891 o faz de forma bastante clara, rompendo, portanto aí, com um dos alicerces do modelo anterior, da Constituição de 1824, que reconhecia expressamente a religião Católica com religião do Estado.
Tivemos, ao longo de anos, muitas controvérsias a propósito dessa temática e dessa relação, e a Constituição de 1988 trouxe alguma disciplina que ainda hoje suscita debates, discussões. Temos temas ainda abertos na jurisprudência do Supremo. Temos também temas que são, de alguma forma, vividos em toda a experiência dos Estados constitucionais. Temas ligados, por exemplo, ao não tratamento de pessoas, à não submissão de dados tratamentos por conta de uma dada concepção religiosa, e aí todos os desdobramentos que isso eventualmente envolve, desde a obrigatoriedade de submeter [o paciente] a esse exame; a obrigatoriedade do médico de notificar — até eventual responsabilidade penal —, ou às vezes, responsabilidade por omissão de quem eventualmente é responsável e não permite que se faça o tratamento adequado ou convencional.
Temos o debate que hoje é muito presente na Europa, e que também se faz presente de certa forma no Brasil, a propósito da colocação de símbolos religiosos, mais especificamente do crucifixo em determinados espaços públicos. E aí, depois, ainda vêm distinções: aceita-se em determinados espaços públicos, mas se diz que não pode haver a obrigatoriedade em determinados espaços públicos voltados para a formação de pessoas. Veja-se o caso do crucifixo em salas de aula nas escolas públicas na Baviera, na Alemanha. Em suma, portanto, o próprio tema dá ensejo a especificações ou a especificidades.
[Serão debatidos] casos de conflitos — eu vi pela temática [do seminário] — que envolvem a relação de colaboração ou de trabalho entre os membros de uma determinada associação e essa associação religiosa. Manifestações religiosas num determinado espaço, em que princípios elas são proibidas? Na jurisprudência da Suprema Corte [dos EUA] há um caso notório de uma pequena comunidade, essas chamadas cidades de companhia, muito comuns nos Estados Unidos, em que na verdade se estabelecia que não deveria haver manifestações partidárias nem religiosas. E um dado membro de uma dada comunidade, considerando os deveres que se lhe impunham, decidiu, dizendo que estava numa comunidade, manifestar a sua concepção religiosa, de maneira bastante discreta como sói acontecer nesse tipo de caso, e o tema se colocou. E aí se discutiu, um tema que é muito importante no nosso debate aqui, que é a aplicação dos direitos fundamentais nas relações privadas. Por que, claro, quando nós pensamos o direito de liberdade religiosa, prima facie, nós pensamos num direito de caráter negativo, numa relação para com o Estado em que ele não turbe, não perturbe e, tanto quanto possível, proteja as organizações e manifestações religiosas. Mas podem ocorrer realmente conflitos no âmbito da própria comunidade, e esse era o caso.
[] uma matéria que é objeto de análise e discussão na doutrina dos direitos fundamentais, a chamada “eficácia horizontal” ou “eficácia privada” dos direitos fundamentas. Os alemães chamam isso de “efeito entre terceiros”. E aqui nós temos, sem dúvida nenhuma, a necessidade de aplicação dos direitos fundamentais nas relações privadas, pessoas que eventualmente se integrem numa associação, a religiosa, e que agora busquem a proteção do Estado para nela permanecer, a despeito de não serem considerados integrantes daquela comunidade. Qual é a legitimidade do Estado, e agora do Estado-juiz, de intervir nesse tipo de questão. Ainda lembro, na nossa crônica judicial, de uma decisão que se tome, por exemplo, para excluir um pregador, padre, pastor, de uma dada instituição, ou ainda, casos como aqueles referentes a decisões que são tomadas por determinadas concepções religiosas no sentido, e lembro de um caso do Rio Grande do Sul, de não realizar um casamento de pessoas porque uma delas já fora casada. Eles vão, aí, buscar a proteção judicial. Em que medida nós não estamos aqui não respeitando esse espaço de autonomia? Em suma, são muitas as questões que se colocam quando nós temos como pano de fundo o tema “Constituição e religião”. Também temos algumas referências básicas que marcam o Estado de Direto quando ele não protege a liberdade de consciência e de culto. E isso a gente de vê quando em vez, nos tumultos das organizações estatais, especialmente nessas chamadas novas democracias. Temos um indicador de que a democracia ali não vai bem, de que o respeito ao pluralismo está, de alguma forma, a ser conspurcado.
Os ingleses têm uma expressão que está muito desgastada hoje, mas que tem muita aplicação no Direito Penal, que diz que a gente sabe que está num Estado de Direito quando se, às 6h da manhã, batem à nossa porta ou à nossa janela e a gente pensa ou imagina que é o leiteiro, e não polícia. Isso, portanto, é um índice, uma referência para medir a ideia de Estado de Direito. Também quando vemos a perseguição ou a não proteção efetiva àquilo que o texto constitucional preconiza em termos de liberdade de consciência e de crença, nós temos um índice, um indício forte, de que há uma conspurcação, um comprometimento da democracia.
O texto constitucional de 1988, como eu dizia no início, é claro, já no artigo 5º, inciso 6º, ao ressaltar a inviolabilidade da liberdade de consciência e de crença, assegurando o livre exercício dos cultos religiosos, e garantindo, nos termos da lei, a proteção dos locais de culto e de suas liturgias. Uma breve, brevíssima, análise dessa disposição mostra que o constituinte brasileiro não quis apenas garantir a liberdade religiosa e a liberdade de consciência como um direito de caráter propriamente negativo, em que o Estado cumprisse essa obrigação, esse dever, a partir de uma mera abstenção, mas estabeleceu também um dever de caráter prestacional opositivo, determinando que se garanta a proteção aos locais de culto e a suas liturgias. Portanto é um direito de caráter complexo, não é? Que exige do Estado, não apenas uma abstenção, mas também uma prestação. Não só em relação aos seus agentes, que eventualmente descumpram aquilo que está no texto constitucional quanto à inviolabilidade da liberdade de crença, mas também em relação a todos quanto venham a conturbar ou turbar o exercício desse direito.
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Revista Consultor 

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