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segunda-feira, 19 de maio de 2014

Pensar a escola pública é reabilitar vínculo crítico fundamental entre teoria e prática


É a partir da negatividade, da brecha, que a crítica deve ser feita. Insistamos, frente suas condições, no pensar-agir que a escola pública exige.


Gabriel Bichir


Marcelo Camargo/AgBrasil
Repensar o problema da escola pública no Brasil apresenta-se como uma das tarefas maiores da esquerda. Em primeiro lugar, cabe notar que não há propriamente um projeto de escola, apenas um vazio: vazio de pensamento, de inventividade, incapacidade absoluta de unir teoria e práxis em ações capazes de reverter o que anos de incompetência provocaram. Penso, sobretudo, no caso de São Paulo, mas é possível notar um processo semelhante também em outras regiões.              
 
Não há nada mais nocivo do que a tendência de se buscar soluções fáceis; cada um pode constatar esses inúmeros “milagres” redentores propagados nas épocas de eleição. No entanto, nada muda. Antes de tudo, faz-se necessário identificar o problema e circunscrevê-lo de maneira a possibilitar uma visão global da questão no interior da máquina social. A primeira questão a ser colocada deveria ser a seguinte: “O que é a Escola pública atualmente?”.            
 
Ora, essa simples interrogação já nos leva a uma constatação central: a escola não é o que esperaríamos dela. Não um local de formação, de amadurecimento e reflexão crítica, mas um depositório. Após o processo de democratização do país, muitas iniciativas foram propostas para se reconstruir a escola pública: era um momento de massificação do acesso. A ideia era usar a escola para tirar o jovem da rua, possibilitar a todos alfabetização e evitar o máximo possível a evasão. Essa fórmula teve seu mérito e cumpriu sua função durante certo período, mas o problema é que ela eventualmente cristalizou-se e recaiu em seu contrário. Se o objetivo inicial era encher as salas de aula e oferecer ensino de qualidade, depois de alguns anos a lógica inverteu-se e a escola tornou-se propriamente um depositório de crianças, ou seja, mera alternativa (fictícia e deficitária) à rua.
           
Isso se deve ao fato de que o processo de massificação não foi acompanhado por um trabalho sério de formação de alunos e professores, de maciços investimentos na infraestrutura e na qualidade do ensino. Deixada à deriva, a escola deteriorou-se rapidamente. Os salários dos professores, antes dignos, tornaram-se medíocres e os alunos passaram a ser jogados em um lugar que não mais fazia qualquer sentido para eles. O discurso da integração fincou raízes, tornou-se discurso da conciliação, da inclusão e a partir daí nada mais seria o mesmo. Eis o movimento dialético da catástrofe: uma escola incumbida da tarefa de integração tornou-se o local por excelência da exclusão. Escolas particulares começaram a florescer, a classe média não mais enviava seus filhos à rede pública. Restou ao pobre arcar com as consequências desse descaso. Em São Paulo, o governo tucano foi aquele a consagrar essa triste reviravolta: os salários de professores, reduzidos no governo Covas, continuaram baixíssimos. Além disso, não houve qualquer novo projeto efetivo para a educação: distribuíram-se livros e computadores, mas não se discutiu ideias; criaram-se "cadernos-receita" para o professor transmitir conteúdos pré-determinados, mas não se promoveu cursos de formação efetivos ou iniciativas de apoio ao problemático trabalho dentro da sala de aula, resolveram-se greves e reivindicações com polícia e não com diálogo etc.            
 
A escola descaracterizou-se por completo, tornando-se nada mais do que um depositório de crianças, uma fachada de educação que perdera sua capacidade de formar cidadãos. Isso se deu não apenas no âmbito global, como também no particular, por meio dos discursos de inclusão. Consideremos o problema de menores infratores, por exemplo. Uma possibilidade seria criar novas instituições com profissionais treinados e capazes de lidar com casos como esses, mas a “solução” foi amontoar todos na sala de aula e exigir do professor a fórmula mágica que levaria à reintegração e educação de todos eles. O menor infrator, que deveria ser reintegrado e reeducado, encontra uma escola largada e povoada pelo tráfico, com um professor completamente desmoralizado. Que tipo de melhoria poderia advir dessa iniciativa? Há também o caso dos deficientes mentais, em que a escola passou a substituir instituições como a APAE. Na teoria, muito interessante. Na prática, essas crianças foram atiradas junto às outras sem qualquer tipo suporte e acompanhamento profissional, de tal forma que não conseguiam aprender nada, ficando ainda mais perdidos. Com efeito, não há forma mais perversa de exclusão do que essa.            
 
O grande problema é atribuir toda a responsabilidade ao professor. Esta foi provavelmente a categoria mais desqualificada dos últimos anos. O professor não apenas ganha mal, mas tem uma jornada sobre-humana (isso quando não acumula cargo e trabalha em mais de uma rede) e é obrigado a lidar com situações que fogem absolutamente à sua competência. Lidar com crianças deficientes ou com jovens delinquentes não é algo que se aprenda da noite para o dia, nem é algo que deveria ser feito exclusivamente na sala de aula. Mas aí entra a sutileza da lógica inclusiva, pois ela passa por “bom-mocismo”; para quem não conhece de perto os problemas da escola pública, o discurso da inclusão parece excelente, eficaz. Obviamente, isso não passa de um simulacro que mascara a incompetência daqueles no poder, que buscam sempre a solução de fachada.            

A situação chegou a tal ponto que o professor não mais quer dar aula, e o aluno não quer aprender. O tráfico está cada vez mais presente nas escolas e nada é feito para desestruturá-lo. A grande proposta tucana de segurança é colocar uma ronda escolar que passa na frente da escola algumas vezes por dia. E quando os professores saem às ruas lutando por seus direitos, protestando contra essa situação absurda, a resposta é sempre bala de borracha. Deve-se mencionar, contudo, que as prefeituras do PT (Marta e Haddad) pouco ou nada fizeram para mudar esse quadro. Criar “CEUS” é outra medida paliativa que entra na mesma lógica pseudo-integradora. Fosse seguida de intervenções estruturais mais profundas e talvez tal iniciativa tivesse um impacto positivo, mas do jeito como foi posta em andamento apenas reforçou o que deveria ser combatido.            
 
O problema da escola pública tornou-se, essencialmente, um problema social. Enganam-se aqueles que pensam que é possível reverter a situação simplesmente aumentando a quantidade de recursos destinados à educação; isso já não basta. Se tais investimentos não forem seguidos de políticas sociais sérias de combate à desigualdade, de investimento na saúde e no transporte público, nada mudará. 10%, 20% do PIB, não há cifra que seja capaz de remediar ferida tão profunda: a educação paulista foi mutilada da maneira mais brutal e desonesta que esse país já viu. As eleições aproximam-se e os discursos repetem-se compulsivamente. Nenhum candidato de destaque consegue compreender a articulação dialética da escola com a sociedade, sempre atomizando as soluções. Atacar o universal (social) simultaneamente ao particular (problemas específicos de cada escola) é o único caminho possível de ação. Aumentar radicalmente os salários de professores, reduzir a jornada e o número de burocratas e instituições mediadoras do trabalho docente (como as Diretorias de Ensino e derivados), tirar o peso do professor de ser obrigado a lidar com casos que não deveriam ser sua atribuição, eis apenas alguns exemplos de ações que precisariam ser levadas a cabo.            
 
À academia, por outro lado, também seria altamente recomendável uma autocrítica. Essas falsas políticas integradoras são não só tacitamente aceitas mas disseminadas como ideal de educação por pessoas que jamais entraram em uma sala de aula. Não há análise possível sem a contaminação do universal no particular: cada escola pública conta sua história, histórias de sucesso e de tragédia, de abandono e de descaso, de diretores impotentes e alunos violentos, de professores baleados no portão de saída. Mas será que nossos educadores nas universidades conhecem tais histórias? Será possível pensar alternativas permanecendo no reino da idealidade e dos belos sentimentos?

De fato, a escola pública configurou-se como o puro espaço da negatividade. Ela é aquilo que não é: não é formadora, não é integradora (pelo contrário), não é segura, não representa uma boa perspectiva profissional para ninguém. É a partir dessa negatividade, dessa brecha, que a crítica deve ser feita. Não esperemos nada da escola particular: rendida à lógica da empresa, ela é a consagração da letargia e do utilitarismo do pensamento. Insistamos, pelo contrário, no pensar-agir que a escola pública exige. Questionemo-nos: como um lugar supostamente de inclusão pôde configurar-se como o maior espaço de exclusão social? Apenas escapando do idealismo acadêmico e do pseudo-empirismo atomizado das ações governamentais será possível livrar o pensamento das amarras e preconceitos que o prendem, o que servirá, ao menos, para abrir o campo de reflexão.                         
 
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Gabriel Bichir é estudante de Filosofia da FFLCH/USP






Créditos da foto: Marcelo Camargo/AgBrasil

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