A histórica rejeição por unanimidade das contas do governo Dilma Rousseff no Tribunal de Contas da União (TCU), pela primeira vez na história, terminou dando forma a uma acusação repetida a exaustão nos últimos meses, não muito bem clara para a maioria esmagadora da população brasileira: o crime envolvendo as pedaladas fiscais (ou fraudes contábeis, em bom português).
Após o anúncio, além do placar de 9×0, dois números chamaram a atenção. O relator do caso, ministro Augusto Nardes, apontou que as irregularidades atingiram a soma de R$ 106 bilhões apenas no ano de 2014 (sendo R$ 40 bilhões apenas nas pedaladas). Em outro momento, o ministro trouxe à tona o estarrecedor número de R$ 2,3 trilhões, referente a um déficit atuarial, acusando o governo Dilma de ter “feito sumir” este valor de seu balanço. Não demorou muito tempo para que o número circulasse em comparações com o esquema do Petrolão, que causou prejuízos de R$ 88 bilhões à Petrobras. Não faltaram acusações de que o Partido dos Trabalhadores embolsou esse dinheiro.
Neste caso, porém, as coisas não são exatamente o que parecem- e a ignorância econômica definitivamente não deve se tornar uma arma contra um governo cuja defesa está toda pautada em explorar a ignorância econômica alheia.
O atuarial da expressão refere-se às ciências atuariais, uma ciência que lida diretamente com o risco e é fundamental para estruturar questões relativas à previdência ou seguro, por exemplo. Fortemente focada em conhecimento da matemática, muitas vezes complexa e pouco acessível, as ciências atuariais são geralmente desconhecidas para a maior parte da população. Alguns conceitos, porém, são mais simples do que parecem e não requerem que você seja um grande conhecedor de estatística ou ministro de um Tribunal de Contas para entender. Um deles é exatamente o conceito de déficit atuarial.
Déficit atuarial nada mais é do que a soma do descompasso entre receitas e despesas de um regime previdenciário, e este é exatamente o caso da previdência brasileira. Baseada em 2 grandes grupos divididos em outros 2, a previdência pública brasileira é um grande problema com prazo para ser solucionado. Esta é a conclusão possível de se tirar do déficit apresentado pelo ministro.
O primeiro deles e mais amplo regime de previdência no Brasil é o Regime Geral de Previdência Social (RGPS), que inclui trabalhadores urbanos e rurais, e conta com mais de 24 milhões de beneficiários. O segundo e mais restrito, o Regime de Previdência Própria dos Servidores (dividido entre civis e militantes), conta com pouco mais de 1 milhão de beneficiários.
Representando nada menos do que 42% dos gastos primários da União (excluindo-se despesas financeiras), a previdência brasileira possui um déficit de R$ 112 bilhões. Para o espanto de muita gente, porém, o maior déficit não está com os 24 milhões de beneficiários do INSS – sujeitos ao fator previdenciário e a recorrentes corrosões em seus benefícios. O déficit dos 670 mil civis e dos 270 mil militares é de cerca de R$ 62 bilhões, contra R$ 50 bilhões dos beneficiários do INSS. O descompassoapontado pelo ministro, portanto, é a soma destes déficits até o prazo do último beneficiário receber.
Mas então, o que há de errado na previdência brasileira? A grande questão para entender por que o ministro considera que este déficit deve ser assumido pelo governo reside justamente no fato da nossa previdência ser um regime em que quem contribui sustenta quem está aposentado, e assim sucessivamente. Ao contrário da maioria dos países, o dinheiro que você contribui para a previdência não é um dinheiro seu. Este sistema tem prazo limitado. Em 2000 haviam 11,5 pessoas contribuindo para cada beneficiário. Em 2060, a projeção é de que sejam 2,3 para cada beneficiário, tornando a conta inviável e forçando um aumento dos gastos de impostos para cobrir os rombos.
Não se trata, portanto, de um dinheiro que tenha sido mal gasto ou embolsado pelos membros do governo.Os tais R$ 2,3 trilhões não estão na conta de um membro do partido ou da própria presidente, mas sim em uma projeção futura de gastos não contabilizada no orçamento federal. Trata-se de mais um caso inequívoco de como a ignorância é uma faca de dois gumes. Em outra ocasião, não faltou quem dissesse que o ex-governador de Minas, Aécio Neves, havia desviado R$ 4 bilhões da saúde no estado. O termo desviado foi notoriamente utilizado como roubo, quando na realidade se refere a um desvio de função. Os recursos foram utilizados em outra área que não aquela previamente determinada (algo que ocorre em mais de 2/3 dos estados brasileiros).
O que é possível fazer para resolver a questão? Durante décadas a previdência funcionou como um caixa extra para o governo. Milhões de trabalhadores contribuíam mensalmente para bancar poucos beneficiários, levando a diferença para a conta do governo, que passou a gastar os recursos sem se preocupar em poupá-los. Em boa parte dos países este modelo inexiste – substituído por outro, o modelo de capitalização, onde os recursos pagos à previdência vão para uma conta que tem por intuito gerar rendimentos para bancar a previdência futura. Este é o modelo que o governo tem buscado adotar com os servidores (apesar d ampla rejeição de sindicatos que acusam o Planalto de privatizar a previdência).
Para os trabalhadores comuns, entretanto, a opção de poder escolher entre a mais eficiente forma de acumular recursos ainda é uma realidade distante. Os trabalhadores brasileiros continuam bancando um modelo ineficiente e que a cada ano impõem maiores restrições. A maior delas, o fator previdenciário, continua em vigor e é muitas vezes apontada como uma solução pelo governo. Trata-se de uma tentativa de reduzir os benefícios pagos para mascarar a realidade e manter as aparências de viabilidade do regime.
Os problemas apontados pelo ministro, porém, vão um pouco além deste. As pedaladas são uma realidade incômoda e põem em risco algo conquistado a duras penas no país: a responsabilidade fiscal. Pilar da bem sucedida política de crescimento adotada pelo país entre 2000 e 2009, a Lei de Responsabilidade Fiscal, apesar de não estar totalmente adaptada ao governo federal, serviu para balizar o comportamento esperado de um Estado moderno. Durante mais de um século as relações entre governos e bancos públicos foram as mais promíscuas possíveis. Caixa e Banco do Brasil serviram de base para a expansão descontrolada de gastos públicos e uma das maiores crises de inflação da história mundial.
A melhora nas práticas de gestão levaram o país a considerar irregular o uso de recursos de bancos públicos como recursos do governo, tornando-se assim crime o que foi realizado à exaustão durante o ano de 2014, quando Caixa e Banco do Brasil utilizaram dinheiro próprio para bancar gastos de benefícios como o Bolsa Família. Em suma, o governo atrasou os repasses à Caixa durante meses, deixando a conta no vermelho para ser coberta pelo próprio banco. Esse é, na essência, o legado positivo da rejeição das contas do governo pelo TCU. A decisão do tribunal põe um mais do que necessário freio às políticas expansionistas do governo que nos levaram à crise atual. Nenhum governo, afinal, está acima da lei e pode se utilizar de fraude para agir.
Fonte: http://spotniks.com/nao-dilma-nao-embolsou-r-23-trilhoes-isso-e-o-que-voce-precisa-saber-sobre-esse-dinheiro-todo/
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