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O verdadeiro desafio não é inserir uma idéia nova na mente militar, mas sim expelir a idéia antiga" (Lidell Hart)
Um verdadeiro amigo desabafa-se livremente, aconselha com justiça, ajuda prontamente, aventura-se com ousadia, aceita tudo com paciência, defende com coragem e continua amigo para sempre. William Penn.

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

A invasão do Alemão e o fascínio do cinema


"Primeiro com Central do Brasil e, em seguida, com Cidade de Deus, o país vibrou na espera do milagre da transubstanciação do sangue em Oscar. Indo além desses filmes, Tropa de Elite inaugurou o período em que a violência deixou de ser apenas mórbida e pavorosa, sendo elevada à condição de heróica"
Bajonas Teixeira de Brito Junior*
Ficou estabelecido o consenso de que a intervenção repressiva no Rio de Janeiro foi um sucesso. Entre as cenas reunidas, com roteiro assinado pela Rede Globo, figuram a população aplaudindo a polícia e o exército, a cartinha da criança agradecendo à polícia, o garçom que faz o secretário de segurança do Rio chorar, a bandeira nacional hasteada no ponto mais alto do Alemão. Todas essas narrativas isolam fatos simbólicos que seriam exemplares por eles mesmos e, por isso, dispensariam palavras. Sequer a questão sobre a veracidade problemática de alguns deles é considerada.

Não foi à toa que a intervenção no Complexo do Alemão veio logo depois do impacto do filme "Tropa de Elite 2". Seguindo o padrão estabelecido pela ficção, o acontecimento político estava maduro para se tornar filme, embora um filme quase mudo em que a expressão verbal articulada, sem a qual não há pensamento,  foi abolida. O importante são as cenas e a parafernália da violência. Basta considerar que um dvd com imagens do conflito ("Terror no Rio 2010") já está à venda nas ruas do Rio de Janeiro — “Só não pode deixar criança ver, porque tem cenas muito fortes, que não passam na TV”.

É claro que, para todos os fins, as cenas amontoadas em dvds  como esse  vão substituir os próprios filmes dedicados à violência, porque seguem a mesma linha, com a vantagem de imagens ainda mais fortes e vocabulário reduzido a nada. O "Terror no Rio 2010" já é anunciado por alguns camelôs como o "Tropa de Elite 3". É um sucesso de vendas.  Sintoma da mais íntima cumplicidade da imagem com a violência, esse dvd possui a curiosa propriedade jurídica de, apesar de pirata, não ser ilegal. Ninguém é dono do seu copyright porque ele é obra de  atores coletivos que, ainda por cima, atuaram sem cobrar cachê. Nele, some a fronteira entre legalidade e ilegalidade, e junto com ela,  a diferença entre fato e ficção. 

O efeito do filme "Tropa de Elite 2" sobre o discurso da classe média, que até pouco tempo era a classe que monopolizava a palavra no Brasil, pode ser medido pela repercussão das suas expressões. O UOL estampou algumas dessas frases, que viraram hit na internet, e convidou seus leitores a tuitar as suas favoritas. Em 221 comentários, os leitores deram a sua contribuição, deixando nítido o grau em que a gíria da violência colonizou o vocabulário corrente. É interessante notar que o convite do UOL foi feito em 10 de novembro. Essa data serve de parâmetro para se verificar a grande proximidade entre o efeito do filme e a intervenção no Alemão.
Durante os dias do conflito, apenas nas entrevistas de dois padres de igrejas situadas no entorno do Alemão, o termo "bandido" não foi usado para classificar os envolvidos com o tráfico e seus associados. No mais, a palavra foi repetida à exaustão na mídia nacional, inteiramente conduzida pela Rede Globo, desprezando qualquer pudor com o estilo.  A dica mais elementar para uma redação é evitar a repetição de palavras. Na cobertura da invasão, a cada minuto, se podia constatar a compulsiva repetição do termo "bandido", indicando a supressão de qualquer nuance. Os vídeos e as matérias estão na rede. É só acessar as páginas da Globo.com dos dias do conflito para encontra-las. O mesmo pode ser constatado no UOL.
Chamamos a atenção do leitor para o fato de que nos conflitos bélicos o termo "inimigo" é usado como expressão relativamente neutra. Sua função principal é classificar e qualificar, designando com clareza a força contra a qual se luta. Já a utilização da palavra "bandido" arrasta uma carga emocional imediata que, repelindo todos os matizes, cobre aqueles por ela designados como portadores de um estigma sem perdão. Ficando suspensa a capacidade de reflexão (e refletir é justamente atentar nos matizes), o ódio se torna a única força dominante. Se pode então estender o estigma ao conjunto da população pobre das áreas hoje ocupadas.
Evidentemente, a ficção policial do diretor de "Tropa de elite 2" não é responsável pelos fatos. Isso é óbvio. Os ataques na cidade e a invasão subsequente se deram dentro de um contexto que veio amadurecendo nos últimos anos. Esse contexto é aquele no qual as avassaladoras forças das mídias tradicionais, dos programas televisivos de baixíssima qualidade, da interação de "ficção" e "realidade" através dos reality shows, e, especialmente, através da exaltação da violência promovida pelos dois filmes "Tropa de Elite", reduziram a zero a capacidade crítica da classe média. Os fatos foram interpretados na ótica da ficção, mas de uma ficção que, fazendo aflorar a violência quase nua,  substituiu o discurso pela gíria do submundo. Isto é,  pelas expressões popularizadas no último mês através de "Tropa de Elite 2". 
Desprezando a ingenuidade das chanchadas das décadas de 40 e 50, o cinema brasileiro viveu um longo ciclo orientado para a Europa. Com algumas exceções que, embora muito relevantes, não mudaram a corrente, o cinema  brasileiro tentou vestir seus personagens com trajes europeus. Durante décadas, raro foi o filme no qual não se introduziu um laço com a Europa, na maioria das vezes de modo bastante forçado: era fulano que chegava da Europa, Beltrano que vivia na Europa, Ciclano que partia para a Europa. Nesses filmes, a violência maltratava só a arte, o que não é pouco, contentando-se em forçar a barra estética.
Essa obsessão foi substituída desde "Central do Brasil" (1998) pela representação da violência e da miséria urbana características do Brasil. Essa mudança temática pareceu inicialmente indicar uma virada no sentido da autoconsciência, de uma tematização que tornaria possível refletir e superar a violência no país. Ao invés disso, assistimos à virada do foco da Europa para os Estados Unidos. Em lugar do reconhecimento em Cannes, ou do Urso de Ouro em Berlim, passou-se a cobiçar o Oscar da Academia. Do cinema para europeu ver, se passou ao cinema para americano premiar.
No fundo, essa situação reflete as enormes limitações na percepção cognitiva e na capacidade artistica dos criadores desses filmes. Mas esse é outro assunto. 
A extrema violência, que deveria ter envergonhado as elites políticas brasileiras, ainda mais quando exposta nas telas, se tornou através da torcida nacionalmente organizada nas premiações do Oscar um motivo de orgulho nacional. Primeiro com "Central do Brasil" e, em seguida, com "Cidade de Deus", o país vibrou na espera do milagre da transubstanciação do sangue em Oscar. Indo além desses filmes, "Tropa de Elite" inaugurou o período em que a violência deixou de ser apenas mórbida e pavorosa, para ser elevada à condição de heróica. Com isso, se adicionou ao orgulho, um forte elemento de exaltação. 
Assim foi gerado o primeiro super-herói brasileiro, o Capitão Nascimento, homem sem medo que faz parte daquela família de personagens que, como disse Fellini, é a dos "super-homens das revistas em quadrinhos, que são homens sem interioridade, bastante tolos".  A tolice mais desenfreada virou modelo para o Brasil do século XXI. 
Em tudo, o fato mais grave, e mais sombrio, está na promoção do conflito urbano a um conflito militar, designado como “guerra urbana”. O governo Lula se encerra inaugurando uma era que, provavelmente, ultrapassa tudo aquilo que o regime militar ousou: este mobilizou o exército contra os segmentos mais radicalizados da classe média; o governo Lula avançou no sentido de militarizar todo conflito urbano, e apontar o poderio militar para as classes mais destituídas da população nas quais, como mostram todas as estatísticas, se concentram o maior número de negros. Entramos no limiar de uma biopolítica que pode ter conseqüências as mais desastrosas. 
Essa política, por sua vez, guarda uma relação interativa com o projeto de super-polícia do ministro da Defesa, e se liga a um modelo de urbanização cuja linha mestra é a contenção das áreas de favelas dentro de guetos. Guetos muito parecidos com  campos de concentração, possuindo cada um até a sua própria guarnição.  Chegou-se a projetar muros bastante altos dotados de guaritas. Na época, a secretária estadual de Ambiente no Rio,  Marilene de Oliveira, disse que eram condomínios. O Rio de Janeiro é hoje o laboratório de um projeto para o Brasil inteiro.

Considerando todos os ingredientes disponíveis, é possível que o próximo filme de exaltação da violência no Brasil aconteça em tempo real e em escala monumental.  Para essa mega-produção, para a qual não faltarão figurantes dos dois lados, a invasão do Complexo do Alemão talvez apareça como o primeiro e tímido ensaio.  

*Doutor em Filosofia, professor universitário e autor do livro "Lógica do disparate". É pesquisador da Cátedra Unesco de Multilingüismo Digital, da Unicamp, e coordena a revista eletrônica Revista Humanas

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