As ameaças ao direito à moradia em BH
A história de dois despejos arbitrários em Belo Horizonte mostra a força das pressões imobiliárias nas grandes cidades e o desprezo do poder público pela habitação popular
Por Douglas Resende e Felipe Magalhães [*]
No começo da noite de 20 de setembro de 2010, o Corpo de Bombeiros foi acionado para cuidar de um incêndio em um dos prédios das chamadas Torres Gêmeas, no bairro Santa Tereza, região leste de Belo Horizonte. Os dois prédios começaram a ser ocupados, espontânea e paulatinamente, em 1995, depois que a construtora LPC faliu e abandonou as obras já no final. Até a noite do incêndio viviam 164 famílias nos dois edifícios, principalmente pessoas que estavam em situação de rua e outras vítimas do déficit habitacional da capital mineira.
Embora o fogo não tivesse se alastrado para além do 7º andar do número 100 das Torres Gêmeas, os bombeiros, por uma questão de segurança, evacuaram todos os 17 andares do prédio. E, logo em seguida, veio o golpe contra os moradores – a tropa de choque da Polícia Militar cercou o edifício com a ordem de não permitir que voltassem a seus apartamentos. Mais de três meses depois, o lugar continua cercado, com policiais fortemente armados, 24 horas por dia.
O caso desse despejo arbitrário expõe o modo como a prefeitura municipal de Belo Horizonte tem lidado com a histórica questão, comum nas grandes cidades brasileiras, da fragilidade das políticas públicas para a habitação de interesse social e do planejamento urbano de modo geral. E alertou os movimentos sociais e os sujeitos diretamente atingidos pelo problema para a iminência de outras ações de remoção na cidade. Nove dias depois, articulados pelas Brigadas Populares (organização que atua, entre outras frentes, na luta pelo direito à cidade, moradores de mais três ocupações fizeram um acampamento na porta da prefeitura, numa forma pacífica de chamar a atenção das autoridades e da população para o risco de perderem suas moradias. A preocupação é que uma remoção em massa iria causar um grande trauma social na cidade, dada a dimensão que essas ocupações ameaçadas abrangem, envolvendo cerca de 20 mil pessoas.
Nenhuma das duas secretarias municipais procuradas para se posicionar em relação ao tema – a secretaria de Habitação e a de Governo – respondeu à solicitação da reportagem. O silêncio, neste caso, significa também omissão. A urbanista Raquel Rolnik, professora da USP e relatora especial da ONU para o direito à moradia, visitou as Torres Gêmeas e a Ocupação Dandara, em outubro, e testemunhou a postura negligente da prefeitura. Ela foi uma das poucas pessoas que o prefeito Márcio Lacerda aceitou receber para tratar do assunto.
“O prefeito considera que os canais de diálogo com os movimentos de moradia já estão estabelecidos. Para ele, a abertura de um canal específico desrespeitaria o procedimento institucional, e portanto isso não seria isonômico e democrático”, conta Rolnik. “Argumentei que, embora exista uma política estabelecida, situações de extrema vulnerabilidade, como as que eu vi, não têm como aguardar anos na fila esperando a vez. E que é sempre necessário constituir outras alternativas. Além disso”, continuou a professora, “ter formas diversificadas de ação faz parte de uma política de habitação. Por fim, disse que a postura de diálogo, de negociação, de atendimento, não significa desrespeito aos canais institucionais – isso pode ser uma ação complementar da política pública. Mas não senti da parte dele uma abertura”.
Raquel explicou ainda que, segundo sua percepção, “existe uma questão ideológica da parte do prefeito de não tolerância às ocupações e seus métodos”, caracterizados como “ações políticas contra o governo”. Isso constitui um discurso muito comum no Brasil: a “desqualificação” das ações de ocupação como estratégia de se esquivar do real problema. “É bastante grave, porque estive nas ocupações e, de fato, estão ali situações de extrema vulnerabilidade. Podem ter lá dentro militantes, claro, mas você não pode reduzir aquela situação a uma situação de natureza política”.
Marasmo e oportunismo
Em 1999, a Justiça determinou a saída dos moradores das Torres Gêmeas. Mas a ordem judicial nunca foi cumprida pelo batalhão responsável da PM, que se recusou a realizar a tarefa em função da falta de solução da prefeitura para as centenas de famílias. Até então, a prefeitura de Belo Horizonte sempre havia tido uma postura passiva em relação à ocupação, nem forçando a remoção, nem buscando solução, a questão se tornou delicada dentro do contexto urbano e político da cidade – a supervalorização do mercado imobiliário, somada ao fato de as Torres Gêmeas estarem situadas em uma área central, valorizada, pressionou o município no sentido de remover os moradores. Coincidentemente, aliás, foi inaugurado, poucos dias depois do incêndio, um enorme shopping center em frente aos prédios. Todos esses fatores levantaram a suspeita de que o incêndio pudesse ter sido provocado, com a finalidade de fabricar uma justificativa para a remoção.
Margarete Leta, professora de urbanismo da UFMG e técnica do Escritório de Integração da PUC-Minas, não acredita nessa possibilidade, mas diz que o incêndio foi claramente usado para cumprir o despejo. “Foi oportunismo da prefeitura – o fogo fez para eles o que durante anos não conseguiram fazer”, disse. Leta foi corresponsável por um projeto elaborado em 2004 para a desapropriação e reforma dos prédios. A proposta foi elaborada por uma assistência técnica formada por urbanistas e pelo Serviço de Assistência Jurídica da PUC-Minas, junto com a associação dos moradores, e encaminhada a um edital de crédito solidário do Ministério das Cidades, via Caixa Econômica Federal. O projeto foi aprovado no edital, mas ficou emperrado em burocracias e não teve apoio da prefeitura. “O financiamento do crédito solidário era de até R$ 20 mil. Com R$ 18 mil por família, fizemos um estudo de viabilidade técnica e econômica que conseguiria recuperar o prédio. A prefeitura teria só que entrar para desapropriar o terreno, sendo que o pagamento da desapropriação seria feito com o próprio dinheiro do financiamento”, relembrou Leta. A situação das famílias poderia, portanto, ter sido regularizada, sem sequer exigir grandes esforços da prefeitura. “Poderia ter sido feito em 2004 como poderia ser feito agora. Só que não interessa à política pública. A gestão do PT não queria desapropriar os terrenos não sei por que motivos. A do Lacerda acho que é mais evidente: é uma política de ‘ali não é lugar para pobre’”, completou.
Assim como acontece em outras grandes cidades do país, o marasmo do poder público para tentar solucionar o déficit habitacional fica explícito aí e no desprezo a diretrizes básicas do Estatuto da Cidade, lei federal aprovada em 2001. O Estatuto prevê, por exemplo, o IPTU progressivo para áreas ociosas que não cumprem sua função social, taxando-as de forma diferenciada. De acordo com o instrumento, a partir do quinto ano de abandono, o imóvel pode ser desapropriado pelo município. “Em São Paulo, mesmo tendo uma prefeitura conservadora, do DEM, o IPTU progressivo foi regulamentado”, lembrou Joviano Mayer, liderança das Brigadas Populares. “Então não é nada, digamos, revolucionário. Até porque muitas vezes a retenção de vazios urbanos vai na contramão dos interesses de desenvolvimento do próprio capitalismo”. O usucapião coletivo urbano e a concessão real de uso são outros instrumentos presentes na lei que poderiam inclusive ser utilizados a favor dos moradores das Torres Gêmeas, há mais de 15 anos vivendo no imóvel. “No entanto, o que predomina é o interesse do capital imobiliário”, disse Joviano.
Capital imobiliário
Os conflitos presentes na capital mineira foram intensificados por circunstâncias político-econômicas particulares. O contexto em que ocorre o embate entre as ocupações e o mercado imobiliário revela os rumos tomados pela política urbana no Brasil metropolitano, após um período de grandes expectativas ligadas à aprovação do Estatuto da Cidade. Os princípios norteadores da política urbana dos últimos 15 anos se situam entre a busca pela reforma urbana, a promoção do direito à cidade e a inversão de prioridades, por um lado, e o chamado planejamento estratégico – que envolveria uma série de ações voltadas para o marketing da cidade e a promoção de sua imagem, visando à atração de investimentos, assim como de grandes eventos, e o aumento da atratividade turística. A cidade teve, nos últimos anos, uma guinada na direção desta segunda vertente, principalmente na gestão de Márcio Lacerda.
A perspectiva de uma Copa do Mundo realizada no Brasil é vista como um agravante. Há o receio de medidas higienistas na cidade, numa versão do Choque de Ordem carioca. Não por acaso, uma ocupação que já era vista como consolidada, conhecida como Recanto UFMG e situada na avenida Antonio Carlos, a 500 metros do estádio do Mineirão, está em vias de remoção. “Utiliza-se a Copa do Mundo como pretexto para medidas segregatórias, e criam-se cidades mercadorias”, comentou Joviano.
É marcante neste contexto o fato de que o mercado imobiliário urbano vem tendo nos últimos anos um intenso processo de valorização, cujas causas passam substancialmente pelo aumento da renda e uma maior facilidade de acesso ao crédito, permitindo financiamentos de longo prazo para uma camada mais ampla da população. Isso impulsiona uma demanda por moradias em patamares inéditos no Brasil. Na capital mineira, essa valorização atinge também os bairros de padrão popular, potencializando ganhos sem precedentes para os incorporadores imobiliários capazes de encontrar áreas para expansão e adensamento no município, de território bastante pequeno para padrões de grandes metrópoles.
No entanto, como lembrou a professora Leta, a valorização exclui financiamentos para “as faixas de 0 a 3 salários mínimos, dos créditos solidários, do programa Minha Casa, Minha Vida, que ficam esvaziados. Ninguém quer construir para essa faixa”. Isso gera pressões de expulsão da população de baixa renda da capital para os municípios vizinhos, tornando ainda mais urgente a problemática metropolitana na cidade e região. A dinâmica imobiliária geralmente está por trás de amplos processos de transformação nas cidades, historicamente tendo força inclusive de influenciar diretamente as ações do poder público, seja no provimento de infraestrutura ou na definição de regras de uso e ocupação do solo. Isso muitas vezes acontece de forma desligada de um planejamento mais amplo e de longo prazo.
Segundo o urbanista Tiago Castelo Branco, esse poder do mercado de influenciar as regras pode ser visto claramente no caso da Dandara, ocupação organizada na região norte de Belo Horizonte, de cujo planejamento participou como técnico. Os proprietários deixaram o terreno vazio – ele não tem tido qualquer uso desde os anos 1970 – porque a legislação municipal para a região lhes impedia de viabilizar economicamente um empreendimento ali. Enquanto isso, o terreno “engordava”, num mercado em virtuosa ascensão, e ainda podiam esperar por uma mudança na legislação. “Eles sabem que conseguem pressionar [o poder público] na hora de votar uma nova lei. São poderosos, vão em peso...”, comenta o urbanista.
Soma-se a isso o fato de que o entorno imediato da ocupação vem sendo objeto de interesse de grandes construtoras – a MRV e a Tenda compraram, recentemente, uma grande fazenda vizinha do terreno. As construtoras também se interessam pela remoção das famílias para que seus lançamentos imobiliários não sejam desvalorizados no mercado em função da proximidade de uma área de ocupação de baixa renda. Ou seja, trata-se de um caso em que a dinâmica de pressão dos capitais imobiliários na direção da expulsão da população pobre se concretiza de forma mais crua e radical, promovendo um conflito aberto com a ocupação, que se torna uma pedra no caminho da valorização da área.
Dandara
Se por um lado há a franca ineficácia da política pública urbana, muito aquém da demanda por moradia, por outro existe o poder de auto-organização da sociedade. A Ocupação Dandara vem chamando atenção por suas particularidades e sua inserção nesse contexto mais amplo da política habitacional de Belo Horizonte. Situada no bairro Céu Azul, ao norte da Pampulha, a ocupação foi iniciada em abril de 2009, com cerca de 150 famílias, e atualmente é composta por aproximadamente 900, segundo lideranças da comunidade. As Brigadas Populares (inicialmente em conjunto com o MST) foram os responsáveis por articular a ocupação da área de cerca de 40 hectares em meio a bairros consolidados.
A Dandara tem uma diferença fundamental da maioria das áreas que passam por processos semelhantes de urbanização espontânea: o planejamento da ocupação. Joviano Mayer defende que “a Dandara não reproduz o processo de favelização – lá existe um projeto urbanístico, do qual as famílias participaram, junto com profissionais da Arquitetura, da Geografia, do Direito. Há uma preocupação ambiental, porque é uma área que tem nascente e um dos poucos cursos d’água a céu aberto que banham a lagoa da Pampulha”. Assim, na criação do projeto foi delimitada uma área de preservação, não loteada, como apontam Margarete Leta e Tiago Castelo Branco ao abrir uma planta do projeto sobre a mesa, em uma sala da Escola de Arquitetura da UFMG.
Além disso, não há becos na área da ocupação. “São ruas com uma extensão satisfatória, com uma grande avenida de trinta metros de largura”, continuou Joviano. “Os lotes, de 128m², favorecem uma construção na qual a família pode viver dignamente. Então não somos – como muitas vezes a prefeitura nos acusa – responsáveis por começar uma favelização. Pelo contrário – somos uma solução à favelização.”
Esse planejamento, acrescentou Castelo Branco, “cria condições para o município lançar toda uma infraestrutura urbana de forma muito mais barata que em uma favela”. Ou seja, planeja-se cuidadosamente uma apropriação de um terreno ocioso, que não cumpre função social há 40 anos, centenas de famílias passam a ter perspectiva de resolver seu problema de moradia e elas mesmas constroem suas casas, restando ao município o papel de aplicar a legislação urbanística, desapropriando o terreno, e de oferecer infraestrutura, pois já se trata inclusive de um espaço urbano legal, com ruas, numeração.
Segundo Margarete Leta, “a política habitacional não enxerga a cidade como um todo, como um sistema. Se você olhar a região da Dandara, são áreas de cabeceiras, de cursos d’água. Não é à toa que são Zonas de Proteção, e devem ter uma ocupação menos adensada. Então esse modelo de ocupação para baixa renda com lotes individuais, do ponto de vista ambiental, é ideal. No entanto não é isso que vai ser feito, se essa população for tirada de lá.”
A professora Silke Kapp, do grupo Morar de Outras Maneiras (MOM) da UFMG, ressalta que é fundamental não perder de vista o fato de que a moradia das camadas de renda mais baixa é um problema inerente à cidade capitalista, devido ao simples fato de que “o salário mínimo é um salário de subsistência”, que não inclui no seu cálculo nem o dinheiro do aluguel nem o da prestação. A isso se soma a questão do acesso à terra na cidade. “Temos uma tradição longa de reserva de terra para rico e classe média, e nunca se fez a mesma coisa para a massa trabalhadora”, disse a professora. “Esse tipo de reserva contraria a lógica do capital. É engraçado porque todo mundo diz assim, ‘vamos fazer muita moradia para pobre, porque aí a gente aquece a economia’. Mas ao mesmo tempo, é predominante a opinião de que você não deve fazer essa reserva de terra. Então hoje, aqui em Belo Horizonte, tem muito financiamento que não tem terra para colocar a moradia – porque todos os empresários concordam que tenha financiamento e nenhum concorda que tenha reserva de terra. Tem uma contradição nessa história.”
[*] Felipe Nunes Coelho Magalhães: felmagalhaes@gmail.com
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Bruno Mello
BRIGADAS POPULARES
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