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segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

“A relação com a Argentina é especial e estratégica"


Antes de iniciar sua visita a Buenos Aires, nesta segunda-feira, a primeira viagem ao exterior desde que assumiu a presidência do Brasil, Dilma Rousseff concedeu entrevista a três jornalistas argentinos e definiu a Argentina como um parceiro de alcance estratégico, prometeu abrir o Brasil a fornecedores argentinos e disse que “os direitos humanos não são negociáveis”. "Estamos pensando em uma política de conteúdo regional, conjunta, com a Argentina. Estamos elaborando uma agenda para que Argentina e Brasil, países com grandes recursos alimentares e também energéticos, possam aumentar a agregação de valor e a geração de emprego na região", acrescentou.
De seu primeiro mês de governo, que se completará terça-feira, tem uma lembrança boa e uma ruim. A boa foi o ato de posse, onde “os brasileiros, tão afetuosos, gritaram e me saudaram pelas ruas como se fossem íntimos”. A ruim foi em Nova Friburgo, no Rio de Janeiro, quando se encontrou com o desespero dos familiares que tinham perdido algum parente nas torrentes de chuva e barro que mataram cerca de mil pessoas. Pronta para viajar a Buenos Aires, a presidenta brasileira Dilma Rousseff explicou a três jornalistas argentinos o que quer conseguir com Cristina Fernández de Kirchner.

- Meu foco é o seguinte – disse Dilma em uma pequena sala do Planalto com vista para Brasília -: uma vez mais, o governo brasileiro assume com o governo argentino o compromisso de desenvolver uma política conjunta e estratégica de desenvolvimento da região. Em nosso caso pensamos que o desenvolvimento do Brasil deve beneficiar a região inteira.

O exemplo que deu é um anúncio: “Vamos encarar uma estratégia muito forte para gerar uma política de provedores na área do pré-sal”, as novas reservas petrolíferas que o Brasil descobriu nos últimos anos em profundidades de até sete mil metros no Atlântico. Rousseff relatou que “até agora temos uma política que chamamos de política de conteúdo nacional. Estamos pensando em uma política de conteúdo regional, conjunta, com a Argentina. Estamos elaborando uma agenda para que Argentina e Brasil, países com grandes recursos alimentares e também energéticos, possam aumentar a agregação de valor e a geração de emprego na região. Com a Argentina, queremos uma sociedade na área da tecnologia e inovação e uma sociedade para o uso de tecnologia nuclear com fins pacíficos”.

- Tudo isso está na agenda?

- Estou dando um exemplo de foco. Vou salientar a ideia fundamental de uma relação especial e estratégica com a Argentina. Duas presidentes constituem um fato para festejar, porque os dois maiores países do Cone Sul estão dando uma demonstração de que suas sociedades evoluíram no sentido de superar o tradicional preconceito que existia contra a mulher no sul do mundo. Para mim também é bastante significativo que, na mesma região, tenhamos exemplos como a eleição de um índio na Bolívia, de um metalúrgico antes de mim aqui no Brasil. A América latina está dando ao mundo o exemplo de que certos preconceitos, certas barreiras econômicas e sociais, estão sendo superadas. Isso representa uma maior democratização de nossas sociedades e de nossos países. A presença da mulher aqui abrirá também a possibilidade de que ocorra o mesmo em outros países da América Latina, como ocorreu com Michelle Bachelet no Chile.

- Que tipo de contato manterá com a presidenta Cristina Fernández de Kirchner?

- Quero ter uma relação extremamente estreita com a presidenta Kirchner. E quero isso, em primeiro lugar, porque Brasil e Argentina são países que têm responsabilidades diante do conjunto da América latina, no sentido de fazer com que nossa região tenha cada vez mais presença no cenário internacional. Brasil e Argentina podem fazê-lo e o farão de maneira mais eficaz na medida em que nossas economias se articulem de uma maneira mais estreita, se desenvolvam e criem laços por meio dos quais ambos os povos ganhem com essa proximidade em matéria de desenvolvimento econômico, de desenvolvimento tecnológico e de melhoria das condições de vida dos povos brasileiro e argentino. Além disso, (Cristina e eu) temos uma proximidade facilitada pelo fato de que somos mulheres que representam as duas maiores economias da região. Essa presença de Brasil e Argentina articulados com líderes que são mulheres também permitirá uma presença maior nos órgãos de articulação internacional, como é o caso do G-20 ou do G-77, onde a Argentina assumiu a liderança.

Eu vivi várias experiências (multilaterais). Destaco uma: a conferência do clima. O fato de que, no G-77, a Argentina tenha essa posição de liderança, facilitará também a defesa dos interesses dos países do Sul. Na conferência do clima em Copenhague, Dinamarca, não tínhamos presença. Ter presença significa, hoje, que se expressará de uma forma mais efetiva uma parte da visão sobre o desenvolvimento sustentável que impera nesta região.

Unasul e Mercosul
Consultada sobre se o Brasil já tem posição firmada sobre a substituição de Néstor Kirchner na secretaria geral da União Sulamericana de Nações (Unasul), Dilma disse que os critérios são dois: rodízio e mesa redonda, “onde não há ninguém na ponta da mesa”. Sobre nomes, nenhuma palavra.

- Também para a Unasul é muito importante essa relação entre Brasil e Argentina – opinou a presidenta. Vou dar continuidade e aprofundar esse compromisso brasileiro, que foi assumido de modo muito firme pelo governo Lula. O destino do Brasil deve estar ligado e compartilhado com o resto de nossa América, assim como a melhoria das condições de vida do Brasil. É um mundo globalizado. Deixou de ser basicamente um mundo com um polo ou dois polos no máximo. É um mundo mais multilateral e exige a formação de blocos regionais. Essa é a razão pela qual, para mim, a relação com Argentina é especial, estratégica. Por isso a Argentina é o primeiro país que visito. É um país irmão do Brasil. Não estou desvalorizando nenhum outro. Mas até para os outros países é absolutamente importante que Brasil e Argentina estejam juntos. Não é uma relação de hegemonia que Brasil e Argentina propõem aos demais países da América Latina. Podemos liderar por nosso tamanho e por nosso nível de desenvolvimento econômico.

- Como funcionará a incorporação da Venezuela ao Mercosul?

- Para nosso bloco é muito importante que entrem outros países porque isso muda o nível do Mercosul. A Venezuela é um grande produtor de petróleo e gás. Tem muito a ganhar entrando para o Mercosul, e nós temos muito a ganhar com a sua presença.

Desvalorizações, não
Em toda a entrevista, Rousseff enalteceu a consolidação do poder regional dentro do multilateralismo crescente no mundo.

- Como o Brasil e coloca diante de atores de primeiro nível como os Estados Unidos ou a China no debate econômico mundial?

- É público e notório que Brasil e Argentina sofrem – como sofrem todos os países emergentes – as consequências da política de desvalorização praticada pelos países em questão, pelos dois maiores países do mundo. Parece-me que nossa posição no G-20 terá que ser cada vez mais de reação contra essas desvalorizações que sempre provocam situações complicadas no mundo. Falo das chamadas “desvalorizações competitivas”. Eu desvalorizo para competir com vocês. Essa política conduz a várias crises econômicas e a disputas políticas e econômicas. Não é boa política nem para a Argentina, nem para o Brasil, nem para nenhum país emergente. Os Estados Unidos, que detém a moeda que é reserva de valor, deveriam pensar nisso. Para nós também é muito importante que não haja perda de valor. É uma contradição que a moeda que é reserva de valor perca valor. Ao mesmo tempo, não podemos aceitar políticas de dumping, mecanismos de competição inadequados que não se baseiam em práticas transparentes. Os países têm que reagir diante desse quadro. Também sabemos que o protecionismo no mundo não leva a nada de bom. As perdas terminam não se limitando aquele país do qual alguém pretende estar se defendendo, mas acabam se esparramando por todo o sistema.

- Na Argentina, há muita inquietude e preocupação quanto a uma possível desvalorização do real. Pode-se dizer que isso não ocorrerá?

- Ninguém pode afirmar isso no mundo. Mas nós conseguimos, nos últimos tempos, manter o dólar dentro de uma banda de flutuação entre 1,6 e 1,7 reais por dólar. Por isso é que os organismos multilaterais são tão importantes para discutir esse tema sobre o qual os países desenvolvidos devem assumir sua responsabilidade.

Direitos humanos

Dilma Rousseff pronunciou-se contra o apedrejamento da iraniana Sakineh Mohammadi e mencionou várias vezes a expressão “direitos humanos” em seus discursos.

- Que tradução terão os direitos humanos na política externa brasileira?

- Até tive uma pequena divergência com o Itamaraty. Não vou negociar direitos humanos, ou seja, não farei concessões neste tema. Mas os direitos humanos não podem se limitar a um país ou a uma região. Isso é uma falácia. Temos que observar os direitos humanos em nosso país e em todos os países. Não se pode só ver o cisco no olho do vivinho porque, no caso dos países desenvolvidos, já tivemos episódios terríveis: Abu Ghraib, Guantánamo. E também considero que apedrejar uma mulher não é algo adequado.

Após mencionar a prisão que os EUA controlam no Iraque e a que conservam em território cubano, ambas questionadas por violações de direitos humanos, Dilma disse que “ter uma posição firme em direitos humanos não é simplesmente levantar o dedo contra um país e assinalar que esse país não respeita tais direitos”. E acrescentou que, “como diz a Bíblia, é bom olhar também o cisco em nosso olho”.

- O apedrejamento é uma forma de pena de morte.

- E eu sou contra ela. Mas não quero que se usem os direitos humanos como instrumento político. Não vou defender quem seja acusado de violar os direitos humanos, mas tampouco sou ingênua quando se faz política com os direitos humanos.

- Qual sua opinião sobre a situação de Cuba?

- Com a libertação de prisioneiros, Cuba deu um passo adiante no tema de direitos humanos. Mas há que respeitar os tempos deles. A política se faz em condições de determinada temporalidade. Nesta perspectiva, em Cuba há hoje um processo de transformação.

Os miseráveis
Fiel aos verbos que repete em relação aos oito anos de Lula, continuar e aprofundar, a presidenta do Brasil disse: “ainda temos cerca de 15 milhões de miseráveis. É preciso enfrentar esse problema sem permitir que caia o nível de vida dos demais, dos que ascenderam às classes médias. Nos últimos anos se produziu uma revolução. Conseguimos tirar da pobreza e fazer chegar à classe média uns 37 ou 38 milhões de brasileiros, se tomarmos os dados, ainda não totalmente finalizados, de 2010. Devemos continuar esse processo de elevação do nível de vida da população brasileira. Para tanto, devemos manter também o nível de crescimento econômico para garantir emprego para todos os brasileiros em condições de trabalhar. Não se trata só de transferir renda, como o programa Bolsa Família, mas sim de gerar milhões de empregos. Sem isso, um país como o Brasil não conseguirá fazer frente aos desafios”.

Na entrevista, a presidenta brasileira prometeu melhorar os sistemas de alertas [contra extremos climáticos] e colocá-los em funcionamento dentro de um ano. “Não se pode evitar as chuvas, mas é possível prevenir a situação dos que vivem na margem de riso”, disse, acrescentando que “foram 500 anos de abandono da população brasileira”. Esse abandono a que o Estado submeteu os brasileiros fez que com que centenas de milhares fossem viver no fundo de um vale inundável, em um morro que pode desmoronar ou em uma zona geologicamente perigosa.

Também admitiu que pode revisar o sistema de gestão de aeroportos, inclusive incorporando formas de parceria com empresas privadas, mas não endeusou nenhum método. Consultada sobre o grau de apego do Brasil pelo cumprimento dos contratos, foi sutil:

- É fundamental cumprir os contratos para contar com um marco regulatório estável. Havia contratos, sobre cujos termos não estávamos de acordo, que foram mantidos porque isso implicava respeitar a institucionalidade do país. Hoje muitos desses contratos estão terminando e então nós os mudamos. Depois de seu encerramento. Isso é que é o mais eficaz. A não ser que alguém queira negociar...Cada país tem seus problemas, suas condições históricas e suas explicações. No Brasil passamos por um processo. Foram necessários muitos anos para atingir a maturidade. Os países mais estáveis do mundo, como o Reino Unido, quando pensam que um contrato ficou desequilibrado contra o consumidor, econômica e financeiramente, chamam uma audiência pública e mudam os termos do contrato. Fizeram isso com o setor elétrico. Por isso digo que cada país tem seu processo diferente de construção de institucionalidade. A natureza de alguns sistemas pode levar a que se alterem as condições do contrato.

Que aconteceu no Reino Unido com os contratos de energia elétrica? Chegaram à conclusão de que a rentabilidade econômica obtida pelos grandes produtores de energia era excessiva. Demasiado lucro. O que fizeram? Mudaram as condições estabelecidas pelo contrato sobre como seriam transferidas aos consumidores os lucros obtidos da produtividade. Chegaram a inventar um fator, chamado fator X, para transferir esses lucros para os consumidores. Não me recordo da data exata, mas dever ter sido na segunda metade dos anos 90. O Reino Unido foi o grande introdutor das agências reguladoras. Por isso não se podem fazer leituras lineares. Dei o exemplo do Reino Unido porque eles são, digamos, o país dos órgãos reguladores.

A situação do Brasil é distinta. Mudamos o sistema por lei – por lei pode-se mudar – e conseguimos realizar uma reforma do setor elétrico. Quando descobrimos o pré-sal, o Brasil se regia pelo sistema de concessão. Terminamos com esse sistema, porque era um absurdo. O projeto de lei dizia: “De hoje em diante, o petróleo descoberto lá embaixo é da União (federal), chegue aonde chegue aqui em cima”. O sistema de concessão estabelecia que, quando o petróleo saía para a superfície, passaria a pertencer a quem tivesse o descoberto. O Brasil está saindo de um processo perverso: com suas riquezas e sua população, era um dos países mais desiguais do mundo.

Tradução: Marco Aurélio Weissheimer

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