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segunda-feira, 2 de abril de 2012

Com PEC 215, racismo permanece no Congresso

Proposta preconceituosa



No dia 21 de março, a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, por 38 votos a dois, entendeu pela constitucionalidade da Proposta de Emenda Constitucional 215, de autoria do deputado Almir Sá (PPB-RR), que tramitava desde 2000. As principais alterações são três: a) passa a ser competência exclusiva do Congresso Nacional a aprovação da demarcação de “terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas” (artigo 49, inciso XVIII, acrescido); b) considerar que, somente após a aprovação legislativa, é que tais terras seriam inalienáveis e indisponíveis (artigo 231, parágrafo 4º, alterado); c) determina que os critérios e procedimentos de demarcação de áreas indígenas deverão ser regulamentados por lei ( artigo 231, parágrafo 8º, acrescido).
Juntamente com ela, existem outras onze proposições, que procuram transferir ao Congresso Nacional também o reconhecimento de áreas remanescentes de quilombos e a criação de unidades de conservação. A proposta original era mais rigorosa ainda: entendia que o Poder Legislativo também deveria “ratificar as demarcações já homologadas”. A justificativa do projeto inicial: a falta de consulta ou consideração dos interesses dos estados-membros criando obstáculos aos entes da Federação e verdadeira intervenção da União, sem qualquer controle.
A proposta é manifestamente inconstitucional e deve ser combatida.
Primeiro: porque a justificativa ignora todos os argumentos expostos no julgamento do caso Raposa Serra do Sol pelo Supremo Tribunal Federal ( Petição 3.388, relatoria do ministro Ayres Britto), no sentido de que não se tratava de intervenção em estados da União, mas, ao mesmo tempo, entendendo que municípios e estados, no processo de demarcação, deveriam ser previamente ouvidos. Ficaram estabelecidas balizas jurisprudenciais – algumas questionáveis, é verdade – para o controle de tais atos.
Segundo: porque a demarcação das terras, justamente porque “tradicionalmente ocupadas” pelos indígenas, não cria direito algum, mas apenas tem efeito declaratório, e isto também ficou salientado pelo STF. Ou seja, o direito era preexistente, e o ato de demarcação é somente para declarar a área como sendo de ocupação indígena.
Terceiro: porque, sendo ato meramente declaratório e não constitutivo de direito, ele deve ser executado no âmbito administrativo e não legislativo ou judicial, sob pena de ofensa à separação de Poderes. Não há porque a declaração de um direito já existente ficar dependente da autorização legislativa posterior.
Quarto: porque, desde 1996, a matéria é regulada pelo Decreto 1.775, que estabelece contraditório e apresentação de razões em relação ao laudo apresentado pela Fundação Nacional do Índio (Funai). Os critérios estão previamente definidos e sequer existe necessidade de aprovação de uma lei formal, ainda mais considerados os parâmetros dados na decisão Raposa Serra do Sol.
Quinto: porque, apesar de não se reconhecer, a questão é discriminatória e racista, porque atinge somente as populações indígenas e visa, também, em breve, alcançar as terras de remanescentes de quilombos. E, nos dois casos, dar prioridade a grilagens, usurpação e aquisições violentas ou fraudulentas, com títulos de domínio de duvidosa veracidade, em detrimento da ocupação efetiva, ou seja, de posse. A conhecida predominância, na prática, da exibição de um título de domínio que “comprova” a posse, que, contudo, é fato e não documento.
Por fim, a aprovação fez lembrar duas situações distintas.
Primeira: quando da aprovação do Estatuto da Igualdade Racial, o senador Demóstenes Torres (DEM-GO) pediu a exclusão das expressões “raciais”, constantes no projeto, sob a alegação de que, pelo fato de “nunca ter havido a segregação das pessoas por causa da cor, foi possível criar um sentimento de nação que não distingue a cultura própria dos brancos da cultura dos negros”. A aprovação da PEC desmente, de forma veemente, este discurso “conciliatório”, “miscigenado” e “cordial”. Como disse certa vez Aníbal Quijano, com fina ironia: “todos en el Perú o en el Ecuador están orgullosos de ‘lo indio’, no siempre de los indios. Como en el Brasil están orgullosos de ‘lo negro’, no de los negros.” O mesmo se pode dizer dos indígenas.
Segunda: o STF está prestes a julgar (talvez no dia 18 de abril, véspera do “dia do índio”), a ADI 3.239, que discute o direito dos quilombolas. O julgamento de Raposa Serra do Sol foi visto, por muitos, como uma vitória gigantesca para os povos indígenas. A análise das condicionantes e da jurisprudência da Corte Interamericana e dos tratados internacionais – a que todo o Estado, incluindo o Judiciário, está obrigado – mostra que muitos direitos foram efetivamente limitados e novas demarcações ficaram visivelmente dificultadas por conta desta “vitória”.
As duas questões não estão dissociadas. O racismo, que não se vê como tal, e o colonialismo interno que permeiam as discussões jurídicas ainda são fortes o suficiente para que os direitos de negros e indígenas possam ser realmente exercitados e reconhecidas pela “sociedade maior”. O processo de descolonização e o combate ao racismo ainda têm um caminho muito longo. Os próximos embates mostrarão até que ponto “o preconceito e a discriminação no País não serviram para impedir a formação de uma sociedade plural e diversa”, como disse o senador Demóstenes, no seu parecer ao projeto do Estatuto da Igualdade Racial.
César Augusto Baldi é mestre em Direito pela ULBRA-RS, doutorando Universidad Pablo Olavide (Espanha) e servidor do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (Porto Alegre) desde 1989.
Revista Consultor Jurídico

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