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segunda-feira, 2 de abril de 2012

Ser citado em grampo de investigado não é prova

Conversa de comadre



A repercussão sobre o envolvimento do senador Demóstenes Torres (DEM-GO) e o bicheiro Carlos Augusto de Almeida Ramos, o Carlinhos Cachoeira, levantou uma questão jurídica sensível. Afinal de contas, qual a validade, como prova, de menções feitas a terceiros por um investigado em conversas grampeadas pela Polícia? 
O senador entrou no noticiário nos últimos dias por conta de declarações do bicheiro em diálogos pelo telefone. Cachoeira diz ao seu interlocutor ter relações próximas com o parlamentar, que antes de eleito era promotor de Justiça. 
Especialistas ouvidos pela ConJur são quase uníssonos: esse tipo de menção é um indício de ilegalidade e deve motivar investigações dos crimes citados na conversa. Mas não podem dar azo a uma Ação Penal por si sós, muito menos servir de razão para que se grampeie o telefone do citado.
Como resumiu o advogado Paulo Iasz Morais, conselheiro da OAB de São Paulo, devem ser investigados fatos e indícios de crimes. “Nunca se deve investigar uma pessoa para verificar se ela está cometendo um ilícito.” A professora e advogada Heloisa Estellita, do escritório Toron Torihara e Szafir Advogados, segue a mesma linha de pensamento. Para ela, a menção de terceiro em conversa grampeada só pode servir de “linha de investigação, jamais como prova de conduta por parte desse terceiro”.
Nesta quinta-feira (29/3), Demóstenes Torres teve aberto contra si um inquérito policial que corre no Supremo Tribunal Federal, devido ao foro privilegiado. O ministro Ricardo Lewandowski, relator do processo, autorizou a quebra de sigilo bancário do senador para consulta, pela Polícia, de movimentações dos últimos dois anos. 
Para o criminalista Luís Guilherme Vieira, mesmo antes da edição da Lei das Escutas Telefônicas, “a jurisprudência brasileira já se atentava que a escuta telefônica de um, sem o conhecimento do outro, só seria considerada válida se esse fosse o único meio de a pessoa provar que estava sendo vítima de um crime”. Essa, para ele, é a única exceção.
Fabrício de Oliveira Campos, do Oliveira Campos Advogados, levanta três possibilidades para o caso. A primeira é que se comece a investigar as acusações, e, para isso, o investigador deve solicitar à Justiça novo grampo, dessa vez incluindo o terceiro citado. A segunda é poupar o terceiro de escutas, e esperar que a imprensa faça todas as acusações. Isso porque, em tese, sabendo que está sendo investigado, o grampeado obviamente passaria a evitar falar de supostas ilegalidades. E a imprensa faria o papel do Ministério Público.
A terceira, e ideal, para Oliveira Campos, é que os interlocutores que fizeram a acusação chamem o terceiro à conversa. Os investigadores, ouvindo as conversas, devem presumir pelo não envolvimento do terceiro e apurar as informações muito bem. “Do ponto de vista constitucional, o correto seria prosseguir com as investigações contra os alvos originais, antes mesmo de se cogitar investigar o terceiro citado.”
“Uma escuta com menção a terceiro, portanto, só pode ser considerada a 'pontinha' de um imenso iceberg de possibilidades, que podem inclusive não dar em nada. Nunca podem ser consideradas como provas de participação de alguém num delito”, anotou o advogado.
Igor Tamasauskas, do Bottini Tamasauskas Advogados, levanta a questão da prerrogativa de foro. Segundo ele, assim que as autoridades investigadoras perceberam o envolvimento de uma autoridade com foro privilegiado, deveriam ter encaminhado as apurações para o órgão competente. No caso, o Supremo Tribunal Federal.
"Do ponto de vista estritamente jurídico, penso que há a necessidade de se verificar, no caso concreto, como e em que momento se identificou a presença da autoridade – e se as investigações prosseguiram assim mesmo . Aí é caso de nulidade, por violação da prerrogativa em questão. O que antevejo é mais uma grita contra o foro por prerrogativa de função, infelizmente, porque esse processo judicial tem tudo para ser reconhecida a nulidade", explica o advogado.
O criminalista Marcio Barandier conta que está à frente de casos em que seus clientes são processados porque tiveram seus nomes mencionados em conversas de quem, de fato, estava sendo interceptado. "Tenho uma cliente que não participa de nenhuma das conversas gravadas." Para ele, apenas a referência a uma pessoa em gravação telefônica é uma prova muito precária até mesmo para iniciar uma Ação Penal. O que pode acontecer é essa prova ter conexão com outras e ser apenas mais um elemento. Isso é diferente de uma ação que se baseia na palavra do investigado. Não se sabe a verdade, se há interesse em prejudicar determinada pessoa nem se o investigado está mentindo. 
São muito comuns, segundo Barandier, os casos em que se "vendem autoridades", ou seja, alguém que, na ânsia de obter alguma vantagem com um cliente, por exemplo, alardeia intimidade que não tem com um juiz ou um delegado. Não se pode dar tanta credibilidade sem saber dos interesses. No entanto, deixou claro que não quer falar sobre o caso específico de Demóstenes e Carlos Cachoeira.

Leia algumas declarações de criminalistas sobre a questão.
Desde antes da Lei das Escutas Telefônicas, a jurisprudência já se atentava que a gravação feita por um com o desconhecimento do outro só seria considerada válida se fosse o único meio de que aquela pessoa poderia dispor para provar que está sendo vítima de um crime. Essa é a validade. E não gravar para chantagear.
No caso específico, você tem o Cachoeira admitindo que a interceptação dele é legal. Ele está falando com alguém, e esse alguém tem prerrogativa de foro. Obviamente, a pessoa que está falando com ele vai cair na malha. Identificado isso, a autoridade que detectar, imediatamente deve encerrar a investigação e remeter a quem tem competência para processá-lo. Se continuou sorrateiramente, se fazendo de rogado, ao ouvir quem detém prerrogativa de foro, isso é ilegal. Tem que remeter a quem pode investigar o caso. Ou seja, não se pode ficar escutando indefinidamente para depois descobrir.
Foi, sem tirar nem por, o que aconteceu na Operação Furacão. Tinham um alvo, mas chegaram ao alvo "magistrados". Nesse exato momento, o processo subiu e foi para o Supremo.
Luís Guilherme Vieira


Parece-me que a referência a terceiro em conversa alheia pode até servir como "informação" apta a abrir linha de investigação para apurar a eventual verdade da informação captada, jamais como prova de conduta por parte desse terceiro, que tem de ser feita de forma direta, ou então, amparada em indícios no sentido que o Código de Processo Penal dá a tal tipo de prova.
Heloisa Estellita, advogada do Toron, Torihara e Szafir Advogados e doutora em Direito Penal pela USP


A conversa pode ser considerada um indício de ilicitude, jamais prova. O agente investigador, mesmo a Polícia, ou o MP, ao ter esse tipo de notícia deve iniciar a apuração, e o grampo é a última instância. Quando se faz uma investigação, se investigam fatos, e não pessoas. A diferença parece singela, mas é importantíssima. Se investiga o crime, e se vai atrás da pessoa que o cometeu. Jamais se investiga a pessoa para saber se ela está cometendo algum ilícito.
Acho lamentável, e prejudicial ao regime democrático, grampos realizados a partir de mero indício. A lei parece muito clara quando diz que o grampo deve ser usado como sustentação de investigação, quando já existem provas que sustentem a realização de atividades ilícitas.
Paulo Iasz de Morais, advogado e conselheiro da OAB-SP


Discutíamos isso aqui no escritório ontem. Em tese, identificada o envolvimento de autoridade com prerrogativa de foro, a investigação deve ser remetida ao tribunal competente. A dificuldade prática que pode surgir é se a investigação – a escuta etc – está em curso e somente no momento do tratamento das informações é que se identifica a situação (autoridade com foro). Ou, então, o que pode ser pior, é se a autoridade policial deixa somente para o final (por dificuldade ou não) a identificação da autoridade com prerrogativa.
Do ponto de vista estritamente jurídico, penso que há a necessidade de se verificar, no caso concreto, como e em que momento se identificou a presença da autoridade – e se as investigações prosseguiram assim mesmo . Aí, é caso de nulidade, por violação da prerrogativa em questão. O que antevejo é mais uma grita contra o foro por prerrogativa de função, infelizmente, porque esse processo judicial tem tudo para ser reconhecida a nulidade.
Igor Tamasauskas, do Bottini Tamasauskas Advogados


Pensando numa articulação rápida e invertendo a pirâmide de raciocínio, começo pela conclusão: a mera referência à conduta de um terceiro, na interceptação, não é prova suficiente dessa conduta e não vale nada, do ponto de vista probatório, se não se tem outros elementos que harmonizem os comentários interceptados com o crime que se apura (isso vale para lavagem de ativos, formação de quadrilha, homicídio, corrupção ativa etc). Uma alusão feita a terceiro por interlocutores interceptados, portanto, não é a mesma coisa que a interceptação do próprio investigado ou daquele a quem se atribui atividade criminosa.  
Então a polícia descobre, na conversa interceptada (imagino-a legalmente interceptada) que Tício e Caio articulam-se com Terêncio em negócios ilícitos. O que pode acontecer com Terêncio?
Opção A (Operação Investigar Terêncio): Nesse caso, os investigadores podem requerer a renovação das operações de interceptação (STJ e STF concordam que elas podem durar por sucessivas renovações, ou seja, por períodos de 15 dias, desde que haja relevância para as investigações) desta vez incluindo o telefone do Terêncio como "alvo". A partir daí, verifica-se se Terêncio tem mesmo relação com Caio e Tício. Por evidente, investigações outras também podem ser feitas, de acordo com o contexto do que se está investigando, como por exemplo, ouvir testemunhas, requerer a quebra de sigilo bancário etc. Isso depende de uma contextualização: o que se conversa? o que está em torno disso?
Opção B (Operação livrar Terêncio de uma escuta): Pode-se optar por livrar Terêncio de uma investigação telefônica divulgando tudo na imprensa. Como é óbvio que agora Terêncio não pode mais ser surpreendido em conversas telefônicas, pode ficar na defensiva. Sofre a chuva de bordoadas, mas seria pior se fosse interceptado. 
Opção C (A opção de uma República ideal e imaginada): interlocutores sábios, sabendo da escuta telefônica, invocam a presença de terceiro não interceptado. Como não dá para saber de imediato se isso vai ou não à frente, se isso é armadilha ou evidência de participação de Terêncio, deve-se presumir sua não vinculação. Do ponto de vista constitucional, o correto seria prosseguir com as investigações (presumo, repito, que as interceptações foram feitas sob sólido amparo judicial) contra os alvos originais, antes mesmo de se cogitar investigar o terceiro citado. Como a interceptação telefônica também é um suporte para outros meios de prova, pode-se, na sequência de um inquérito ou processo, descobrir-se a participação ou não do terceiro na prática do crime e a partir daí iniciar-se uma investigação autônoma, mas não basta que a mera menção a terceiro na conversa sirva de gatilho para direcionar a atividade policial contra um sujeito mencionado. Do contrário, teríamos a supressão da interceptação telefônica como meio excepcional de investigação e passaria a ser a primeira forma de submeter os cidadãos à vigilância estatal. O correto, então, seria esperar a conclusão das investigações iniciadas contra Tício e Caio, recolher as provas e, a partir delas verificar que o contexto permite iniciar uma investigação contra Terêncio, avaliando se é necessário interceptá-lo, se é necessário ouvi-lo, se são necessárias testemunhas etc. 
Uma escuta com menção a terceiro, portanto, só pode ser considerada a pontinha de um imenso iceberg de possibilidades, que podem inclusive não dar em nada. Nunca podem ser consideradas como provas de participação de alguém num delito.
Fabrício de Oliveira Campos, advogado do Oliveira Campos Advogados


Isso não pode ocorrer nunca. Ninguém tem esse direito, e não se pode fazer isso. Acabar com uma vida, uma honra, fazer a destruição social sem que nada tenha sido comprovado.  É um absurdo como se destrói toda uma vida e imagem públicas, construídas com tanto afinco durante tantos anos e trabalho, em minutos, apenas com frases aleatórias tiradas de uma conversa. Ninguém sabe o contexto completo, e já se vai destruindo tudo, com uma frase ou outra. 
Ainda que se prove a inocência, já há uma punição social enorme e desleal. Primeiro condenam, e isso inverte perigosamente a ordem das coisas. Primeiro seria preciso haver um julgamento justo, que pode ou não levar à condenação. E a condenação não pode vir assim, direta, instantânea, irreversível, da sociedade e das pessoas. É um perigo que precisa de alerta máximo. 
Não se trata aqui de defender ou não o senador Demóstenes Torres, por quem tenho o maior respeito. Trata-se, sim, da defesa do Estado democrático. 
Não é também a questão do foro privilegiado que deve ser discutida agora, mas o de respeito às leis e regras. Se o foro existe, é porque justamente há motivos, e ele deve ser respeitado. Há de se pedir autorização judicial para tanto, e nos foros competentes. 
Isso tem acontecido muito com os advogados que constantemente têm tido gravadas suas conversas sigilosas com os clientes divulgadas de forma criminosa. O sigilo das comunicações entre advogados e clientes é uma conquista, uma garantia dos direitos de cada pessoa; deve ser respeitado acima de tudo, para que não tenhamos logo todas as consequências desse grande risco à democracia, às leis e à liberdade.
Repito: as regras, se existem, devem ser cumpridas. No momento que se sabe que uma das partes tem o foro privilegiado, não há desculpa. E, além disso, as notícias vazadas em conta-gotas para a imprensa nunca o são de forma desinteressada. 
Trata-se da defesa do Estado de Direito. O Demóstenes de hoje amanhã pode ser qualquer cidadão, qualquer pessoa, qualquer um de nós.
Roberto Podval, presidente do Movimento em Defesa da Advocacia (MDA)


Prova ilícita, por mais eloquente seja, é ilícita, e, nos termos da Constituição, não pode estar nos autos. Infelizmente, tem sido comum a investigação de pessoas com prerrogativa de serem processadas apenas perante tribunais, sem que o respectivo tribunal competente autorize a investigação. Ao final dela, a polícia tenta legitimar a ilegalidade praticada, encaminhando cópias dos autos às autoridades que têm competência originária para processar aquele investigado. É uma forma de burlar a regra da competência originária, e se os tribunais não declararem a ilegalidade disso, a norma constitucional deixará de existir, sem que tenha sido alterada a Constituição, o que é inadmissível num Estado Democrático de Direito. E é nenhuma a validade de conversa interceptada entre duas pessoas, que mencionam uma terceira e a ela atribuem a prática de algum crime. Se João e Antônio conversam ao telefone, e um deles afirma ao outro que entregou dinheiro de origem ilícita a José, é claro que o teor daquela conversa interceptada não poderá ser usado como prova contra este, porque não passa de conversa de comadre.
Eduardo Carnelós, do Carnelós e Garcia Advogados


A conversa pode ser considerada um indício de ilicitude, jamais como prova. O agente investigador, mesmo a Polícia, ou o MP, ao ter esse tipo de notícia deve iniciar a apuração, e o grampo é a última instância. Quando se faz uma investigação, se investigam fatos, e não pessoas. A diferença parece singela, mas é importantíssima. Investiga-se o crime, e vai atrás da pessoa que o cometeu. Jamais se investiga a pessoa para saber se ela está cometendo algum ilícito.
Acho lamentável, e prejudicial ao regime democrático, grampos realizados a partir de mero indício. A lei parece muito clara quando diz que o grampo deve ser usado como sustentação de investigação, quando já existem provas que sustentem a realização de atividade ilícitas.
Paulo Iasz de Morais, advogado e conselheiro da OAB-SP


Do ponto de vista penal, não nos parece razoável que a mera citação de terceiro por indivíduo alvo de investigação possa, por si só, prestar-se como prova apta a viabilizar a propositura de ação penal. Frustrar-se-ia o princípio da presunção de inocência transformar em meios de convicção, ou indício, o comentário de um sobre outrem que nem mesmo era alvo de investigação ou estava presente no contexto fático daquele procedimento. 
Ademais, uma suposta prova obtida por intermédio de interceptação telefônica deferida judicialmente para outro fim — o chamado encontro fortuito —, não tem o condão de ser utilizada em procedimento diverso, muito menos quando este último envolveria pessoa com foro especial por prerrogativa de função, ante a necessidade prévia de ordem judicial emanada por magistrado competente para determinar tal medida excepcional. 
Não nos parece ser o caso de independent source ou inevitable discovery, hipóteses que poderiam excepcionar, em tese, a incidência do princípio da ilicitude das provas por derivação.

Gustavo Alves Pinto Teixeira, do Silvio & Gustavo Teixeira Advogados Associados
Pedro Canário é repórter da revista Consultor Jurídico.
Revista Consultor Jurídico

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