CONSTITUIÇÃO E PODER
Temos assistido em nosso país a um fenômeno, cada vez mais frequente, de subtração do Congresso das decisões políticas fundamentais da comunidade nacional.
Recentemente, o Conselho Federal de Medicina, sob a justificativa de regular o comportamento ético dos médicos, baixou normas impedindo a reprodução assistida a mulheres de 50 anos. Da mesma forma, ainda regulando a reprodução assistida, o mesmo órgão proibiu que homens com mais de 50 anos tivessem aproveitados os seus espermatozoides. Como se vê, a medida repercute na vida de mulheres e homens de todo o país.
A partir desta quinta-feira (16/5), segundo informa o próprio site do Conselho Nacional de Justiça, “cartórios de todo o país não poderão recusar a celebração de casamentos civis de casais do mesmo sexo ou deixar de converter em casamento união estável homoafetiva”, tudo consoante o que foi estabelecido pela Resolução 175, de 14 de maio de 2013, aprovada na 169 ª Sessão Plenária daquele Conselho.
O que têm em comum uma e outra decisão, ambas tomadas por órgãos técnicos, é que sua eficácia subjetiva estende-se muito além dos órgãos e indivíduos que estariam normalmente sob o poder dos respectivos órgãos. De fato, tanto a decisão do CFM como a decisão do CNJ atingem, respectivamente, muito mais do que apenas médicos e juízes, ou oficiais de cartórios, estendendo-se a toda cidadania.
Mas não param por aí os exemplos. Segundo informou a nossa imprensa, com sua Resolução 432, o Conselho Nacional de Trânsito, na prática, instituiu no Brasil “a tolerância zero de álcool no trânsito em todo o País”.
Como se sabe, em todos esses casos, as decisões desses órgãos técnicos acabam tendo maior eficácia e força do que a própria lei.
Independentemente da correção técnica ou jurídica dessas decisões, o que aqui não é objeto de questionamento, o fato é que, na maior parte dos países, em todos esses casos, por dizer respeito aos mais importantes direitos e obrigações das pessoas, essas decisões só seriam veiculadas por atos editados pelo Congresso, onde têm assento os representantes do povo. No Brasil, diante de uma certa aprovação generalizada, nenhum dos órgãos técnicos enxergaram qualquer restrição de índole constitucional na decisão que tomaram.
Não se cuida, neste artigo, de realizar qualquer estudo quanto à legitimidade constitucional dessas decisões. Aliás, considerado o estado atual das coisas, não creio, sinceramente, que qualquer das decisões venha sofrer alguma espécie de censura por parte dos tribunais. Cumpre aqui, de fato, apenas registrar que estamos diante de uma profunda alteração dos termos e da equação em que se organiza a nossa democracia.
Desde que o Supremo Tribunal Federal passou a agir, abertamente, como legislador positivo, o que temos presenciado é uma generalizada aceitação por parte da cidadania de decisões que, não obstante digam respeito a direitos e obrigações do indivíduos, prescindiram de lei em sentido formal para a sua implementação.
Não vale, obviamente, como insistem alguns, esgrimir com a ideia de que esses órgãos só estão ocupando espaços de inércia do Congresso. Como se sabe, o legislador não atua como o magistrado. De fato, o juiz não pode deixar de decidir diante de uma demanda, que, de toda sorte, é sempre formalizada. No caso do legislador, não decidir diante de uma demanda — na maior parte das vezes, informal — é também uma legítima forma de decidir.
Normalmente, o “tempo político” é que iria impor um comportamento diverso ao legislador, forçando-o a tomar outras decisões. No caso brasileiro, surpreendentemente, pode-se dizer que, certo ou errado, quando o legislador não atua, passamos a vivenciar por assim dizer uma certa “impaciência institucional”, já que os diversos grupos de interesses têm alcançado, por outros canais, subtrair do agente político o poder de decisão, não lhe permitindo aquele “tempo de maturação política”.
Em resumo, o dogma da democracia representativa, inserido no artigo 5º, inciso II, da Constituição brasileira, que afirma “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”, no Brasil, parece que já não carrega a ideia secularmente divulgada no Ocidente de que apenas os representantes do povo é que devem ter o poder de criar direitos e, sobretudo, impor obrigações.
A aceitação popular de decisões políticas tomadas por esses órgãos técnicos que, não obstante, atingem a vida de toda a comunidade nacional, têm um claro sentido utilitário, ou seja, quando essas decisões são tomadas, todos respondemos — “Ora, se me faz bem, pouco me importa a origem, competência ou a forma mediante a qual essa decisão foi tomada”. Assim, todos ficamos satisfeitos.
Mas, sobretudo para um professor de Direito Constitucional, permanece uma pergunta absolutamente incômoda: para que servem os direitos políticos de participação, num quadro em que permanentemente e de forma cada vez mais profunda consentimos com a transferência do poder de decisão sobre os nossos direitos a outros órgãos e agentes que não aqueles que são escolhidos pelo voto popular?
De fato, vivemos tempos bastante interessantes. Quanto mais o voto popular é exaltado por todos — imprensa, tribunais, intelectualidade e grupos de interesses —, mais vão lhe subtraindo a substância. Não se cuida de um juízo de valor, mas de mera constatação de fato. Já não ouso criticar, apenas testemunho. Aliás, em tempos do “politicamente correto”, a simples constatação de um fato pode revelar-se extremamente perigosa.
Então, antes que todos esqueçamos, concluirei este artigo permitindo-me, como estudioso do Direito Constitucional, a lembrança — hoje já bem diluída entre nós — da importância e natureza dos direitos políticos dos cidadãos e dos seus representantes — o que, no atual contexto, tenho que admitir, pode mesmo parecer impertinente.
Numa primeira aproximação, pode-se dizer que “políticos são os direitos reconhecidos aos cidadãos de participar da vida política e na formação das decisões públicas”[1]. Essa concepção genérica dos direitos fundamentais condensa-se no direito ao sufrágio, qualificado nas modernas democracias constitucionais como universal, livre, igual, direto e periódico.
É, ainda, de se dizer que se inserem de forma essencial no conteúdo do direito fundamental ao sufrágio a liberdade e a igualdade de chances entre os partidos e os candidatos que se põem em disputa[2].
É evidente, pois, a natureza jusfundamental dos direitos políticos. Não apenas porque topograficamente eles estejam localizados na nossa Constituição no Título dedicado aos direitos fundamentais (e como capítulo específico), mas também, e, sobretudo, porque a ninguém ocorreria negar a dignidade constitucionais das condutas que os direitos políticos asseguram. Contudo, não obstante os vínculos essenciais havidos entre o Direito Constitucional e o Direito Eleitoral, âmbito do direito ordinário onde encontram concretização os direitos políticos, também aqui como na Alemanha, cabe o lamento de Klaus Stern, ao anotar que a matéria do Direito Eleitoral tem sido negligenciada pelos constitucionalistas, os quais, quando não a relegam simplesmente ao nível do direito ordinário, consideram-na demasiadamente técnica, e, de regra, deixam o seu comentário especializado aos estudiosos do Direito Eleitoral[3].
Temos assistido também no Brasil ao nascimento de fenômeno jurisprudencial (mais também acadêmico) de singular conformação: de um lado, um Direito Constitucional alheio ao Direito Eleitoral; de outro, um Direito Eleitoral com muito pouco Direito Constitucional. Obviamente, também isso contribui para o descaso com os direitos políticos que depois iremos presenciar na sociedade como um todo.
Assim, principalmente numa realidade como a brasileira, de cuja história os cientistas políticos afirmam resultar uma quase estrutural desconsideração à ativa e consciente participação política dos cidadãos nos destinos da comunidade nacional[4], a primeira e a principal tarefa que se impõe ao interpretar o capítulo da Constituição dedicado aos direitos políticos talvez seja mesmo a de, prestando homenagem ao óbvio, afirmar que os direitos políticos são antes de tudo direitos fundamentais.
Não obstante o truísmo que encerra essa conclusão, dela resultam consequências fundamentais para exata compreensão dos direitos políticos assegurados na Constituição. Com efeito, ao se (re)afirmar a natureza de direitos fundamentais dos direitos políticos, disso resultará uma série de consequências quanto à sua qualidade e significado jurídicos: i) quanto à sua dimensão na ordem jurídica (não mais apenas subjetiva, mas também objetiva); ii) também quanto à intensidade (proporcionalidade) e à forma das restrições que se lhe possam impor; iii) quanto aos seus titulares e destinatários (eficácia horizontal); e iv) quanto ao Direito Eleitoral e aos demais ramos do Direito Ordinário (graças à constitucionalização do Direito Ordinário).
Em conclusão, ao contrário do que presenciamos, também em relação aos direitos políticos deveriam opor-se todos os limites dos limites quando se cuida de implementar-lhes restrições. Direitos políticos não deveriam ser restringidos sem proporcionalidade nem por órgãos sem competência constitucional. Nada obstante, cotidianamente assistimos imporem-se, com aplauso geral, as mais intensas restrições aos direitos políticos, sobretudo aos candidatos e aos agentes eleitos. Antes, intensificavam-se as restrições no espaço e no momento da escolha dos representantes do povo. Agora, como vimos acima, restringem-lhes e lhes subtraem também o próprio poder de decidir. Tudo isso indica que a democracia brasileira precisa urgentemente fazer um encontro de contas.
[1] Bin, Roberto et Pitruzzella, Giovanni. Diritto Costituzionale. Turim: G. Giappichelli Editore, 6. ed., 2005, p. 531.
[2] Mendes, Gilmar F. et al. Curso de Direito Constitucional. 4ª ed., São Paulo: Saraiva, 2009, p. 779
[3] Cfe. Stern, Klaus. Das Staatsrecht der Bundesrepublik Deutschland (Band I), 1984, p.290.
[4] Leal, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo no Brasil. 3 ed., RJ: Nova Fronteira, 1997, Sobre as dificuldades e vicissitudes da participação política em nosso país, ver Carvalho, Jose Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. 9. ed, RJ: Civilização Brasileira, 2007, 236 p.
Néviton Guedes é desembargador federal do TRF da 1ª Região e doutor em Direito pela Universidade de Coimbra.
Revista Consultor Jurídico
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