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O verdadeiro desafio não é inserir uma idéia nova na mente militar, mas sim expelir a idéia antiga" (Lidell Hart)
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segunda-feira, 17 de março de 2014

Comissão de investigação arquivou denúncias contra amigos do regime, mas devassou contas de opositores



  • Denúncias sobre Sarney foram arquivadas, assim como suspeita contra ACM foi engavetada. Brizola teve sigilos quebrados


 José Sarney, Antonio Carlos Magalhães e Leonel Brizola Foto: O Globo / Arquivo 
José Sarney, Antonio Carlos Magalhães e Leonel Brizola  O Globo / Arquivo
BRASÍLIA — O sistema de repressão da ditadura protegeu aliados e  perseguiu oposicionistas, com processos sumários que atropelavam  qualquer garantia jurídica, ao sabor das conveniências políticas e da  necessidade de legitimar o discurso moralizador do regime. Documentos  obtidos pelo GLOBO por meio da Lei de Acesso à Informação mostram que a  Comissão Geral de Investigações (CGI) — órgão criado em 1968 com o  objetivo de investigar políticos e servidores suspeitos de corrupção —  arquivou sem apurar denúncias contra os governos de Antonio Carlos  Magalhães, na Bahia, e do hoje senador José Sarney (PMDB-AP), no  Maranhão.
Na direção contrária, a mesma CGI devassou a vida do  governador Leonel Brizola em busca de indícios de enriquecimento  ilícito, repetindo o processo pelo qual tentava provar o envolvimento do  presidente João Goulart em irregularidades. A engrenagem montada pelos  militares para reprimir atos de corrupção emperrava quando esbarrava em  políticos amigos.


A  face mais conhecida da CGI foi o seu uso político para investigar João  Goulart e Leonel Brizola, exilados no Uruguai desde 1964. Até maio de  2012, quando entrou em vigor a Lei de Acesso à Informação, os arquivos  da comissão eram mantidos secretos, devido à necessidade de autorização  de cada indivíduo citado nos processos para que os documentos fossem  pesquisados.
Com o fim da exigência, historiadores têm se  debruçado sobre os detalhes dos inquéritos contra políticos de oposição à  ditadura, como os ex-presidentes Jango e Juscelino Kubitschek e os  então deputados Ulysses Guimarães (MDB-SP) e Tancredo Neves (MDB-MG).
Mas  a comissão também recebeu uma série de denúncias contra políticos  aliados dos militares, conforme mostram os documentos pesquisados pelo  GLOBO. Segundo o historiador Carlos Fico (UFRJ), a ingerência política  nas investigações ocorria por parte do Executivo. O Sistema CGI era  controlado a partir de sua sede, no Rio, mas contava com subcomissões em  cada estado. O dia a dia ficava sob responsabilidade do  vice-presidente, mas a presidência da comissão cabia ao ministro da  Justiça.
— Quando os militares descobriam casos de corrupção de  gente que apoiava o governo, o ministro da Justiça ou algum de seus  assessores costumava intervir para que o processo cessasse. Muitas  acusações feitas contra prefeitos do interior eram interrompidas porque  eles apoiavam o regime — explica Carlos Fico.
O historiador lembra  que, no começo da abertura política, em 1979, houve uma nova  intervenção do Ministério da Justiça, mas desta vez a favor de um  político de oposição. Uma denúncia contra o então ex-prefeito de  Campinas Orestes Quércia (MDB) foi arquivada por ordem do ministro  Armando Falcão, para que não parecesse um gesto contra a abertura.
A  comissão montava processos de investigação sumária, sempre secretos,  que poderiam resultar em decretos de confisco de bens supostamente  comprados com dinheiro de origem ilícita. No entanto, poucos processos  resultavam em confisco, já que as investigações muitas vezes continham  erros grosseiros ou eram alvo de contestações judiciais devido ao  atropelo legal.
Atuando como um tribunal de exceção, ao investigar  e julgar casos que ocorreram antes de sua criação, a CGI baseava-se na  legislação vigente para passar por cima de todos os direitos  individuais. Sem a determinação de um juiz, quebrava-se o sigilo de  qualquer pessoa por meio de um simples ofício ao Banco Central.  Mensalmente, a Receita Federal repassava aos investigadores centenas de  declarações de renda solicitadas. Ao contrário do que ocorre hoje, o  ônus da prova cabia ao alvo da investigação e não ao acusador.
De  acordo com Fico, a CGI foi criada por um grupo de militares que  acreditava em outra forma de repressão, de dimensão pedagógica.
—  Eles tinham a crença que os problemas nacionais seriam resolvidos com a  aplicação de medidas corretivas. Nesse pacote, estava a censura aos  costumes, por exemplo, e a propaganda de campanhas como a do Sujismundo,  a do “povo desenvolvido é povo limpo”.
Seguindo essa lógica, os  militares propunham o que chamavam de “ações catalíticas”. Em  determinadas apurações, mesmo que não se chegasse a nenhuma prova,  acreditava-se que a mera convocação de um servidor suspeito para depor  poderia ter o efeito positivo de prevenir eventuais atos de corrupção,  ou servir de exemplo dentro das repartições.
A exemplo da  repressão policial, a paranoia também predominava nos inquéritos da CGI.  A maioria das denúncias era remetida por pessoas ou políticos alinhados  com a ditadura. Os denunciantes muitas vezes misturavam suspeitas de  corrupção a acusações de natureza ideológica e até a picuinhas  políticas. Historiadores dizem que os casos apurados pela CGI não  merecem ser considerados verdades estabelecidas, seja pelo desrespeito  jurídico, seja pelo clima de paranoia reinante.
Denúncias sobre Sarney arquivadas
Em  9 de abril de 1969, pouco mais de três anos após José Sarney assumir o  governo do Maranhão, o capitão de Infantaria Márcio Matos Viana Pereira  entregou a seu comandante direto, em São Luís, um dossiê de 17 páginas,  com 25 documentos anexados. Sob o título “Corrupção na área do estado”, o  texto, escrito em primeira pessoa, elencava uma série de denúncias  contra a administração Sarney. O relatório foi enviado ao braço  maranhense da CGI, submetido à sede no Rio e arquivado meses depois, sem  provocar investigações.
A comissão ignorou o documento, que,  entre outras críticas, acusava Sarney e asseclas de superfaturar uma  obra, desviar recursos de outra e pagar mais por um terreno da  Arquidiocese, com o suposto objetivo de agradar ao clero.
O dossiê  do capitão foi anexado a outro caso que a CGI analisava, sobre uma  dispensa de licitação autorizada por Sarney para construir a estrada  entre Santa Luzia e Açailândia. Nada foi investigado, e as acusações do  capitão foram engavetadas. Ao arquivar o inquérito sobre a falta de  licitação, o relator da CGI reconhece que Sarney errou e pontua que a  dispensa ocorreu em “circunstâncias controvertidas”, mas conclui que não  era atribuição da comissão reprimi-lo.
Procurado, Sarney afirmou  que Pereira o perseguia, acusando-o de “estar cercado de comunistas”.  “As denúncias demonstram que o senador teve que enfrentar um duro  combate desse grupo militar”, diz nota enviada ao GLOBO.
Suspeita sobre ACM engavetada
Uma  reportagem publicada pelo GLOBO em 18 de março de 1975, meses após o  fim da primeira passagem de Antonio Carlos Magalhães pelo Palácio de  Ondina, fez a sede da CGI determinar à subcomissão baiana uma apuração  preliminar. Em um ofício enviado a Salvador, os militares lotados no Rio  queriam detalhes sobre possíveis irregularidades na construção da  rodovia BR-415, que ligaria Ilhéus a Vitória da Conquista. A obra,  orçada na época em 1 bilhão de cruzeiros, teria sido contratada sem  licitação. Três meses depois, o caso foi arquivado.
A pedido da  sede no Rio, a subcomissão recebeu da Procuradoria Geral do Estado (PGE)  — órgão do governo baiano incumbido de defender o estado — um parecer  confirmando a ausência de justificativa para não ter licitação. Naquele  momento, o governador já era Roberto Santos, escolhido pelo presidente  Ernesto Geisel a contragosto de Antonio Carlos.
No documento, a  PGE apresentava as justificativas enviadas pelo Departamento de Estradas  de Rodagem da Bahia para não ter havido a devida concorrência pública.  Segundo o ofício, além da necessidade de aproveitar a estiagem para  começar imediatamente a obra, havia outro suposto motivo: empresas  baianas estavam “carentes de novos serviços e capacitadas de os executar  (sic) em curto espaço”.
Procurado para comentar o caso em nome da  família, o prefeito de Salvador, Antonio Carlos Magalhães Neto, não  respondeu ao GLOBO.
Brizola teve sigilos quebrados
A  investigação contra Leonel Brizola durou 438 dias, durante os quais a  CGI devassou a vida do ex-governador, exilado havia seis anos. A  canetadas, sem passar por nenhuma instância jurídica, o inquérito contra  Brizola quebrou seus sigilos bancário e fiscal, e percorreu cartórios  em busca de possíveis bens não declarados. A exemplo do processo contra  Jango, o tribunal de exceção mostrou-se feroz.
Instaurada em 18 de  fevereiro de 1970, a investigação buscava indícios de enriquecimento  ilícito de Brizola. O primeiro passo foi escrutinar as declarações de  bens de 1959, 1960, 1962, 1963, 1964, 1965, 1966, 1967 e 1968. A  ausência do documento de 1961 atrasou o inquérito, e fez o presidente da  subcomissão gaúcha enviar ofício à Receita Federal.
A quebra do  sigilo bancário foi rápida. Em 12 de outubro de 1970, semanas após  receber o pedido, um funcionário do Banco Central em Porto Alegre enviou  à comissão — com os tradicionais “protestos de elevada estima e  consideração” — cópia dos extratos de todas as contas do ex-governador.
Em  outra frente de apuração, os cartórios do Rio Grande do Sul receberam a  ordem de informar a existência de imóveis. A CGI dedicou atenção  especial à compra da Fazenda Pangaré, em Viamão (RS), em 1958, pois  suspeitou-se de irregularidades. Nada foi provado, e em 22 de abril de  1971 o caso era encerrado. Ao fim, o relator concluiu que o patrimônio  de Brizola era compatível com seus rendimentos.

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