CONSTITUIÇÃO E PODER
O momento vivenciado pela democracia brasileira exige de todos uma séria reflexão sobre a nossa capacidade de sermos tolerantes com as ideias e as propostas com as quais não concordamos. De fato, paira na atmosfera pós-eleitoral uma brisa de intolerância que, precisamente por sua irracionalidade e descompromisso com os valores democráticos, precisa ser tomada a sério por todos os que têm responsabilidade com o regime de liberdades instaurado pela Constituição de 1988.
Como sempre, o discurso de intolerância com a democracia vem acompanhado de uma proposta de moralização da política que se legitima com a profecia de um mundo purificado da presença de políticos mediante uma mal explicada santificação do espaço público. Por isso, volto mais uma vez ao tema da democracia e da tolerância.
Não faz muito tempo, escrevi aqui mesmo neste espaço artigo intituladoDiscurso de moralização da política faz mal à jovem democracia brasileira. Naquela coluna tive ocasião de denunciar as graves consequências para a jovem democracia brasileira resultantes de uma inaceitável retórica demoralização da política, que, em outras palavras, nada mais é do que o discurso de quem, situando-se além do bem e do mal, exige da política um comportamento que, precisamente por sua condição humana, jamais se alcançou em lugar algum.
Infelizmente, gostemos ou não, os seres humanos sempre deixam impregnado tudo o que tocam com as impurezas do que suas mãos levam e trazem. Nietzsche, no seu incomparável texto “Humano, demasiado humano”, como ele mesmo o designou, “um livro para espírito livres”, advertia-nos contra a ilusão de quem pretende pureza e inocência ao cuidar de coisas humanas: “Se vivemos muito próximo de um ser humano, então nos sucederá a mesma coisa quando tocamos várias vezes uma bela gravura com os dedos nus: um dia teremos nas mãos apenas um papel sujo e ruim, nada mais”.
Pessoas inteligentes, contudo, analisam a política a partir de uma perspectiva de abstração impossível de encontrar em qualquer atividade humana. Levando ao absurdo essa abstração, ora enxergam na política apenas impureza e velhacaria, ora prescrevem-lhe candura e santidade. A moralização da política tem o pior de ambos os defeitos de julgamento: por um lado, é injusta com a política ao descrevê-la a partir de uma perspectiva exclusivamente pecaminosa; de outro lado, é ingênua ao prescrever-lhe uma pureza inexistente mesmo no mais recluso dos mosteiros beneditinos.
Max Weber, um obcecado por fatos, permitiu-se uma única concessão aos utopistas, que exigem da política sonhos impossíveis de concretizar: ao terminar o seu belo discurso sobre a vocação para a política, lembrava que o homem, é certo, “muitas vezes não teria alcançado o possível se não tivesse tentado o impossível”, mas de qualquer jeito desde que orientando-se por uma correta perspectiva política. Bem observada a lição do grande pensador, portanto, temos que concluir que, com alguma ironia, ele nos ensina, por um lado, que a política não é o lugar para quem não tem uma perspectiva adequada da realidade; e, por outro, mesmo para aqueles que revelem uma força de vontade extraordinária - e a política é uma tábua dura que precisa ser martelada com persistência e perspectiva -, o sonho com o impossível, no máximo, acabará conduzindo a conhecidos caminhos e fronteiras do que é humano, essencialmente humano.
A retórica da moralização da política, muito embora tomada pelas melhores intenções, nega por completo o que é inextricavelmente humano em toda a atividade de que participa o homem. Se algum credo ou alguma seita (política ou não) pretende combater a sério o pecado, é necessário não acreditar em bruxas ou demônios. O político é um ser humano como outro qualquer, pleno de defeitos e virtudes. A Inquisição católica nunca queimou bruxas ou demônios, nunca destruiu ou confrontou o mal essencial, apenas sacrificou frágeis, pobres e falíveis seres humanos. Como disse Riobaldo: “O diabo não há! (...) Existe é homem humano. Travessia.”
Além de uma infantilização da discussão política, que deveria ser séria e baseada em fatos, como adverti no artigo referido, corríamos o sério risco, em pleno período eleitoral, de que a moralização da política levasse a um nefasto rebaixamento da disputa eleitoral. Infelizmente, o vaticínio não poderia ter sido mais exato. Ao final do processo eleitoral, como previsto, ao invés da discussão de ideias, planos de governos e projetos que atendessem os graves problemas que atingem nossa sociedade nos três níveis de governo de nossa Federação, o que se observou foram candidatos de todas as cores políticas vendo-se incentivados e mesmo obrigados a responder a um anseio difuso — em tudo lamentável — de conquistar a vitória com a moralização do debate político.
Nem se diga, hipocritamente, que o comportamento partiu desse ou daquele candidato, dessa ou daquela agremiação partidária. A esbórnia, a orgia, a pândega do discurso moralizador foi generalizada. Alguns, é certo, mais afetados, criticaram nos oponentes o comportamento destrutivo, ou, como preferiram dizer, a ação de descontração, mas o faziam apenas para ter o direito de desconstruir sozinhos. A imprensa também tem a sua responsabilidade, pois se vale permanentemente do espaço público apenas para divulgar e propagar as mazelas da política, sendo incapaz de reconhecer os seus méritos. Quem pretende destruir a política (humanamente falha) numa democracia tem que ter a responsabilidade de dizer o que poderá ocupar o seu lugar.
O mais incrível é ver que, mesmo ultrapassado o período eleitoral, sobrevive ainda entre nós o desejo de prorrogar os efeitos absolutamente deletérios do chamado discurso moralizador. Em qualquer democracia verdadeira, encerrada a disputa eleitoral, a nação precisa se recompor para poder enfrentar os graves problemas que, de regra, os povos têm que confrontar. Para tanto, a democracia não é e não pode se converter numa disputa eternizada entre o essencialmente bom (aquele que pensa como eu) e o essencialmente mau (os que pensam diferente). No Brasil, como em qualquer outro lugar, os inimigos da democracia são, em primeiro lugar, todos aqueles que tratam o seu oponente como mal a ser excluído - não importa por qual meio ou instrumento - do debate e da disputa política. A única intolerância da democracia, como já foi dito, deve ser com os intolerantes.
Niklas Luhmann conceituava a democracia como um sistema que propicia uma “cisão por cima”, isto é, um sistema que estrutura e possibilita a manifestação de várias pontas ou vetores de poder; um lugar onde a oposição pode ser oposição e o governo pode ser governo. Portanto, se é certo que não há democracia onde não haja espaço para a oposição, é igualmente certo que a democracia não poderá sobreviver onde as forças de oposição não permitem que o governo possa governar.
É fácil prever que qualquer sistema de governo, democrático ou não, em que o exercício do governo seja inviabilizado, não tardará a legitimar as vozes daqueles que pregam a sua própria falência como sistema de distribuição e organização do poder.
Muitos acreditam que a democracia permite aos seus integrantes qualquer espécie de comportamento. Nada mais falso. A democracia, precisamente por ser o regime de liberdade por excelência, é o regime que mais exige responsabilidade de seus cidadãos. Ela não é uma senhora aberta ou sujeita ao comportamento inescrupuloso de indivíduos irresponsáveis. As ditaduras e totalitarismos é que se afeiçoam a indivíduos descomprometidos com as conseqüências de seus atos. São os regimes totalitários e ditatoriais que subtraem do seus cidadãos qualquer responsabilidade em relação aos atos de poder. Para as autocracias, quanto mais indivíduos irresponsáveis e passivos, tanto melhor.
Ao contrário, na democracia, a liberdade conferida ao cidadão pressupõe uma ação responsável e comprometida com as suas consequências. Mais do que isso, a democracia exige do seu cidadão típico, além de participação e responsabilidade, uma elevada quota de tolerância, pois, é nesse regime de liberdades que o cidadão tem que aceitar que nem sempre suas ideias prevalecerão, nem sempre o seu partido sairá vitorioso e muitas vezes suas ideias e propostas serão derrotadas.
É nesse específico sentido que, na democracia, não se pode aceitar o discurso de quem moraliza a política. Pois, a retórica moralizadora pretende qualificar o opositor como inimigo e, pior do que isso, tratá-lo como “mal essencial”. O discurso moralizador coloca do seu lado o bem absolutamente puro e imaculado; e, o que é pior, situa do outro lado - do lado do opositor -, o mal absolutamente impuro e pecaminoso. A ingenuidade com que o discurso moralizador julga o oponente só não é maior do que a forma benevolente com que analisa o seu próprio comportamento.
É por isso que, por paradoxal que pareça, a democracia, como o sistema que consente com uma verdadeira alternativa e disputa pelo poder, exige que os atores políticos atuem, no dizer de Luhmann, com uma “distinta amoralidade” em relação aos grupos opostos. Nada mais inaceitável para a democracia que a tentativa de demonizar e “moralizar” negativamente o comportamento do outro. Nas palavras do grande pensador alemão “Em vez disso, a democracia precisa de um estilo de distinta amoralidade, nomeadamente, a renúncia a moralização do oponente ou da oposição política (Moralisierung der politischen Gegnerschaft)”[1].
Em outras palavras, nada mais pernicioso à democracia do que o comportamento de quem pretende fazer política moralizando a si mesmo (como “o bem”) e o oponente (como “o mal”). Nessas condições, o apelo à moral desqualifica não apenas um determinado comportamento ou umadeterminada conduta do oponente, mas desqualifica a sua própria existência política e, portanto, a sua habilitação para o exercício legítimo do poder. Não sabendo dizer de forma mais correta ou mais elegante, valho-me uma vez mais desse grande gênio da sociologia para concluir o presente artigo:
“O esquema governo/oposição não deveria ser confundido, nem por parte do governo nem por parte da oposição, com um esquema moral no sentido de que apenas nós somos bons e dignos de consideração, e o outro lado, ao contrário, é mau e deve ser condenado e repudiado”[2].
[1] Niklas Luhmann. Soziologische Aufklärung 4 – Beiträge zur funktionalen Differenzierung der Gesellschaft. 4ª Auflage, Wiesbaden: VS Verlag, 2009 p. 136/7. Na mesma ideia de separação da moral de outros sistemas sociais (especialmente da política e do direito) N. Luhmann insistirá no seu delicioso livro sobre a moral, Die Moral der Gesellschaft. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2008, especialmente nas p. 163 e seguintes.
Néviton Guedes é desembargador federal do TRF da 1ª Região e doutor em Direito pela Universidade de Coimbra.
Revista Consultor Jurídico
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