Uma visita à Fundação CASA, que interna menores de idade em conflito com a lei em SP
CAMILA MORAES São Paulo
Uma fila de adolescentes de cabeça baixa e mãos para trás serpenteia pelo pátio de uma unidade de internação para menores infratores. Um a um, meninos de 16 a 19 anos, em sua maioria, repetem “licença, senhora” com voz de quem antecipa uma bronca. E passam ao refeitório. Pelas regras locais de boa conduta, não é permitido olhar fixo nos olhos de funcionários ou visitantes. Mas Nelson busca de canto a mirada da jornalista: “Vou esperar o livro da senhora”, ele cobra, resgatando uma promessa feita minutos antes.
O dia é frio e cinza, assim como as instalações desta unidade daFundação CASA, dedicada à ressocialização de jovens reincidentes no crime. Com atividades diárias das 6h às 22h, os internos têm como principal compromisso lá dentro o ensino formal. Mas à disposição deles há também cursos e atividades esportivas, culturais e profissionalizantes, além de psicólogos e assistentes sociais que os avaliam e prestam suporte.
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Este é um lugar, instalado na zona norte de São Paulo, de difícil acesso para quem trabalha lá ou então pretende fazer uma visita. Só enxerga os muros da Fundação CASA – altos, farpados e mimetizados a uma feia paisagem – quem quer. E precisa querer muito.
Esses adolescentes, objeto de uma importante discussão sobre aredução da maioridade penal no Brasil, estão proibidos de olhar na cara das pessoas, mas encará-los tampouco é fácil. Quase todos furtaram, roubaram ou se envolveram com o tráfico. Menos de 1% cometeu homicídios qualificados. Têm de aprender a respeitar a autoridade de agentes de segurança, professores, psicólogos e agentes sociais. Terminar a escola – à qual muitos não tiveram acesso em liberdade –, raspar seus cabelos e vestir o mesmo conjunto azul de calça e moletom. Ainda que os esforços institucionais sejam legítimos e variados para dar a esses jovens a rotina de uma escola de bairro, eles estão encarcerados e, ao contrário de quem está fora, não se esquecem disso.
Uma fuga de carro aos 14 anos
C.M.
Bailes de funk, em comunidades como a de Sérgio – e também a de Breno, de 19 anos, em sua terceira passagem pelo sistema socioeducativo por roubo –, são a diversão preferida de jovens nas periferias de grandes cidades como São Paulo não só pela música, mas porque não cobram entrada nem documento. “Eu tinha uns 12, 13 anos e queria ir pra balada lá na favela, que não tem RG e esses negócios. É fluxo de rua”, conta Breno, que começou a roubar carros aos 14 anos, porque, “na linguagem de hoje em dia, a gente já era emocionado, queria desfilar com o carro da pessoa”. Foram vários os sermões da mãe para evitar que a rua falasse mais alto, e ele parece lembrar de cada um, à exatidão das palavras. “Ela me deu a letra: ‘tem isso e tem isso’. Mas a rua falou mais forte”.
Breno é um bom contador de histórias. O relato de como ele terminou internado a primeira vez se confunde com um roteiro de filme de ação: “Passeamos com o carro da mulher. Fomos presos lá na Imigrantes. Na delegacia, o delegado falou um monte, mas aí deu a oportunidade. Depois fui preso roubando carro de novo. Nós sofremos um acidente e capotamos. Não me machuquei muito, mas meu parceiro se machucou bastante. Nós tava na fuga, alta velocidade... Eu tava dirigindo. Aí subimos um viaduto pra entrar na avenida, e a Força Tática acertou um tiro na roda. Aí batemos na cancela e quase caímos no rio. O carro ficou de cabeça pra baixo”.
Apesar da curta idade, Breno “dirigia faz tempo”. Diz que aprendeu de observar os outros e que colocou o conhecimento adquirido em prática quando “soltaram um fusca na minha mão”. Não o pai, nem um tio, mas os amigos mais velhos da rua, os mesmos que conseguiram para ele um 38 quando ele e outros menores decidiram comprar uma arma por 1.200 reais para roubar mais equipados. Usou o revólver algumas vezes – “mas nunca atirei numa vítima” –, até que o emprestou “prum moleque” que perdeu, e ele passou a pedir emprestado também.
Nelson [nome fictício], de 19 anos, está na terceira internação (em seu último período, ingressou com menos de 18 anos). Debutou na Fundação aos 14 anos por tráfico de drogas e pelo mesmo motivo retornou a ela outras duas vezes. Têm na ponta da língua – e com exatidão – o atual período que está afastado do “mundão”: “Um ano, seis meses e doze dias”. No mundão, tudo o que não corresponde à área entremuros que ele habita, trabalhava com o pai, como pintor. “Mas aí comecei a me envolver com o crime. Chegou uma hora em que a pessoa quer ganhar mais do que ganhava. Aí optei pela vida mais fácil”, relata.
“A vida mais fácil” – que contrasta com a necessidade de estudar, levantar o próprio sustento e em casa se entender com os pais e sete irmãos em uma casa pequena e conflituosa – consistia em “fumar um cigarrinho”, “andar em uns locais aonde minha mãe me proibia de ir”, “sair escondido”, “roubar”. Nunca usou arma de fogo, diz, mas onde ele vive elas são mercadoria abundante.
Foi internado que ele concluiu os estudos e pegou o gosto pela leitura. Acaba de ler uma das tramas de Nicholas Sparks, autor norte-americano de best sellersaçucarados, como Diário de uma paixão e Uma longa jornada, e cujo nome ele pronuncia à perfeição. Nunca conheceu alguém que escreva para viver, mas pergunta, perspicaz: “A senhora já publicou muito?”. Quer ler o livro de alguém conhecido. Também precisa passar o tempo.
Reincidência
Evitar que os jovens voltem a cometer crimes é o principal foco de Christian Lopes de Oliveira, diretor da unidade visitada pela reportagem, que há 14 anos trabalha na Fundação CASA. Hoje a reincidência de delitos é de 15% – era de 29% em 2006 – mas ainda representa um grande desafio. “É difícil saber que perfil de menino volta ao crime. Já vi muitos casos difíceis que deram certo e outros que eu julgava encaminhados na vida lá fora, mas que voltaram à Fundação”, afirma.
A rotina de atividades e o apoio de psicólogos e assistentes sociais têm ajudado a cumprir o objetivo. Mas ele já vivenciou casos de jovens que foram liberados e depois pediram pra voltar à instituição, por dificuldades de reintegração. Sua estimativa da média de gastos mensais por adolescente, considerando todo o orçamento de que dispõe a Fundação dividido pelo número de atendimentos, é de “7.000 e 9.000 reais”.
Contrário à redução da maioridade penal – “simplesmente porque não significará nada para o a população quer, que é diminuir a criminalidade” –, Christian defende um investimento maior do Governo em Educação, “para cuidar deles quando ainda são de fato pequenos e evitar que cheguem aqui”. A reincidência em presídios comuns é de 60% ou 70%, segundo entidades que estudam a violência no país, como o Instituto Sou da Paz. E é para lá que os menores seguirão caso a lei de redução de maioridade penal for aprovada.
Entre paredes
O ócio é um desafio para esses adolescentes internados sem distinção por faixa etária, delito cometido ou porte físico – duas orientações determinadas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que rege a Fundação CASA, e pouco postas em prática, por falta de espaço ou de planejamento. Eles se queixam da “falta do que fazer”, do “mesmo ritmo”, da “falta de amizades” e, apesar de discursar como quem está em permanente avaliação, querem muito falar de si. É comum que um papo, mesmo informal, comece pelas expressões “más influências”, “desvio”, “me estruturar psicologicamente”. Convencer o entrevistador da vez faz parte da dinâmica de estar ali (e dali poder sair), mas ser escutado é algo visto como um raro privilégio.
Sérgio, de 16 anos, está em sua segunda internação por roubo de carro e, ele diz, foi “sempre um moleque atencioso”. “Mas devido a algumas coisas que aconteceram, minha mente mudou”. Também gosta de ler (acaba de retirar Lolita, de Vladimir Nabokov, da biblioteca da unidade) e de compor música. Diz que quer estudar Artes Cênicas quando sair da Fundação, onde, apesar da curta idade, já passou, períodos somados, cerca de dois anos. Como já passou da fase inicial, onde o tratamento aos internos é mais severo, tem mais direitos de ser vaidoso. Cabelo raspado dos lados e penteado com gel na parte de cima, além dos óculos de grau de armação leve, diz que faz “o estilo mais intelectual”. Considera ser “a ovelha negra da família” – o único dos filhos de sua mãe, Elisa, cujo nome ele tem tatuado em um braço, que cometeu crimes.
O caminho escolhido para se colocar na conversa que estava ansioso para ter com alguém de fora da unidade é o das esperadas barreiras entre ele e sua interlocutora. Diz que mora “em uma região que a senhora não conhece”, os limites ao norte da zona norte paulistana, e gosta de um tipo de música “que não é da ética de vocês”, o funk. No mundão, ele frequentava os bailes da região onde morava e, agora, internado, expressa seus sentimentos escrevendo letras, como a que ele resiste por alguns segundos em declamar, mas logo quer mostrar cantando:
Ô seu juiz, não bate esse martelo
Ouça o que eu estou te dizendo
Quem sofreu como eu sofri
Depois faz seu julgamento
Longe de armas e drogas, os meninos mais dedicados encontram na Fundação CASA um leque de oportunidades que quase nunca é uma realidade para eles fora daqueles muros. Sorte dos que podem aproveitar. Noel, de 18 anos, internado após cometer três homicídios, vive sob o efeitos de remédios psiquiátricos que o derrubam, principalmente de manhã. Ao ver a estranha, se agita na tentativa de conversar, mas vive fora do eixo. O esforço da instituição é comprovar que ele tem problemas mentais – suas três vítimas foram seus parceiros amorosos – e deve passar à tutela da Saúde.
De mal a pior
Alguém que demonstra muito menos empolgação que Sérgio, o compositor de funk, é Matias, de 19 anos, que cumpre sua quarta internação. Está desde 2009 na Fundação CASA e começou a usar drogas e roubar carro e moto aos nove anos de idade. Ao longo dos quase sete anos internado, passou por rebeliões, agrediu um funcionário e “viu muita coisa”. “Só a gente que está aqui há muito tempo tem uma história pra contar. Era diferente antigamente. Hoje, quem quiser mudar aqui dentro, muda”, ele diz, justificando logo em seguida que seu caso “é diferente”. “Minha família já era envolvida com o crime e eu sou cheio de tatuagem. Arrumar trabalho lá fora é difícil”.
Pai de uma menina de 10 meses, Matias está prestes a sair novamente “para matar um leão por dia e ver por onde estar mudando”. “Filho não pediu pra nascer, não pode deixar de qualquer jeito, né?”, questiona. Para ele, que acredita ter “uma longa carreira” e fala mesclando gírias de rua e o jargão das penitenciárias, a atual proposta de reduzir a maioridade penal no país de 18 para 16 anos “não vai melhorar nada”. Quer abandonar a vida no tráfico e o “157”, número do artigo do código penal que corresponde a roubo mediante forte ameaça. Mas prefere “não vender sonhos”.
O discurso dos adolescentes sobre a maioridade penal vem pronto, superficial, como criança que repete algo que escutou – das famílias, dos funcionários e até dos noticiários que em teoria estão proibidos de assistir. Mas demonstra que de presídio tradicional eles entendem. “O Governo vai gastar mais dinheiro com cadeia. Falam que lá dentro não é fácil, que aqui sim é uma escolinha. Lá dão comida estragada e, se a família não ajudar, a pessoa passa fome”, diz Nelson.
Contrariando a expectativa de quem apoia a redução ou tempos mais longos de internação, Sérgio associa um maior tempo atrás grades a menos chances de mudar: “Aqui dentro, hoje poucos mudam. Na penitenciária, são 10, 15 anos... Até mais”. Breno, de 19 anos, em sua terceira passagem pelo sistema socioeducativo por roubo de carros, agarra o exemplo mais próximo para emplacar uma defesa pessoal. “A senhora tem um filho, tipo eu, e ele vai começar agora... Vai pra cadeia e começa a falar na gíria, interagir com ladrão mais avançado. Querendo ou não, ele vai se atualizar. Passar de carro nacional a importado e por aí em diante”. Não que ele comemore estar ali e não em um presídio comum. Breno conclui: “De qualquer jeito, estou preso, né? É fundo do poço, e eu estou embaixo”.
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