Entrevista - Casimira Benge
por Rodrigo Martins
Para a coordenadora do programa de proteção à criança do Unicef, jogar menores em prisões de adultos geraria jovens ainda mais violentos e poderia associá-los a alguma facção
Roosewelt Pinheiro/ABr
A coordenadora do programa de proteção à criança do Unicef no Brasil, a angolana Casimira Benge
Vinte e cinco anos após a criação do Estatuto da Criança e do Adolescente, uma comissão especial da Câmara dos Deputados deu aval à redução da maioridade penal de 18 para 16 anos em casos de crimes violentos. A aprovação da emenda à Constituição foi na última quarta-feira 17, em uma sessão fechada ao público - para escapar de protestos. Padrinho do projeto, o presidente da Câmara, Eduardo Cunha, promete submeter o tema a votação em 30 de junho.
Pela proposta, adolescentes com 16 anos ou mais podem ser punidos como adultos por crimes hediondos, estupro e latrocínio incluídos, ou equiparados, a exemplo do tráfico de drogas e da tortura. Também podem ser encarcerados em penitenciárias comuns por lesão corporal grave, homicídio doloso e roubo qualificado, quando há uso de arma, participação de duas ou mais pessoas ou restrição da liberdade da vítima, por exemplo. Antes de seguir para o Senado, o projeto precisa do apoio de 60% dos deputados, em dois turnos de votação.
Em diversas ocasiões, o Unicef e o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime manifestaram oposição à redução da maioridade. “Não faz sentido jogar os 20 mil jovens que hoje cumprem medidas socioeducativas com restrição de liberdade nos presídios convencionais, controlados por organizações criminosas. Ao sair desse sistema, teríamos jovens ainda mais violentos e, possivelmente, associados a alguma facção”, afirma Casimira Benge, coordenadora do programa de proteção à criança do Unicef no Brasil.
Leia a a seguir a entrevista de Casimira a CartaCapital.
CartaCapital: Faz sentido atribuir a escalada da violência no Brasil aos adolescentes?
Casimira Benge: Na verdade os adolescentes são muito mais vítimas de violência do que autores. Dos 21 milhões de brasileiros entre 12 e 18 anos incompletos, apenas 0,013% cometeram crimes contra a vida. Mas a cada hora um adolescente é assassinado. Neste quesito, o Brasil só perde para a Nigéria. O Unicef monitora a situação com o Índice de Homicídios na Adolescência. Em 2005, fizemos uma projeção de que 35 mil adolescentes seriam assassinados entre 2006 e 2012. Infelizmente, o tempo mostrou que o diagnóstico estava bem próximo da realidade: 33,6 mil pessoas dessa faixa etária morreram no período. Agora, a previsão é ainda mais sombria. Se as condições atuais prevalecerem, 42 mil jovens serão mortos de 2013 a 2019 antes de completar a idade adulta.
CC: Por que o Unicef se opõe à redução da maioridade penal?
CB: Reduzir a maioridade não é uma solução. Ao contrário, pode agravar a violência. Passaríamos a considerar como adultos todos os jovens com 16 anos ou mais. Ou seja, o processo para a responsabilização, a natureza da punição a ser aplicada e o lugar para o cumprimento da medida serão iguais aos de um adulto. Não faz sentido jogar os 20 mil jovens que hoje cumprem medidas socioeducativas com restrição de liberdade nos presídios convencionais, controlados por organizações criminosas. Ao sair desse sistema, teríamos jovens ainda mais violentos e, possivelmente, associados a alguma facção. Em vez de remediar o problema, corremos o sério risco de agravá-lo. Além disso, não podemos perder de vista que, dentro das prisões, esses adolescentes podem sofrer graves violações. Há até um problema logístico. Os presídios já sofrem com falta de vagas. Sem falar dos reflexos da maioridade para um conjunto de outros direitos.
CC: Como assim?
CB: O Brasil é um dos recordistas mundiais em mortes no trânsito. Pela atual legislação, a permissão para conduzir um automóvel só pode ser concedida a quem tem mais de 18 anos, pois o motorista tem de ser imputável, caso venha a cometer algum crime na direção do veículo. Se a maioridade for reduzida, os adolescentes com mais de 16 anos poderão conquistar o direito de dirigir. E sabemos que o número de acidentes é muito maior entre os motoristas mais jovens. Pior: eles podem ter acesso a bebidas alcoolicas e cigarro. Em decorrência disso, é possível até haver um aumento dos casos de crimes sexuais.
CC: Qual é a tendência mundial em relação a este tema?
CB: Os países são livres para adotar seus próprios critérios. A maioria das nações estabelece como idade mínima para a responsabilização os 12 anos de idade, mas a maioridade penal completa, o momento em que o cidadão passa a ser punido como um adulto, é quase sempre aos 18 anos. São raras as exceções, a exemplo dos EUA, onde cada estado tem autonomia para definir a regra, mas normalmente a maioridade começa antes dos 18. Mas vale lembrar que os americanos começam a reavaliar essa postura, pois diversos estudos indicam que o encarceramento precoce não garante a redução da violência. Em vários países, como Colômbia, Espanha, Uruguai, Chile, houve grandes debates sobre a redução da maioridade, mas nenhum deles baixou de fato. Em vez disso, criaram regimes especiais para adolescentes com idade entre 16 e 18 anos, numa linha semelhante do que o Executivo brasileiro propõe agora.
CC: A senhora considera uma alternativa razoável a proposta de aumentar o tempo de internação dos adolescentes infratores?
CB: Acho razoável aumentar o tempo de internação de quem pratica crimes mais graves, como homicídio, latrocínio, estupro e sequestro. Desde que isso ocorra em um regime diferenciado dos adultos. Somos contra a redução da maioridade, mas reconhecemos que o Brasil precisa dar uma resposta à violência, inclusive aquela praticada por adolescentes. É possível responsabilizar com mais rigor os infratores sem necessariamente tratá-los como adultos, que tem outro grau de maturidade e capacidade de discernimento. Isso pressupõe respeitar a justiça especializada e a proporcionalidade dos crimes.
CC: Dados do Ministério da Justiça revelam que 60% dos adolescentes internados para cumprir medidas socioeducativas são negros, 51% não frequentava a escola, 49% não trabalhavam e 66% vinham de famílias extremamente pobres.
CB: Exatamente. É preciso ter cuidado para não criminalizar a pobreza. Nem todos que vivem em situação de vulnerabilidade social praticam crimes. Mas muitas vezes adolescentes pobres, que vivem nas periferias, sem perspectiva de futuro, são seduzidos pelo tráfico e acabam presos com pequenas quantidades de droga. É até complicado separar o usuário do traficante. Normalmente, se esse adolescente é pobre, vai preso. Se é rico ou tem emprego fixo, é considerado um usuário. Muitos desses adolescentes pobres nem sequer têm uma assessoria técnica adequada durante o processo. As defensorias públicas não conseguem atender toda a demanda. Mas precisamos admitir que o Estatuto da Criança e do Adolescente é muito brando em alguns casos, assim como tem um rigor excessivo em outros. Um pequeno traficante corre o risco de ficar internado por três anos, a mesma punição máxima de quem mata.
CC: Isso seria capaz de reduzir os índices de violência?
CB: Não adianta mudar a legislação sem um conjunto de políticas públicas para a juventude, como acesso à educação, à saúde, à cidadania. Se isso não for garantido aos adolescentes, nenhum projeto punitivo será capaz de resolver o problema da violência. É triste ver essa proposta de redução da maioridade emergir 25 anos após aprovação do ECA pela Câmara. A mesma Casa que aprovou uma avançada legislação especializada, considerando as crianças e adolescentes como sujeitos de direitos, influenciando outros países, agora pode promover um grande retrocesso.
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