"A verdadeira Era dos Extremos será a era dos extremos climáticos", defende professor de Ciências Físicas da Universidade Estadual do Ceará (Uece).
Alexandre Araújo Costa
Recentemente, o Brasil foi (e segue, apesar da estação chuvosa) assolado por condições extremas de seca, com consequente crise de abastecimento em numerosas cidades do Nordeste e do Sudeste.
No início do mês de março, o ministro da Integração Nacional, Gilberto Occhi, admitira como "crítica" a situação dos reservatórios no Nordeste e no Sudeste. Nas palavras do próprio Occhi, "identificamos 56 cidades que hoje estão em colapso, sendo atendidas pelas prefeituras ou pelos governos estaduais. Nenhuma dessas é atendida pelo governo federal, mas como a situação está se ampliando, o governo federal pediu um levantamento e nós podemos chegar, dentro de uma avaliação, ao número de 105 cidades que estão ou poderão estar em colapso”.
O levantamento daquele momento do ministério, para o Nordeste, indicava que os estados mais atingidos eram, pela ordem de número de municípios em tais condições, Ceará (23), Paraíba (15), Rio Grande do Norte (9), Bahia (5), Alagoas (2) e Pernambuco (2), conforme informações do Portal G1 e da página do Jornal do Brasil na internet.
Mas a crise hídrica que o Brasil vive não é um fenômeno isolado e acontece neste exato momento ou se manifestou muito recentemente em várias partes do mundo: na Califórnia, por exemplo, o quadro é de seca "extraordinária" em metade do estado e os estoques de água declinaram ao ponto de serem suficientes somente para mais um ano. O risco de crises de abastecimento nas grandes cidades de todo o planeta é hoje muito grande, graças uma conjunção de fatores climáticos, ambientais, socioeconômicos e políticos. A crise hídrica se manifesta, assim, como uma “hidra”, analogia que vale não apenas pelo aspecto fonético, mas também pelo fato de essa criatura mitológica possuir várias cabeças.
Uma atmosfera com febre sente sede
Em vários aspectos, o agravamento das secas é esperado, com o aquecimento do sistema planetário (assim, como de todos os demais extremos, incluindo enchentes, tempestades etc.). O mecanismo é relativamente simples e tem a ver com a chamada equação de Clausius-Clapeyron que mostra um crescimento exponencial da quantidade de vapor necessária para “saturar a atmosfera” (ou seja, para iniciar a condensação e a formação de nuvens) em função da temperatura.
Como consequência dessa relação física simples, é fato que a quantidade absoluta de vapor d’água na atmosfera tem aumentado nas últimas décadas, praticamente em consonância com o que se espera da própria lei de Clausius-Clapeyron, isto é, um aumento de 7% na quantidade de vapor a cada grau Celsius de elevação da temperatura média global.
Observações globais de umidade próximo à superfície têm evidenciado esse fato. Em amplas extensões do globo, dos anos 70 até o presente a tendência tem sido de aumento de cerca de 0,1 g/kg (grama de vapor d’água por quilograma de ar) por década na quantidade de vapor, o que é particularmente perceptível no Hemisfério Norte. No que diz respeito à média planetária, apesar de ficar clara a sensibilidade dessa variável a processos de variabilidade natural (como a ocorrência do El Niño recorde de 1998, que produziu um pico de umidade global), a tendência de aumento da quantidade de vapor d’água na atmosfera também é evidente.
Mas é possível que a tendência geral de aumento da quantidade de vapor d’água na atmosfera em um determinado momento não acompanhe o crescimento da temperatura no ritmo previsto pela equação de Clausius-Clapeyron e que, ao mesmo tempo em que a umidade específica continue a crescer, a umidade relativa possa cair, especialmente sobre os continentes, onde as projeções de aumento de temperatura são maiores.
Com efeito, de acordo com a média do conjunto dos modelos do CMIP (Coupled Model Intercomparison Project), que subsidiam a elaboração dos relatórios do IPCC, a tendência é, em geral, para uma ligeira redução da umidade sobre os continentes em geral e sobre o continente sul-americano em particular, especialmente no chamado RCP8.5 (cenário de mais altas emissões, vide Figura).
(Projeção de mudança na umidade relativa para
meados do século XXI (painel superior) e final do século
XXI (painel inferior), de acordo com a média do conjunto
de modelos do CMIP5. Cores quentes implicam em redução
da umidade relativa. A projeção no cenário de emissões
mais elevadas para o final do século é de queda de vários
pontos percentuais na umidade relativa média (2 a 7 pontos)
em quase todo o território brasileiro, com exceção da região
Sul. Fonte: IPCC, 2013. O número à direita (32) indica a
quantidade de modelos usados no cálculo das projeções.)
A projeção do conjunto dos modelos do CMIP para o cenário RCP8.5 também é de redução da cobertura de nuvens e da precipitação média sobre amplas extensões continentais, incluindo a maior parte da América do Sul, com exceção da Bacia do Prata e outras regiões menores.
Isso pode trazer implicações bastante profundas sobre o ciclo hidrológico sobre os continentes e impor desafios enormes para o gerenciamento de recursos hídricos na maior parte das regiões tropicais e para o Brasil em particular. Às mudanças esperadas na precipitação devem se somar variações importantes na evaporação e evapotranspiração decorrentes do aumento de temperatura. Ao mesmo tempo, espera-se uma mudança significativa na distribuição de eventos extremos.
A verdadeira Era dos Extremos será a era dos extremos climáticos
Novamente com base na equação de Clausius-Clapeyron, é possível deduzir que uma atmosfera mais quente funciona como um maior “reservatório” de vapor d’água. O que temos, portanto, é que é necessário mais vapor para “preenchê-lo”, o que demanda mais tempo e tende a prolongar, portanto, os períodos de estiagem. Por outro lado, quando finalmente se chega à saturação, as nuvens se formam a partir de uma quantidade maior de vapor d’água e a tendência é que os eventos de precipitações também se tornem mais intensos. Em resumo, secas mais longas e mais severas, menos eventos de chuva com chuva mais intensa. Um planeta mais quente é um planeta de extremos.
Com efeito, um trabalho recentemente publicado (FISCHER E KNUTTI, 2015) [4] aponta que cerca de 18% dos extremos de precipitação diária sobre os continentes no presente já podem ser atribuídos ao aquecimento do sistema planetário em relação à referência do clima pré-industrial (esse número cresce para 75% quando se trata das ondas de calor). Segundo os mesmos autores, em condições de um aquecimento global de 2°C, esse grau de atribuição deverá se elevar para nada menos que 40%.
Na expectativa de aumento de temperatura nos cenários de maiores emissões (4 a 5 graus sobre a maior parte da América do Sul), deve-se assistir a um aumento ainda mais significativo da ocorrência desses fenômenos extremos. É particularmente preocupante que a mudança nos padrões de precipitação não apenas aponta no sentido de que as chuvas se concentrem em poucos eventos com grande precipitação concentrada, mas também que se aponte para uma tendência de prolongamento dos períodos secos. O número de dias consecutivos sem chuva deve crescer significativamente em vastas áreas continentais nos trópicos e subtrópicos, incluindo quase todo o território brasileiro, especialmente no cenário de maiores emissões (IPCC, 2013), como mostrado na figura abaixo.
(Projeção de mudança no número de dias consecutivos sem chuva, de acordo com a média do conjunto de modelos do CMIP5. Cores quentes implicam em períodos secos mais prolongados. A projeção no cenário de emissões mais elevadas para o final do século leva a um aumento nos períodos secos de 15 a 25 dias na maior parte do território brasileiro, com exceção da Amazônia ocidental e da região sul. Fonte: IPCC, 2013.)
Uma lógica de chuvas mais concentradas alternadas com períodos secos mais prolongados se refletirá, portanto, na exacerbação de impactos de secas e enchentes sobre a população, tanto no que diz respeito ao abastecimento de água, quanto no que diz respeito à produção agrícola. Políticas públicas devem evidentemente ser construídas de forma coerente com esse quadro, especialmente em regiões mais vulneráveis como é o caso do semiárido nordestino.
Reduzir globalmente as emissões, construir localmente resiliência
Insistimos que é preciso investir em duas frentes, mas a maioria dos governos tem até agora ignorado solenemente a comunidade científica.
A primeira delas é a frente da "adaptação", isto é, de ajustes para melhor enfrentarmos os efeitos que talvez já sejam inevitáveis. Especificamente no que diz respeito à política de recursos hídricos, seria necessário uma ampla reformulação desta, para evitar um colapso do abastecimento em diversas regiões do mundo e, particularmente, do Brasil. Além de melhorar o sistema de armazenamento e distribuição, é preciso mexer na demanda. De norte a sul do nosso País, o que se vê é que o agronegócio e indústrias pesadas (siderúrgicas, refinarias), a geração de energia (termelétricas consomem bastante água), a mineração etc. são consumidores vorazes de água. Uma única usina termelétrica a carvão pode consumir até 1000 litros de água por segundo, suficiente para abastecer uma cidade quase do tamanho de São José dos Campos. Um quilo de carne bovina demanda 15 mil litros de água em sua produção e uma tonelada de aço requer 280 mil litros. É preciso abrir a caixa-preta da água em todos os estados para que as pessoas decidam sobre o uso dela e sobre que modelo de desenvolvimento, as opções de industrialização etc.
Segundo, é preciso apostar seriamente, de uma vez por todas, na outra frente: a da “mitigação”, isto é, na redução – urgente – das emissões de gases de efeito estufa. Até porque a partir de um determinado momento não há como se adaptar. A partir de um determinado ponto, a crise climática pode se tornar irreversível.
Existem evidências cientificas de que o limiar seguro de concentrações de CO2 na atmosfera seria de 350 ppm, o que foi ultrapassado em 1988. Hoje, flertamos com 400 ppm (ficamos acima desse valor por 3 meses em 2014). A maioria da comunidade cientifica entende que o limiar de 2 graus Celsius de aquecimento é aquele que não deve em hipótese alguma ser ultrapassado, sob pena de arruinarmos um sem número de biomas terrestres e acelerar o aquecimento com a liberação dos estoques naturais de metano (clatratos do piso oceânico e derretimento do permafrost), derretimento das geleiras e saturação da capacidade dos oceanos e florestas em sequestrar carbono.
Isso só pode ser feito mediante um corte acelerado nas emissões, com uma transição energética rápida e uma mudança no paradigma de transportes que promova em poucas décadas o abandono dos combustíveis fósseis.
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Alexandre Araújo Costa é professor titular do mestrado em Ciências Físicas Aplicadas da Universidade Estadual de Ceará (Uece). Este texto pode ser lido em seu blog ou em Água para quem precisa: direito humano e suporte à vida.
Créditos da foto: Jornal GGN
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