OPINIÃO
Em linhas gerais a Lei 13.245/16 traz como conteúdo epistêmico o direito de acesso aos autos da investigação criminal por uma defesa técnica e proteção efetiva ao princípio já consagrado em nossa Carta Política em seu artigo 5º, LVII (nemu tenetur se detegere).
Trouxe, também, uma grande oportunidade de amadurecermos o entendimento retrógrado de que na investigação não incidem garantias fundamentais o devido processo legal e seus corolários lógicos como, contraditório e ampla defesa. Serão sobre esses enfoques que iremos tecer comentários.
Nós já havíamos defendido que a súmula vinculante 14 do STF já trazia a necessidade de se garantir a defesa na investigação criminal e que esta garantia deve ser efetivada pelo Delegado de Polícia como consequência da incidência das garantias constitucionais e de convencionalidade dos tratados e convenções de Direitos Humanos, conforme deixamos bem claro em artigo publicado na ConJur [i].
Em outra oportunidade anterior ao artigo na ConJur, em artigo publicado naRevista Síntese de Direito Penal e Processual Penal [ii], já havíamos acenado para o cenário dos tribunais superiores de que a jurisprudência navegava, desde 2009, por entendimento consolidado de que o acesso aos autos da investigação criminal é uma garantia do imputado:
“Verifica-se, assim, que o STF, nos mesmos moldes que o STJ, vem preconizando entendimento que o advogado tem acesso aos elementos investigativos, desde que munido de instrumento de mandato e em nome do imputado (investigado indiciado ou não), como forma de conciliar o sigilo da investigação com o direito consagrado na constituição pelo art. 5º, LXIII e LXIV, da CRFB”
Por esta razão o trecho do dispositivo que dispõe, “mesmo sem procuração” já se encontra praticamente consolidado que não houve revogação do artigo 20 do CPP, na qual garante o sigilo das investigações, notadamente, nas lições de Aury Lopes e André Nicolitt [iii], para cumprir a dupla função do sigilo na investigação, qual seja garantista e utilitarista.
Em outras palavras, os autos sempre estarão em sigilo, que evidentemente não alcança a defesa, que em razão do caráter garantidor de preservação da imagem do investigado o sigilo alcança, inclusive outro investigado, sendo necessário para este controle procuração nos autos e acesso às informações, sigilosas, que digam respeito ao investigado mandante, bem como às provas já documentadas. Quanto as diligências em andamento como busca em apreensão não cumprida, esta deverá estar em autos apartados, exatamente como dispõe a orientação da súmula, não trazendo novidades a redação dos §§ 10, 11 e 12, nas quais remetemos os leitores ao brilhante artigo do professor Henrique Hoffmann [iv].
Outra alteração foi a retirada de “repartição policial” para “qualquer instituição responsável por conduzir investigação”. Ficou bem clara a intenção do legislador de ampliar o acesso aos autos de qualquer tipo de investigação, seja de que natureza for, civil (por exemplo, inquérito civil), criminal (por exemplo inquérito policial) e administrativo (por exemplo COAF), já tendo se posicionando no mesmo sentido, e na qual concordamos, com o professor Henrique Hoffmann.
A razão do acréscimo do termo “em meio físico ou digital” somente se faz necessária aos que são apegados a interpretação iniciante da lei. A toda evidência que o artigo 405, §1º do CPP, alterado pela Lei 11.719/08 ao permitir que as audiências fossem registradas pelos “meios ou recursos de gravação magnética, estenotipia, digital ou técnica similar, inclusive audiovisual”, bem como fez alusão ao “registro dos depoimentos do investigado, indiciado”, com o intuito de atribuir maior fidelidade das informações, estava se referindo a investigação criminal também, consequentemente, o advogado ao ter acesso aos autos da investigação, o faria independentemente de sua formatação física.
Não fosse a cultura autoritária e à dogmática literal que se apregoou, mesmo após a Constituição de 88, inclusive pelo STF, de que o inquérito policial não há contraditório e ampla defesa, o artigo 14 do CPP já autorizaria que o advogado apresentasse “razões e quesitos”, conforme veio previsto na alínea “a” deste mesmo inciso.
Neste aspecto o legislador foi tímido e poderia ter avançado ainda mais! Ao autorizar quesitação o legislador está se referindo a prova pericial. Não há outro sentido para esta previsão senão a participação do investigado, por intermédio de seu advogado, em contraditório das denominadas provas irrepetíveis, já aludidas no artigo 155 do CPP.
Não custa lembrar que o delegado e o advogado não são especialistas outra área do saber humano, portanto, acaso o objeto da prova depender do conhecimento relacionado a outra Ciência distinta do Direito é necessário um expert no assunto, como por exemplo, Ciências Contábeis para exame em documentos contábeis, Medicina, para exames em corpos humanos vivos ou mortos etc..
Em outras palavras, é necessário exame pericial realizados por peritos, pelos quais devem ser pessoas dotadas de domínio no saber de outra área de conhecimento, com formação acadêmica em nível superior, que irá auxiliar o delegado, ainda que este tenha o mesmo conhecimento, bem como auxiliar o advogado, e por esta razão terá o direito de nomear um assistente técnico, o que traz um avanço democrático almejado desde a elaboração do PL 4.205/01, que previa nomeação de assistente técnico para o investigado, em especial para as provas irrepetíveis. Neste sentido, a professora Ada Pellegriniv:
"Excluídos os casos em que há urgência, seja porque há risco de desaparecerem os sinais do crime, seja porque é impossível ou difícil conservar a coisa a ser examinada, ou ainda as hipóteses em que inexiste suspeita contra pessoa determinada, a autoridade policial deveria dar oportunidade ao indiciado de apresentar quesitos para maior garantia de defesa.”
É importante lembrar que a verdade que exsurge com provas irrepetíveis é mitigada por força de seu contraditório diferido no tempo, mas seu conteúdo, o exame, não pode mais ser realizado, denotando flagrante prejuízo ao investigado, o que fortalece a ideia de que haveria maior garantia de uma verdade eticamente construída se este contraditório, desde que possível, fosse realizado na investigação como alerta Leonardo Greco [vi]:
"(....) contraditório eficaz é sempre prévio, anterior a qualquer decisão, devendo a sua postergação ser excepcional e fundamentada na convicção firme da existência do direito do requerente e na cuidadosa ponderação dos interesses em jogo e dos riscos da antecipação ou da postergação da decisão; (....)”
Outrossim, sabemos que os exames periciais são realizados dependendo do interesse da verdade que se quer buscar e, por isso, são formuladas perguntas denominadas de quesitos, de cujas expostas formarão o corpo do resultado final do exame, documentado através de um laudo.
Ora, se o legislador permitiu que o advogado realize quesitação ele está autorizando contraditório no corpo de delito, no entanto, o legislador mandou muito mal em não trazer um procedimento mais seguro para que esta diligência, e, portanto, deverá incidir, por analogia, o previsto pelos parágrafos do artigo 159 do CPP.
Claro, que há investigações criminais nas quais não há ainda um suspeito e as perícias realizadas poderão ser requisitadas de maneira complementar pelo advogado, evidentemente, se os vestígios do crime ainda não tiverem desaparecidos.
Sobre este aspecto existem diversos desdobramentos que deverão ser debatidos, como por exemplo, nos “autos de resistência”, o agente público figura como investigado. Ele poderá nomear assistente técnico para acompanhar o exame de local, que também é um exame pericial, para formular quesitos? Oportunizando para a defesa nomeação de assistente deverá o delegado notificar o ministério público para exercer o mesmo direito por razões de paridade de armas? Em se tratando de ação penal de iniciativa privada estaríamos inaugurando assistente técnico para a querelante (acusador) e querelado e com isso assistente técnico para acusação e defesa?
Quanto ao temo “razões”, antes de “quesitos” entendemos que seu alcance se refere a qualquer manifestação por escrito, mas em especial, haverá maior aplicabilidade para a construção da verdade, a concessão de oportunidade de se notificar a defesa ao final da investigação para apresentação dasrazões da defesa, que na verdade seriam verdadeiros memoriais ou alegações a despeito dos elementos informativos colhidos na investigação criminal, antes do delegado elaborar o relatório final.
Inovação ao nosso pensar é a total possibilidade de se trazer para a investigação, de uma vez por todas, a teoria das nulidades como mecanismo de limites ao poder de punir do Estado. Como muito bem alertou o professor Henrique Hoffmann em seu artigo já referenciado, a nulidade deve existir na investigação criminal, “tendo em vista que a investigação policial tem força suficiente para embasar restrições à liberdade e ao patrimônio do cidadão.”
O acesso aos autos por assistência por advogado já está garantido pela Constituição [vii] não é somente um direito do advogado, mas uma garantia para o investigado de ter sua presunção de inocência preservada, mas que na prática somente os investigados são assistidos quando os mesmos indicam e possuem dinheiro para custeá-los. Até aí não havia necessidade da lei ter incluído no artigo 7º o inciso XXI, portanto o sentido deste dispositivo deve ser mais amplo.
Sem adentrarmos no debate se a nulidade é uma sanção ou declaração de perda de eficácia de um ato processual (ato processual na investigação ? Indícios de que sim.), como ela se configuraria na investigação criminal em razão de um direito do advogado elencado no artigo 7º do EAOB, diante da redação: “sob pena de nulidade absoluta do respectivo interrogatório ou depoimento e, subsequentemente, de todos os elementos investigatórios e probatórios dele decorrentes ou derivados, direta ou indiretamente, podendo, inclusive, no curso da respectiva apuração”?
Insta salientar, por oportuno, que a Constituição da República prevê como direito do investigado a identificação dos responsáveis pela sua prisão e de seu “interrogatório policial” parte do pressuposto, que a natureza jurídica do ato de inquirir o suspeito é de interrogatório, consequentemente se trata de um ato formal por essência, e neste condão seguimos o entendimento de que o mesmo possui natureza mista, qual seja, meio de prova e meio de defesa, principalmente com o advento da Lei 10.792/03 e da Lei 13.245/03, que ao nosso ver autoriza o contraditório do interrogatório, aplicando-se o artigo 188 do CPP.
O interrogatório sob esta perspectiva pode o investigado: autodefesa como direito de participar do ato e permanecer calado (sem que isso possa lhe causar prejuízo), indicar provas ou confessar, adotando-se o art. 187 do CPP, que prevê um procedimento para o interrogatório e que se divide em interrogatório de individualização (§1º) e em interrogatório de mérito (§2º), por força do art. 6º, V, do CPP, “(....)com observância, no que for aplicável, do disposto no Capítulo III do Título Vll, deste Livro (....)”.
Percebemos, portanto, que o interrogatório possui forma a ser seguida com limite, como meio de prova, que se consagra pela garantia fundamental de não autoincriminação, cuja violação acarretaria uma prova ilícita, bem como as provas dela decorrentes, adotando-se neste diapasão toda a teoria inerente ao estudo das provas ilícitas, não servindo esses elementos sequer para o oferecimento da denúncia. Não se poderá mais sustentar que atos na investigação criminal não acarretam nulidades no processo. Devemos entender qual seria seu alcance.
Nulidade é uma sanção atribuída pela lei por um defeito, inobservância ou atipia da forma processual, não havendo no ordenamento um sistema satisfatório sobre nulidades, então, a primeira indagação que devemos refletir é se a lei atribui finalidade de se entender que o ato sem acompanhamento do advogado fere o artigo 564, IV, “por omissão de formalidade que constitua elemento essencial do ato”? A segunda, teria o legislador atribuído extensão a investigados para a norma contida no art. 564, III, “c”, do CPP“nomeação de defensor ao réu presente, que o não tiver, ou ao ausente(....)”?
Entendemos que a nulidade absoluta referida diz respeito ao conteúdo, como meio de prova, e não quanto à forma, ou seja, quanto à garantia da auto incriminação. O legislador não entende mais como aceitável, por exemplo, a constatação formal de que o policial advertiu o investigado do direito de permanecer calado como efetivação do nemo tenetur. Agora, para a efetivação plena da não auto culpabilidade, a presença do advogado é indispensável e sua ausência acarreta um prejuízo presumido.
Como então solucionar a hipótese da autoexecutoriedade do Estado em uma situação de urgência para a interrupção do crime e necessidade de segregação cautelar de um preso em flagrante, com a respectiva formalidade da lavratura do auto de prisão em flagrante? A resposta é simples: em razão da ausência de um advogado ou defensor o delegado deverá garantir seu direito ao silêncio, não admitindo ou atribuindo ineficaz sua confissão. A manutenção da sua detenção, após a captura, terá como fundamento qualquer outra prova, menos a confissão.
O delegado então irá impor o silêncio ao capturado/conduzido? E se, mesmo sem advogado, quiser indicar um elemento de prova que aponte, por exemplo, um erro de tipo e com isso a não lavratura do auto de prisão em flagrante? Exemplo. Alguém é conduzido, com sinais visíveis de embriaguez, até a delegacia sob alegação de uma tentativa de furto qualificado por concurso de agentes, flagrados os agentes já dentro do veículo tentando dar a partida. O conduzido alega que entrou no veículo achando que era dele e o outro conduzido dizia que estava de carona e nada sabia, mas viu que no local do estacionamento havia uma câmera.
Dirigindo-se até o local se verificou pelas filmagens que realmente o conduzido tinha um veículo idêntico, diferenciando-se somente pela placa de identificação, e que por coincidência a chave de um abriu a porta do outro, e que o não sucesso da partida se deu justamente porque a chave não pertencia ao verdadeiro veículo, caracterizando o erro de tipo e consequentemente a não lavratura do auto de prisão em flagrante. Acaso o delegado tivesse imposto o silêncio teria ocorrido a lavratura do auto de prisão em flagrante.
O que este exemplo nos demonstra? Que se tratou de uma confissão foi qualificada na qual o conduzido conseguiu demonstrar elemento em seu favor, consequentemente, não se auto incriminando. Acaso a diligência for acarretar prejuízo e esta resultar da confissão do conduzido, o interrogatório deverá ser considerado nulo e todas as provas decorrentes dele serão considerados ilícitos, devendo ser desentranhado dos autos pelo juiz ou pelo próprio delegado por decisão fundamentada.
Com boa vontade a lei representa um avanço necessário à esta fase da persecução criminal.
i BARBOSA, Ruchester Marreiros. Delegado deve efetivar a garantia de defesa na investigação criminal. Artigo publicado na revista jurídica eletrônica Consultor Jurídico. Disponível: , acesso em 13/01/2016
ii BARBOSA, Ruchester Marreiros. Inquérito Penal de Garantias – Sigilo e direito à informação do investigado – aspectos constitucionais e processuais penais. Artigo publicado na Revista Síntese Direito Penal e Processual Penal, Porto Alegre: Síntese, v.13, nº 74, jun./jul. 2012, p. 21.
iii NICOLITT, André. Manual de Processo Penal. 5ª Ed. São Paulo: RT, 2014, p. 182. Nicolitt filia-se ao posicionamento de Aury Lopes em nota de rodapé.
iv HOFFMANN, Henrique. Advogado é importante no inquérito policial, mas não obrigatório. Artigo publicado na revista Consultor Jurídico. Disponível: , acesso em 14/01/2016
v GRINOVER, Ada Pellegrini e outros. As Nulidades no Processo Penal. São Paulo: Malheiros, 1994, p. 129/130.
vi GRECO, Leonardo. Garantias Fundamentais do Processo: o Processo Justo. In Estudos de Direito Processual. Rio de Janeiro: Editora Faculdade de Direito de Campos, 2005, p. 241/242.
vii Art. 5º, LXIII - o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado;
Ruchester Marreiros Barbosa é delegado da Polícia Civil do Rio de Janeiro, doutorando em Direitos Humanos na Universidad Nacional de Lomas de Zamora (Argentina), professor de Processo Penal da Emerj, da graduação e pós-graduação de Direito Penal e Processual Penal da Universidade Estacio de Sá (RJ) e do curso CEI. Membro da International Association of Penal Law e da Law Enforcement Against Prohibiton.
Revista Consultor Jurídico
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