LUIZ FLÁVIO GOMES*
Pesquisadora: Adriana Loche**
O Brasil encontra-se, segundo estudos recentes, na sexta posição mundial em relação às taxas de homicídio por 100 mil habitantes. São mortes provocadas, majoritariamente, por armas de fogo e que atingem, sobretudo, a população jovem (15-24 anos) do sexo masculino (Mapa da Violência 2011).
Dentre os números dessa violência fatal, uma parcela significativa tem sido atribuída a ações das polícias estaduais, em especial à militar, nos chamados “autos de resistência” ou “resistências seguidas de morte”[1]. As mortes resultantes de ações policiais são um aspecto da violência policial, denominada letalidade policial.
Antes de tudo, é importante definir o que estamos entendendo por letalidade policial. O uso da força letal refere-se a situações em que a ação policial teve consequências fatais para o cidadão. Ainda que ocorra em situações de legalidade, existem regras específicas sobre seu uso que devem ser respeitadas. Por trás destas regras, está o reconhecimento de que o uso da força pela polícia implica uma série de riscos, em especial quando se trata do emprego de armas de fogo, mas também que a polícia não tem carta “branca para agir”, o que significa restrições ao uso da força letal.
Como a linha que separa a necessidade do abuso é bastante tênue, foram convencionados, a partir de estudos sobre o uso da força pela polícia, três parâmetros para aferir se uma polícia usa da força de forma arbitrária ou não, em especial se uma polícia tem um elevado índice de letalidade, que seria incompatível com sua função legal. São eles:
a) relação entre civis mortos e civis feridos em uma ação policial;
b) a relação entre civis e policiais mortos;
c) o percentual das mortes provocadas pela polícia em relação ao total de homicídios dolosos.
Os parâmetros acima surgem de estudos nos Estados Unidos, conduzidos por especialistas que tinham por objetivo a redução do número de tiroteios, justificados ou não, nas ações policiais[2]. É importante esclarecer que estes parâmetros devem ser analisados em conjunto, pois considerados isoladamente não são suficientes para definir o grau de letalidade de uma polícia.
Para analisar os parâmetros em seu conjunto, tomemos como exemplo o caso de São Paulo, cujas estatísticas oficiais sobre criminalidade são divulgadas, por força de lei estadual, desde 1995, e, portanto, permitem fazer uma análise histórica dos dados de homicídios e de resistências seguidas de morte no estado de São Paulo[3].
O primeiro parâmetro a ser analisado é o que se refere à proporção de civis mortos e feridos nas ações policiais. Como em uma guerra, em situações de confronto o que se espera é que o número de feridos seja sempre superior ao número de mortos.
Vejamos o que tem ocorrido em São Paulo, desde o ano de 2000:
Tabela 1: Mortes provocadas pelas polícias do estado de São Paulo
2000 | 2001 | 2002 | 2003 | 2004 | 2005 | 2006 | 2007 | 2008 | 2009 | 2010 | Total | |
Civis Mortos | 595 | 459 | 610 | 915 | 663 | 329 | 576 | 438 | 431 | 549 | 517 | 6082 |
Civis Feridos | 386 | 439 | 420 | 705 | 525 | 450 | 420 | 417 | 368 | 393 | 424 | 4947 |
Proporção* | 154 | 1,05 | 1,45 | 1,30 | 1,26 | 0,73 | 1,36 | 1,05 | 1,17 | 1,39 | 1,22 | 1,23 |
Fonte: Estatísticas Trimestrais da Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo
(*) Refere-se ao número de civis mortos para cada civil ferido.
O que podemos perceber é que, à exceção do ano de 2005, o número de mortos pela polícia sempre superou o número de feridos. Se a polícia mata mais do que fere, isto nos sugere que não são considerados os princípios de razoabilidade e de necessidade da ação. Mesmo em um caso de resistência armada, por parte de delinqüentes, cabe à polícia eliminar a resistência e não quem resiste.
O maior número de civis mortos em relação ao número de civis feridos é um fato preocupante. Os dados sugerem que há um incentivo – ou uma permissão – de uma postura mais agressiva da polícia no patrulhamento ostensivo, o que inevitavelmente aumenta o risco de abusos por parte dos policiais contra os cidadãos.
O segundo parâmetro refere-se à proporção de civis (não-policiais) e policiais mortos nas ações policiais. Se a polícia está constantemente em ações que colocam a vida dos policiais em risco, a proporção entre civis e policiais mortos em uma ação é um dado muito importante.
Embora haja uma dificuldade normativa em estabelecer o grau aceitável do uso da força letal pela polícia ou contra a polícia, há diversas tentativas de se estabelecer uma ratio. Por exemplo, o FBI utiliza a proporção de 1 policial morto para cada 12 não-policiais mortos.
Estudos desenvolvidos no Brasil assumem a ratio de 1:4[4]; outros estudos afirmam que quando a proporção de civis mortos em relação a policiais mortos é maior do que 10, a polícia usa a força letal de maneira desproporcional à ameaça, servindo a “propósitos outros do que a proteção da vida em emergências”.[5]
Analisemos os números de São Paulo para o período de 2000 a 2010:
Tabela 2: Mortes de civis (não-policiais) e policiais no estado de São Paulo
2000 | 2001 | 2002 | 2003 | 2004 | 2005 | 2006 | 2007 | 2008 | 2009 | 2010 | Total | |
Civis Mortos | 595 | 459 | 610 | 915 | 663 | 329 | 576 | 438 | 431 | 549 | 517 | 6082 |
Policiais Mortos | 49 | 49 | 59 | 33 | 27 | 28 | 38 | 36 | 22 | 22 | 27 | 390 |
Proporção* | 12,1 | 9,4 | 10,3 | 27,7 | 24,6 | 11,7 | 15,2 | 12,2 | 19,6 | 24,9 | 19,1 | 15,5 |
Fonte: Estatísticas Trimestrais da Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo
(*) Refere-se ao número de civis mortos para cada policial morto.
(*) Refere-se ao número de civis mortos para cada policial morto.
Se tomarmos como ratio a proporção de 10:1, conforme indicada nos estudos internacionais, vimos que apenas no ano de 2001 essa razão foi inferior. Observe-se que a média no período analisado foi de 15,5 civis mortos para cada policial morto, mais de 50% superior ao que se considera internacionalmente “justificável”.
Segundo o ex-Secretário Nacional de Segurança Pública, Cel. José Vicente da Silva Filho: “quando passa da taxa de dez civis mortos para um policial não há dúvidas de que há excesso de força e execuções”[6].
Como bem ressaltou a antropóloga Tereza Caldeira, “as mortes de civis em confronto dificilmente podem ser consideradas acidentais ou como um resultado do uso da violência pelos criminosos. Se fosse o caso, o número de policiais mortos também deveria aumentar, o que não é o caso. Em São Paulo, a razão entre mortes de civis e policiais é desproporcionalmente alta”[7].
E, por fim, analisemos o terceiro parâmetro, que diz respeito ao percentual das mortes provocadas pela polícia em relação ao total de homicídios dolosos.
Antes de tudo é necessário reconhecer os resultados do governo do estado e também dos governos municipais, em especial da Região Metropolitana, na redução dos homicídios em São Paulo desde o início da década.
Tabela 3: Homicídios dolosos e mortes por policiais no estado de São Paulo
2000 | 2001 | 2002 | 2003 | 2004 | 2005 | 2006 | 2007 | 2008 | 2009 | 2010 | |
Civis Mortos | 595 | 459 | 610 | 915 | 663 | 329 | 576 | 438 | 431 | 549 | 517 |
Homicídio Doloso | 12638 | 12475 | 11847 | 10954 | 8753 | 7592 | 6559 | 5153 | 4690 | 4799 | 4502 |
Proporção* | 4,71 | 3,68 | 5,15 | 8,35 | 7,57 | 4,33 | 8,78 | 8,50 | 9,19 | 11,43 | 11,48 |
Fonte: Estatísticas Trimestrais da Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo
(*) Refere-se ao percentual de civis mortos em relação aos homicídios em geral.
(*) Refere-se ao percentual de civis mortos em relação aos homicídios em geral.
É interessante notar, ainda, que apesar dos homicídios dolosos terem reduzido em cerca de 65% entre os anos de 2000 e 2010, as mortes provocadas pela polícia não apresentaram uma queda na mesma proporção. Já as mortes pela polícia oscilam um pouco entre a queda e o aumento, mantendo-se na média de 550 mortes ao ano.
Se a violência letal da polícia estivesse correlacionada à necessidade de proteger a vida, era de se esperar que, com a queda dos homicídios, diminuíssem consideravelmente as mortes provocadas pela polícia. Mas, pelos números, podemos perceber que não é isto o que está ocorrendo em São Paulo.
Philip Alston, o relator especial da ONU para execuções sumárias, constatou que as polícias de São Paulo utilizam a força letal e não a inteligência para controlar o crime[8]. Mais do que isso, esta força letal é utilizada para a proteção do patrimônio e não da vida[9].
Ao se analisar conjuntamente os três parâmetros, podemos concluir que as polícias têm agido com alto grau de letalidade em suas ações, utilizando a força e a violência de forma desproporcional à ameaça representada e sem respeito aos direitos das pessoas e aos procedimentos legais.
Os números revelam que há uma violência desproporcional à ameaça apresentada e que o uso da força letal é uma prática deliberada e reflete uma política de controle da criminalidade pela violência, que coloca não apenas a vida de civis em risco, mas também a vida dos próprios agentes policiais.
É um fato que a polícia está autorizada a usar a força e é treinada para esta tarefa, mas quando o nível de força excede aquele considerado justificável, as atividades da polícia deveriam estar sob escrutínio público, não importa se ela faz parte do comportamento individual de determinado agente policial ou de uma prática institucional.
No entanto, casos envolvendo policiais nas resistências seguidas de morte raras vezes são investigados e quase nunca chegam à justiça. Na sua maioria são arquivados e os policiais continuam a agir, sem qualquer tipo de responsabilização.
As instituições policiais sabem que quando a força utilizada pelos seus agentes é superior àquela considerada necessária para conter a desordem ou o crime a autoridade policial tende a ser enfraquecida. O uso desnecessário da força pode até ser percebido como um símbolo de poder, mas pode ser igualmente interpretado como um sintoma da ausência de autoridade.
A violência policial, em todos os seus matizes, é um problema que afeta a qualidade de vida de todos os cidadãos, pois gera desconfiança nas agências responsáveis pela aplicação da lei, o que pode conduzir a respostas cada vez mais privadas – e violentas – de resolução de conflitos.
De outro lado, quanto mais se evidencia essa violência policial excessiva (abusiva), mais vai ganhando credibilidade a tese de que vivemos mesmo num permanente estado de guerra civil de todos contra todos. Mais se escancara a tese da profunda degradação ética e moral das nossas instituições. “Em países multiétnicos ou multirreligiosos como o Brasil, com grandes populações marginalizadas, a maquiagem étnica e religiosa da polícia busca refletir o padrão de domínio social. As várias combinações possíveis de terrorismo policial, repressão social, subdesenvolvimento institucional, imobilizam a polícia brasileira em um estado de falência moral e social crônica”[10]
*LFG – Jurista e cientista criminal. Doutor em Direito penal pela Universidade Complutense de Madri e Mestre em Direito Penal pela USP. Presidente da Rede LFG. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998) e Advogado (1999 a 2001). Blog: www.blogdolfg.com.br. Twitter: www.twitter.com/ProfessorLFG. Encontre-me no facebook.
** Adriana Loche – Socióloga. Doutoranda em Sociologia pela Universidade de São Paulo e Pesquisadora do Instituto de Pesquisa e Cultura Luiz Flávio Gomes.
[1] “Auto de resistência” é a nomenclatura utilizada no estado do Rio de Janeiro e “Resistência seguida de morte” é utilizada no estado de São Paulo para definir ações de confronto entre policiais e não-policiais que resultaram em morte.
[2] Chevigny (1991); Mayer (1983), Sherman & Langworthy (1979).
[3] Os dados do estado de São Paulo referem-se às polícias militar e civil. No entanto, cumpre dizer que a quase totalidade de mortes é provocada pela polícia militar, não só pelo caráter de sua atividade, mas também pelo tipo de formação recebida e pela cultura militarista que graça naquela instituição.
[4] Oliveira Jr, E. N. 2008. Letalidade da ação policial e teoria interacional: análise integrada do sistema paulista de segurança pública. Tese de Doutorado apresentada ao Departamento de Ciência Política da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Sociais da Universidade de São Paulo. Disponível em: www.teses.usp.br/…/TESE_EMMANUEL_NUNES_DE_OLIVEIRA_JR.pdf
[5] Blumberg, M. 1994. “Police use of deadly force: exploring some key issues”. In: Thomas Barker & David Carter. eds. Police Deviance. Cincinnati, Anderson Publishing Co.
Chevigny, Paul. 1991. “Police Deadly Force as Social Control: Jamaica, Brazil and Argentina”, Série Dossiê NEV, n.2, p. 10. Núcleo de Estudos da Violência, USP, São Paulo.
[6] Jornal Folha de S. Paulo, 16 de julho de 2007.
[7] Caldeira, T. 2000. Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo. São Paulo, Editora 34/Edusp.
[8] Sobre esse tema ver relatório de Philip Alston, Relator Especial da ONU para Execuções Sumárias, quando da sua visita ao Brasil em 2007 (Relatório ONU – A/HCR/11/2/Add.2, 29/08/2008).
[9] Em nota explicativa, sobre a queda das taxas de crimes violentos no segundo semestre de 2009, a Secretaria de Segurança Pública (SSP) afirmava: “Desde março a polícia tem focado suas ações em todo o Estado no combate aoscrimes contra o patrimônio. A polícia está na rua para impedir o roubo, furto e latrocínio. Os resultados já começam a aparecer.”. Esta informação está disponível na íntegra no sítio da SSP/SP: http://www.ssp.sp.gov.br/estatisticas/downloads/nota_explicativa_2_tri_2009.pdf
[10] Mir, Luís, Guerra civil, São Paulo: Geração Editorial, 2004, p. 373.
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