Acorda, Policial e Bombeiro Militar!


O verdadeiro desafio não é inserir uma idéia nova na mente militar, mas sim expelir a idéia antiga" (Lidell Hart)
Um verdadeiro amigo desabafa-se livremente, aconselha com justiça, ajuda prontamente, aventura-se com ousadia, aceita tudo com paciência, defende com coragem e continua amigo para sempre. William Penn.

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

As UPPs. Uma incógnita

Na visão de Eduardo Tomazine, ainda é cedo para julgar as implicações das Unidades de Polícia Pacificadora nas favelas ocupadas no Rio de Janeiro, a sua relação com a instituição policial da qual elas fazem parte e, ainda, as suas consequências para o espaço da cidade como um todo

Por: Por Graziela Wolfart

“Isso precisa ser denunciado: a violência causada por uma política econômica liberal”. A opinião é de Eduardo Tomazine, em entrevista que segue, concedida por e-mail para a IHU On-Line. Na entrevista ele analisa a guerra ao tráfico no Rio de Janeiro e sobre o papel das Unidades de Polícia Pacificadora – UPPs. Para Eduardo é preocupante o modo como está sendo conduzida essa guerra ao tráfico no estado do Rio, principalmente “a famigerada utilização das Forças Armadas para a segurança pública interna”. E explica: “ao Estado, o uso das Forças Armadas para estes fins até pode ser conveniente, usando a massa ociosa do contingente militar e desonerando, assim, o investimento em polícia. Seria, digamos, a solução neoliberal para a segurança pública. Agrada também a uma opinião pública cada vez mais conservadora, manipulada pelo discurso oficial que é reproduzido e ampliado pela grande mídia. Mas os riscos para a democracia são evidentes. Primeiro porque as Forças Armadas não têm preparo para exercer funções de polícia. Depois, e, sobretudo, pelo imaginário que se fortalece entre a população, desrespeitamos a constituição em prol da manutenção da ordem. Isto não nos deveria lembrar alguma coisa?”, provoca.

Eduardo Tomazine Teixeira é bacharel e mestre em Geografia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ. Atualmente é mestrando em Ciência Política na Universidade de Paris VIII, na França, onde reside.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Como você vê a presença da Polícia Pacificadora no Rio de Janeiro e em situações particulares como a que a cidade vive?

Eduardo Tomazine -
Antes de falar sobre as Unidades de Polícia Pacificadora em si mesmas, acho interessante destacar a associação, feita na própria pergunta, sobre os atuais acontecimentos no Rio e as UPPs. É preciso reconhecer que a estratégia de comunicação social do governo do Estado – com o apoio da grande mídia – foi vitoriosa, pois as pessoas aceitaram a explicação dos ataques como uma reação dos traficantes de drogas à implementação progressiva das UPPs (mesmo que nem todos confiem muito nisso). Isso significa que a opinião pública foi conduzida a acreditar que o Rio de Janeiro tem uma política de segurança pública que vem sendo eficaz e que os narcotraficantes estão desesperados pela perda do seu poder. Fazer esse tipo de manobra com a opinião pública parece algo óbvio, dado, mas não é. Basta lembrar o que aconteceu quando dos ataques do PCC  em São Paulo em 2008: na ocasião, a opinião pública considerou o estado paulista como refém da facção agressora. Eu diria que, se hoje o estado do Rio de Janeiro, após uma situação de crise tão grave como a atual, saiu com a sua imagem fortalecida diante da opinião pública, isto se deve, mais do que à ocupação do Complexo do Alemão , às UPPs. Sobre a minha opinião a respeito destas unidades, eu acho preciso evitar o simplismo. Tenho identificado dois tipos de respostas simplistas sobre o papel das UPPs: o primeiro é que elas são uma maravilha, a resolução do problema de segurança na cidade e a libertação da população das favelas “pacificadas”. O segundo é um simplismo mais à esquerda, para o qual as UPPs são mais do mesmo, que não trazem nada de novo no histórico de política de segurança no Rio de Janeiro, que elas não são acompanhadas de mudanças importantes nas comunidades onde são implementadas, etc. No entanto, para além dessas opiniões extremas, acho que a maioria das pessoas ainda vê as UPPs como uma incógnita. Estas últimas, na minha opinião, têm razão, pois é cedo para julgar as implicações das UPPs nas favelas ocupadas, a sua relação com a instituição policial da qual ela faz parte e, ainda, as suas consequências para o espaço da cidade como um todo.

IHU On-Line - Quais os principais impactos que as Polícias Pacificadoras trazem às favelas ocupadas e como elas interferem na questão da democracia?

Eduardo Tomazine -
Mesmo sendo ainda muito cedo para avaliar com precisão os impactos das UPPs nas favelas onde elas são implementadas, pode-se dizer, desde já, que eles são ambíguos, contraditórios. De um lado, não há mais a presença armada dos traficantes de drogas, não há mais os conflitos, nestas favelas, entre facções do tráfico e entre os traficantes e a polícia quando das suas históricas incursões bárbaras. Isto não pode ser subestimado. Por outro lado, há agora a presença ostensiva da Polícia Militar, e, por mais que sejam recrutas com uma formação especial, a coabitação quotidiana com a polícia é, e sempre será, tensa. Ainda mais quando a polícia em questão é a polícia brasileira, herdeira não apenas do regime opressor de 1964, mas de uma história escravocrata e racista. A favela ainda é considerada como a senzala a ser controlada e abusada, ou o quilombo a ser combatido. O governo repete que, em seguida às UPPs, vem a “invasão de serviços”. No entanto, são os serviços privados que têm vindo à frente, sobretudo a formalização dos serviços de luz e de TV a cabo, o que compete para encarecer a vida nessas favelas. Já os serviços públicos gratuitos, como a coleta de lixo, os postos de saúde e as creches ainda estão sendo aguardados. Na favela da Babilônia, por exemplo, um ano após a instalação da UPP, ainda havia problemas de abastecimento de água por falta da instalação de um reservatório. Já o presidente da Associação Comercial do Rio de Janeiro relata, com orgulho, que o furto de energia elétrica na favela Santa Marta (a primeira a receber uma UPP, em 2008) caíra de 70% para 1%. Percebe-se, pois, uma assimetria entre direitos e deveres nas áreas ocupadas por UPPs, entre serviços privados e gratuitos.

O contraste
Mas, em contraste com a imagem de prestadores de serviços e de amigos da comunidade transmitida pela PM, há denúncias de abusos cometidos por alguns policiais das UPPs. É fácil imaginar as tensões decorrentes de um espaço ocupado quotidianamente por pessoas armadas, sejam elas de quadrilhas ou da polícia. Ocorre que, agora, a ocupação é feita por uma instituição a qual, mesmo com todos os problemas que conhecemos, tem um grau de controle, por parte da sociedade, incomparavelmente maior – ao menos potencialmente. Aí entra em jogo a questão da democracia. Não com relação à dinâmica eleitoral, mas em relação à capacidade de determinação, por parte dos moradores favelados sobre o seu próprio espaço de vida. Antes, eles eram cativos da arbitrariedade e da violência dos chefetes das quadrilhas de narcotraficantes. Resta lutar para que não fiquem cativos da arbitrariedade e da violência policiais. Mas ressalvo: ainda é cedo para saber o que ocorrerá. Não apenas porque a dinâmica da atuação policial é imprevisível, mas também porque a capacidade de organização da população é fundamental nisso.

IHU On-Line - Que papel as UPPs desempenham na produção do espaço urbano carioca?

Eduardo Tomazine -
As UPPs cumprem um papel fundamental nos projetos de alguns setores capitalistas, associados aos gestores políticos que atualmente governam a cidade e o Estado do Rio de Janeiro. Há mais de 30 anos que o espaço carioca vem sendo produzido em meio à estagnação econômica e à desarticulação política. Em decorrência – e em função da localização estratégica do Rio de Janeiro no circuito mundial do comércio de drogas –, os negócios que mais prosperaram na cidade foram de caráter ilegal e violento (o tráfico de drogas e armas) e um tipo de negócios formais umbilicalmente ligado a eles, como o mercado imobiliário dos condomínios exclusivos, as empresas de segurança privada e seus produtos (sistemas de câmeras de monitoramento, blindagens de carros, etc.) e a corrida armamentista por parte do Estado e dos narcotraficantes (informalmente, e, em grande medida, tendo como vendedores os próprios policiais). Nos espaços segregados, como favelas e loteamentos irregulares, em meio à decadência econômica e à falta de serviços públicos oferecidos pelo Estado, a associação ao negócio do tráfico se tornou uma estratégia de sobrevivência (entre as estratégias possíveis) para muitos, principalmente para os jovens e adolescentes. Agora que o país começa a retomar uma dinâmica de crescimento econômico, em que o estado do Rio de Janeiro é impulsionado pela indústria petroquímica e que se tem costurada uma inédita articulação política entre as esferas municipal, estadual e federal de governo, há certas frações do capital que vislumbram a possibilidade de fazerem negócios na cidade, sobretudo o grande capital imobiliário e da indústria do turismo. Mas, para que isso aconteça, é preciso resolver alguns “gargalos” da cidade, como a falta de estrutura de transportes; mas, sobretudo, as externalidades produzidas pela hegemonia do que podemos chamar de “indústria da ilegalidade violenta e do medo”.

IHU On-Line - Quais implicações as UPPs trazem para a práxis dos ativismos urbanos?

Eduardo Tomazine -
Esta é, para mim, uma questão central. Pois o principal critério de avaliação de uma política pública, seja ela de segurança ou não, é, de um ponto de vista libertário, a sua implicação na capacidade de a sociedade se autodeterminar de maneira livre e bem informada. É claro que a questão do bem-estar é importante, mas do que adiantam ganhos de qualidade de vida, por exemplo, com uma sociedade politicamente tutelada? A liberdade e a democracia são, pois, fundamentais, e toda política deve ter em vista, de uma maneira ou de outra, o seu robustecimento. Pensando desta maneira, ter uma sociedade civil forte e bem organizada é ainda mais importante do que ter bons partidos políticos ou um Estado eficiente, pois a sociedade civil é a base de toda sociedade democrática. Os ativismos urbanos, por sua vez, são os setores da sociedade civil que se organizam visando, com a sua atuação, uma transformação progressista da sociedade, e são elas que podem, concretamente, tornar os seus espaços melhores e mais justos (auto-organização), e, igualmente, pressionar o Estado por conquistas e para evitar que ele cometa abusos (lutas institucionais).

Consequências contraditórias
As UPPs trazem, mais uma vez, consequências contraditórias aos ativismos urbanos, sobretudo à auto-organização dos moradores das favelas ocupadas. É inegável que o controle ostensivo dos narcotraficantes armados praticamente inviabiliza um trabalho político que se pretenda autônomo e radicalmente crítico do status quo. Seja pela ingerência direta exercida pelos traficantes, seja pelas brechas abertas pela sua presença incidiosa às ações intempestivas e autoritárias da polícia. As UPPs abrem, em tese, espaço para que a população destes locais volte a se organizar politicamente de maneira crítica e independente, inclusive permitindo a circulação de ativistas de favelas diferentes que, antes, eram muito frequentemente impedidos de realizar esse trânsito pelas rivalidades entre facções. Mas a ambiguidade da UPP é, como eu já disse, a troca de um controle armado por outro, de maneira que o primeiro e mais importante desafio dos ativismos urbanos será a organização da população nas áreas “pacificadas” para controlar os policiais e participar diretamente na manutenção de uma verdadeira segurança na suas comunidades, evitando qualquer forma de abuso.

IHU On-Line - Por que não investir mais em inteligência e tecnologia na Polícia?

Eduardo Tomazine -
O deputado estadual Marcelo Freixo tem insistido, corretamente, na importância da inteligência e da tecnologia como alternativas mais eficazes à política de confrontação – insistência importante em um momento passional como este, em que todos aplaudem as ações bélicas. Mas não podemos partir do pressuposto de que os gestores políticos responsáveis pela segurança no estado do Rio e no país como um todo não investem em informação simplesmente porque não querem. É preciso, portanto, investigar as razões de base para essa lacuna. Em primeiro lugar, há problemas institucionais que precisam ser resolvidos, como a comunicação entre as diferentes polícias. Há, por exemplo, uma série de conflitos de competência, além, claro, de conflitos de interesses políticos e de outros menos nobres. Finalmente, o cobertor da segurança é curto, muito curto. Os investimentos em segurança do governo do estado, em 2009, responderam por mais de 7% do orçamento, e vem crescendo com a implementação das UPPs. A consequência é a falência da educação e da saúde estaduais. O principal responsável, portanto, por uma política que invista em informação e tecnologia das polícias, e também em educação e reduções de desigualdades socioespaciais, é a União, que, em decorrência da sua política econômica, tem os investimentos sociais acorrentados em benefício da manutenção das taxas elevadas de juros e do superávit primário. Isso precisa ser denunciado: a violência causada por uma política econômica liberal.

IHU On-Line - De modo geral, como você avalia que está sendo conduzida essa “guerra ao tráfico” no RJ?

Eduardo Tomazine -
De maneira preocupante. Não que os ataques orquestrados pelos traficantes devessem ficar sem uma resposta contundente e rápida. O problema é a maneira como a coisa toda foi feita, e os precedentes que isso abre. Em primeiro lugar, a incapacidade de estabelecer diálogo, por meio dos intermediadores oficiais que se ofereceram. Não para fazer eventuais concessões, mas para assegurar a integridade dos que se rendessem. Talvez isto pudesse evitar algumas mortes e fugas, não sabemos. Mas o principal é que tal atitude poderia abrir um canal de diálogo com a sociedade: o que vamos fazer com estes indivíduos? Qual política carcerária queremos em nosso estado e no nosso país? Afinal, se não podemos isentar os indivíduos pela sua culpa ao se envolver com a criminalidade, tampouco podemos isentar o Estado brasileiro da sua responsabilidade. Mas o que mais preocupa é a famigerada utilização das Forças Armadas para a segurança pública interna. Ao final, se viu que a necessidade da intervenção dos mil e tantos militares mobilizados para as operações da Vila Cruzeiro e do Alemão é duvidosa. Se se trata da superioridade numérica, as polícias Militar e Civil têm mais de 40 mil homens só no Rio de Janeiro à disposição. Se se trata da tal superioridade material, não vejo muito claramente em quê dezenas de blindados do Exército e da Marinha, que nem ao menos podem entrar nos becos das favelas, podem ajudar concretamente. Trata-se, pois, de recolocar na ordem do dia o emprego das Forças Armadas em assuntos de segurança pública interna. Ao Estado, o uso das Forças Armadas para estes fins até pode ser conveniente, usando a massa ociosa do contingente militar e desonerando, assim, o investimento em polícia. Seria, digamos, a solução neoliberal para a segurança pública. Agrada também a uma opinião pública cada vez mais conservadora, manipulada pelo discurso oficial que é reproduzido e ampliado pela grande mídia. Mas os riscos para a democracia são evidentes. Primeiro porque as Forças Armadas não têm preparo para exercer funções de polícia. Depois, e, sobretudo, pelo imaginário que se fortalece entre a população, desrespeitamos a constituição em prol da manutenção da ordem. Isto não nos deveria lembrar alguma coisa?

IHU On-Line - Como fica a imagem do Brasil fora do país a partir deste episódio?

Eduardo Tomazine -
Eu moro, atualmente, na França, de maneira que posso acompanhar bem a impressão que se tem aqui fora do Brasil com este episódio. É claro que isto abala a imagem do país, mas eu acredito que o Brasil esteja com um certo “crédito” diante da opinião pública internacional. Lula é muito popular por aqui, e a grande mídia (ao contrário da brasileira) não se cansa de fazer elogios a ele e à emergência do Brasil. Eles sabem que a situação de violência no Brasil, e no Rio em particular, é antiga. Filmes como Cidade de Deus e Tropa de Elite fizeram muito sucesso pelo mundo, de maneira que a violência dos conflitos entre a polícia e os traficantes não é novidade para ninguém. Ocorre que, diante dos últimos episódios, a mídia aqui tem sido mais cautelosa, indicando o discurso oficial no Brasil, segundo o qual houve uma grande e decisiva vitória, mas colocando sob suspeição a capacidade de controle da situação no longo prazo. O fato é que o governo do Rio tem sido habilidoso na implementação da sua estratégia, e estes estertores agora, em 2010, têm um impacto muito diferente do que se houvessem ocorrido às vésperas da Copa e das Olimpíadas.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Seu comentário é sua opinião, que neste blog será respeitada

politicacidadaniaedignidade.blogspot.com