DIREITO & MÍDIA
“A aula do prof. Dr. Enrique Ricardo Lewandowski no mestrado de Direitos Humanos da Faculdade de Direito da USP deveria terminar às 19 horas daquela calorosa sexta-feira, 23 de março de 2007. Mas os alunos que o cercam ao final da palestra não têm pressa em sair, apesar da sala abafada no segundo andar. São perguntas e comentários de uma plateia que acompanhou atenta a preleção. Ministro do Supremo Tribunal Federal, Lewandowski não revela cansaço, apesar de haver enfrentado os percalços de um vôo desde Brasília no começo da tarde – nesse período de esperas provocadas pela crise aérea. Atento, sorri para uma aluna, atende a um professor assistente, ouve algum comentário, indica uma leitura, recebe congratulações. Finalmente se dirige para as escadas – sua agenda ainda prevê uma entrevista.
“No andar de baixo, há uma hora era esperado pela equipe de reportagem de uma revista jurídica da cidade de Osasco, para uma conversa sobre temas da atualidade. O editor, o repórter e a fotógrafa estavam acomodados na sala da Congregação, um espaço solene em que impera uma tela representando o criador dos cursos jurídicos no Brasil, D. Pedro I. Nas paredes da sala, desfilam os nomes dos juristas que passaram pela direção da ‘Escola das Arcadas’ – e apenas eles parecem não se incomodar com o calor sufocante desse espaço solene.
Porte atlético, alto, Lewandowski desce o último lance de escada e aperta a mão de um bedel: ‘Há quanto tempo não lhe vejo, tudo bem?’. Figura carismática, cumprimenta amável a senhora do café, e oferece água aos repórteres, pedindo mais um minuto de paciência, pois tem de atender a um professor da PUC-SP, que o esperava na sala ao lado. Finalmente a entrevista inicia. O ministro responde aos repórteres da revista, que começam perguntando sobre sua trajetória.
Esse texto foi a abertura de um perfil que publiquei há cinco anos, e vem agora à memória neste momento em que Lewandowski é visto pelo público e por colunistas como a “encarnação do mal” por suas posturas no julgamento da Ação Penal 470, o popular mensalão. Foi vaiado nas eleições, evita estar em evidência. Mas outro dia, em sala de aula, uma aluna do curso de pós-graduação lato sensuem jornalismo da Cásper Líbero, advogada, alertou-me para um fato: o ministro continua, no fundo, a agir como advogado. Como diz o ditado, o hábito do cachimbo entorta a boca.
A cena descrita no início desse texto ocorria doze meses após a posse de Lewandowski no STF. Ele havia entrado pelo quinto constitucional para o desembargo do Tribunal Paulista, deixando uma destacada carreira de 16 anos (1974-1990) como advogado – a que se seguiram 22 anos como magistrado (16 como desembargador e seis como ministro do STF).
Nos tempos de advogado e professor, foi assessor jurídico na Assembleia Legislativa do estado, secretário de governo e de assuntos jurídicos de São Bernardo do Campo, adquirindo experiência administrativa na presidência da Emplasa, Empresa Paulista de Planejamento Metropolitano, criada em 1975 para cuidar do planejamento da Grande São Paulo. Resultado disso é que seu gabinete no STF adota o Sistema de Gestão da Qualidade, baseado nas normas da família ABNT NBR ISO 9000, como se pode conferir no site do Supremo.
“A entrada pelo quinto é difícil, pela própria concorrência prévia na OAB ou no Ministério Público”, explicava o então presidente da Academia Paulista de Magistrados, o falecido Antonio Carlos Viana Santos. O candidato, no caso de advogado, tem de passar pelo filtro da OAB, depois pela triagem do tribunal, e finalmente passar pelo crivo do Executivo. Lewandowski concordou na época. “O ingresso no Judiciário pelo quinto constitucional é uma entrada pela porta da frente: tem de ter dez anos de prática profissional, notório saber jurídico, aferido pela Ordem ou pelo MP, e passar pelo crivo do Tribunal e do Executivo. Mas a participação dos magistrados ingressos pelo quinto é um fator de oxigenação para o Judiciário. Para mim, a passagem pela advocacia foi fundamental para me preparar para a judicatura”, concluía então.
Vencer aquele desafio não representara grande problema para o então jovem advogado. Ele vinha há muito se preparando para novas empreitadas, acumulando títulos. Formado em Ciências Políticas e Sociais pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo, em 1971, graduou-se em Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade de Direito de São Bernardo em 1973. “Fui jovem no auge da guerra fria”, comenta: “Quis estudar Ciências Sociais para entender o mundo, e fiz Direito porque queria nele interferir”.
O mestrado em Direito veio em 1980, com a dissertação “Crise institucional e salvaguardas do Estado”, na USP. Ele é mestre em Relações Internacionais pela Fletcher School of Law and Diplomacy, da Tufts University. Em 1982, tornou-se doutor em Direito pela USP com o trabalho “Origem, estrutura e eficácia das normas de proteção dos Direitos Humanos na ordem interna e internacional” – editado em livro pela Forense em 1984. A livre docência ele defendeu em 1994.Tanto o mestrado quanto o doutorado foram orientados pelo professor Dalmo de Abreu Dallari, a quem sucedeu na titularidade do curso de Teoria Geral do Estado na USP. Lá, criou, tempos depois, a disciplina de Direitos Humanos. Foi essa bagagem que trouxe para o Judiciário, quando, em 1991, ingressou no hoje extinto Tribunal de Alçada Criminal.
No STF, Lewandowski se destacou na defesa da Lei da Ficha Limpa nas eleições de 2010, e no papel de presidente garantiu a sua aplicação no Tribunal Superior Eleitoral. Do mesmo modo, votou pela sua constitucionalidade no STF. Outro destaque foi a proibição do nepotismo. A extensão da proibição aos demais Poderes da República foi adotada após os ministros julgarem um recurso extraordinário em que o Ministério Público do Rio Grande do Norte contestava decisão do Tribunal de Justiça do mesmo estado que vetara a aplicação da resolução aos Poderes Legislativo e Executivo do município de Água Nova, interpretando que a resolução do CNJ deveria ser aplicada apenas no Judiciário. Relator da matéria, Lewandowski votou contra a contratação, por parte do município, de um motorista, irmão do vice-prefeito. Por sua iniciativa, propôs a votação da súmula vinculante que estabelece a proibição da contratação de familiares de até terceiro grau por parte dos órgãos dos três Poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário).
Agora, no julgamento do Mensalão, como a grande imprensa já havia condenado os mensaleiros antes que a primeira testemunha do caso fosse ouvida, tudo o que não coincidisse com essa posição foi apresentado como aberração. Daí colocarem o ministro Lewandowski nessa condição. Do ponto de vista jurídico, no entanto, sua atuação é importante, pois mostrou que as coisas podem ser vistas de mais de uma maneira. E do ponto de vista político, sua importância foi legitimar o julgamento, permitindo que o processo não se transformasse num linchamento.
Em contraponto, o atual presidente do STF, ministro Joaquim Barbosa, aplaudido relator do mensalão, tem longa trajetória na Promotoria. Também com sólida formação acadêmica, é doutor e mestre em Direito Público pela Universidade de Paris-II (Panthéon-Assas), onde seguiu extenso programa de doutoramento (1988-1992), de que resultaram três diplomas de pós-graduação. Cumpriu também o programa de Mestrado em Direito e Estado da Universidade de Brasília (1980-1982), obtendo o diploma de Especialista em Direito e Estado. Professor licenciado da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), onde ensinou Direito Constitucional e Direito Administrativo, foi Visiting Scholar (1999-2000) no Human Rights Institute da Columbia University School of Law.
No campo profissional, sua trajetória foi construída nos 19 anos de Ministério Público Federal (1984-2003), com atuação em Brasília (1984-1993) e Rio de Janeiro (1993-2003). Antes, chefiara a Consultoria Jurídica do Ministério da Saúde (1985-1988) e advogou no Serviço Federal de Processamento de Dados (1979-1984), após servir na chancelaria do Ministério das Relações Exteriores (1976-1979), tendo trabalhado na Embaixada do Brasil em Helsinki, Finlândia.
Ou seja, embora este texto tente lançar uma luz para entender algumas reações da alma de advogado de Lewandowski no julgamento do mensalão, também ajuda a entender por que o ministro Joaquim Barbosa de certo modo repete seu habitus de promotor. Como diz um sagaz observador, o relator encampou quase todas as teses da Procuradoria-Geral da República, limitando seu voto a repetir a denúncia. Quase duas décadas de Ministério Público também moldaram seu modo de ser. Repetindo, o uso do cachimbo entorta a boca.
Carlos Costa é jornalista, professor da Faculdade Cásper Líbero e editor da revista diálogos & debates.
Revista Consultor Jurídico
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