DIREITO & MÍDIA
No auge da ditadura, Chico Buarque de Holanda compôs a música Acorda Amor, em que o personagem desperta, em meio a um pesadelo com a polícia batendo ao portão, e fala para a parceira: “Chame o ladrão”. Isso foi em 1974, 38 anos atrás (por acaso, 38 era o calibre dos revólveres usados ao longo de nove décadas pela polícia, substituído no ano passado pela pistola 40, arma mais segura e precisa). Para driblar a censura daqueles anos de chumbo, Francisco Buarque de Holanda adotou o pseudônimo de Julinho da Adelaide, conseguindo a liberação da música. A ironia de chamar o ladrão para se livrar da polícia poderia ter envelhecido, como caducaram a censura e outras práticas do regime militar. Mas infelizmente a realidade é outra. A polícia continua impondo medo.
Imagino que o leitor já tenha presenciado ou foi vítima de alguma truculência policial. Entre as que guardo na memória, falarei de duas. Uma ocorreu naqueles tempos de ditadura. Saía de carro numa manhã de sábado com meus filhos para um passeio no Horto Florestal, descendo a Rua Barão de Tatuí para entrar na Rua das Palmeiras (na época aquele trecho era de mão dupla). Quase tive o carro abalroado por um Opala da PM que entrava na Barão de Tatuí em altíssima velocidade. Tanto o policial quanto eu conseguimos evitar a trombada, e soltei um “Está maluco?” Imediatamente vejo pelo retrovisor o Opala frear, dar meia volta e vir a meu encalço. Estacionei meu carro. Fui abordado aos berros pelo militar querendo confirmar se havia entendido o que eu dissera. Respondi que havia dito se ele era um maluco, pela velocidade e manobra temerária que realizara, colocando em risco a vida de meus filhos. Ouvi como resposta que ele estava indo atender a uma emergência. Retruquei que a emergência não era tanta, pois viera tirar satisfação. Alegando desacato a autoridade começou a anotar os dados do meu carro. Peguei a caneta e fiz o mesmo com o carro dele. Na dúvida, e por não estar acompanhado de outro policial, foi para seu carro e o assunto ficou por isso.
Quase 30 anos depois, subia num outro sábado a rampa que leva ao morro onde em 1713 se construiu o Convento de Nossa Senhora da Conceição, em Itanhaém, tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. É uma rampa íngreme, com uma ponte de arco romano que dava passagem à linha de trem, hoje desativada. Na altura do arco, fiz a primeira parada para tomar fôlego e vi um policial correndo em desabalada pela linha do trem, arma em punho, em perseguição a um menino – ou pivete, como se dizia. Houve outro um incidente parecido, sem consequências. Mas desta vez o garoto se escafedeu em meio à hesitação da “autoridade”, entre continuar correndo atrás do menino ou vir tirar satisfação ao meu grito: “Isso é covardia”.
Que polícia temos e que polícia queremos? O que aconteceu com a polícia, que não acompanhou a caminhada de democratização empreendida pela sociedade após o final da ditadura e a Constituição Cidadã de 1988? Ela continua a ser vista pela população mais como perigo e não como agente pacificador. As ondas de violência, incêndios de ônibus que se alastram de Santa Catarina ao interior do estado de São Paulo são a contrapartida da política da “guerra contra o tráfico” e da “tolerância zero” (lembro a frase do governador Alkmin, citada na primeira coluna deste mês: “O governo não vai retroagir um milímetro. É ir pra cima de criminoso. Polícia nas ruas e criminoso na cadeia”) demonstram a falência das políticas de segurança e de preparação dos policiais em todos os estados do país. Isso é fato. As estatísticas, com todas as contestações que se possam a elas fazer, mostram que matar e morrer é a realidade de nossas cidades. Morre-se mais de forma violenta aqui do que nas regiões em conflito armado, seja no Iraque ou no conflito entre Israel e Palestina.
Recorro, como de costume, a meus apontamentos e resgato uma conversa mantida há mais de uma década com o então diretor da Academia de Polícia de São Paulo (cargo ocupado por ele nos governos Covas e Montoro), o delegado e professor Roberto Maurício Genofre. Ele comentava: “Essa é uma das certezas que consolidei ao longo de mais de 30 anos como delegado de Polícia. Com toda essa vivência, só acredito numa polícia que seja comunitária, voltada para a prestação de serviços, para a ajuda ao povo. Além da função de investigar e coibir os crimes, ela tem um papel comunitário fundamental. À noite, na madrugada, a única luz acesa do bairro, principalmente em bairros distantes da periferia paulistana, é a da Delegacia de Polícia. É aonde a população acorre, sobretudo a mais carente, nem sempre levando problemas de natureza policial. Muitas vezes são questões sociais. Então, vejo o delegado de polícia como o orientador, alguém em condições de evitar que as discussões e os problemas se avolumem e se tornem grandes tragédias, grandes crimes”.
Passou mais de uma década e a visão utópica do professor, de que a própria palavra “polícia” é derivada da “polis”, a defesa da cidade e do cidadão, não se concretizou. O verbo não se fez carne. A imagem desfavorável do policial como profissional da repressão começou no Brasil com o governo de Floriano Peixoto, se aprofundou no Estado Novo de Vargas e se consolidou durante a ditadura militar de 1964, pois se implantava um sistema de poder. E nele o policial era força de repressão. Nas pequenas cidades do interior ainda existe certa confiança por parte da comunidade, pois ela controla mais o aparelho policial. Se alguém adota uma conduta incorreta, o jornal, o vereador, as instituições da cidade estão atentas.
Com o fim da ditadura, não houve alteração significativa na mentalidade do policial como defensor do Estado e não da população. Os excessos que o regime militar incentivou não foram combatidos nem reinventou um papel para o policial. A situação apenas se complicou. O ex-presidente Collor convocou o Exército para o policiamento da Rio Eco 92 e fez escola. O equívoco de militarizar a polícia, mesclando a defesa do Estado com o policiamento que deveria ser em favor do cidadão, continuou no governo Fernando Henrique e se exacerbou no governo do PT, com o presidente Lula sancionando, em agosto de 2010, a lei que atribui poder de polícia às Forças Armadas. Em nenhum país sério do mundo é papel do Exército revistar cidadãos e veículos ou policiar ruas, mas o de defender o país de ataque inimigo. Essa inversão coloca o brasileiro na posição de inimigo do Estado. Em alguns países, como a China, a polícia não trabalha com arma, exclusividade das Formas Armadas, como explicita esse nome.
No imbróglio formado nas últimas décadas, temos agora a Guarda Metropolitana, a Polícia Militar, a Polícia Civil, a Polícia Federal, as Forças Armadas. Todas, aparentemente, em guerra contra o cidadão (e algumas vezes entre si), atacando e não defendendo. No caso da “pacificação” em andamento no Rio de Janeiro (e a novela Salve Jorge usa como um de seus panos de fundo os teleféricos instalados no Complexo do Alemão e a presença de militares em reluzentes cavalos), para livrar as favelas dos “traficantes” de drogas, cria-se um modelo de policiamento que se traduz na ocupação militarizada dessas comunidades pobres, como se fossem territórios “inimigos” a serem conquistados. “No momento inicial da ocupação, chega-se até mesmo a hastear a bandeira nacional, em claro símbolo de ‘conquista’ do território ‘inimigo’”, escreve a juíza aposentada Maria Lucia Karam, da Associação Juízes pela Democracia.
Há forte marca da influência americana nessa militarização da polícia e até na escolha do “tráfico de drogas” como o inimigo público número 1 – quando se sabe que 84,9% das mortes relacionadas com drogas no Brasil são atribuídas ao álcool, segundo artigo de Juliana M. Brito publicado no Le Monde Diplomatique de março deste ano, número temático sobre a militarização do controle policial. Das 40 mil pessoas que morrem em “acidentes” de trânsito no Brasil, 40% são provocadas por excesso de álcool. Nos últimos oito anos, 138 mil pessoas morreram por esses “acidentes”, o equivalente a dez tsunamis como o que atingiu o Japão em março do ano passado. Não passa pela cabeça de nenhuma política de segurança pública pôr limites à produção da Ambev, a empresa que ultrapassou a Petrobras como a maior do país.
É mais do que hora de repensar essa questão da inversão de papéis: a polícia ensinando o Exército a realizar o policiamento da população do Haiti, o Exército revistando brasileiros como se fossem inimigos do Estado.
Carlos Costa é jornalista, professor da Faculdade Cásper Líbero e editor da revista diálogos & debates.
Revista Consultor Jurídico
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