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segunda-feira, 19 de maio de 2014

O volume morto e o dinheiro vivo


Como não intuir o peso da riqueza de US$ 22,8 bilhões da família Marinho na esférica oposição da Globo a uma reforma fiscal que taxe as grandes fortunas?

por: Saul Leblon 

Arquivo


A família mais rica do Brasil - os Marinho e seu oceânico pecúlio de US$ 22,8 bilhões, conforme noticia a revista Forbes - é também a proprietária do maior conglomerado midiático do país.

A supremacia das Organizações Globo é conhecida.

 Mas o fato de que essa casamata  dispare diuturnamente  contra qualquer variável que afronte  a lógica argentária,  da qual seus donos são os maiores expoentes e beneficiários, presta-se a algumas considerações.

Olhada  dessa ótica, a fortuna  dos Marinhos  figura como uma questão política, talvez uma das mais sensíveis da política brasileira.

Ou será que  quando  interesses marmorizados em uma riqueza da ordem de R$ 50 bilhões –seis vezes o custo dos estádios da Copa--  se entrelaçam ao poder de fogo de um dos maiores impérios midiáticos do mundo,  seu poder de vigiar e punir  em causa própria  não  assume proporções de uma ameaça  à democracia?

O conjunto remete à metáfora de uma sociedade panóptica.

Nela a presença de um poder  ubíquo exerce  sobre os cidadãos uma vigilância equivalente à do sentinela da torre no controle diuturno dos encarcerados.

 A onipresença asfixiante do vigia que tudo enxerga e avalia deu ao francês Michel Foucault (1926-1984), autor de "Vigiar e Punir", a inspiradora metáfora  para abordar  a exasperação do controle social no século XX.

A torre do panóptico não assegura apenas a disciplina do sistema.

Sua perversidade consiste em aprisionar a subjetividade social tornando-a  carcereira de suas próprias vontades.

Parece devaneio?

Quantas agendas o sistema político brasileiro  não rebaixou ou protelou e protela (caso da regulação da mídia), para não se indispor  com o poder de fogo da oceânica fortuna armada de irrespondível dispositivo emissor?

Essa invasiva capacidade  de inocular agendas e interditar debates lubrificou,  entre outras coisas,  a imposição da cosmologia neoliberal no imaginário  brasileiro nos anos 80/90.

Como não intuir o peso dos US$ 22,8 bilhões, por exemplo, na esférica oposição das Organizações Globo a uma reforma fiscal que  taxe adicionalmente  as grandes fortunas?

Ou  na peroração incansável dos seus  editoriais, a desafiar o Estado brasileiro ‘a fazer mais com menos’ – evocação  à austeridade emitida do alto de uma montanha de dólares equivalente a 10% do PIB de Portugal?

Ou duas vezes  o orçamento total do Bolsa Família que beneficia 50 milhões de brasileiros pobres.

Ainda: como elidir o interesse argentário  da maratona vitoriosa dos seus veículos e disciplinados colunistas contra o imposto do cheque, em 2007?

A CPMF, recorde-se, de baixíssima alíquota, funcionava  como um incômodo sensor  de movimentações financeiras graúdas, nem sempre alinhadas à legalidade.

Foi decepada do orçamento brasileiro em 2007.

Um comparativo da OMS mostra o quanto há de perversidade na fotografia que imortalizou aquele  ato, cometido na madrugada de 13 de dezembro, depois de  encorajadora campanha sistemática das Organizações Globo & assemelhados.

A imagem estampada no jornal dos Marinhos  no dia seguinte ao sacrifício, mostra a nata do retrocesso político, em festa obscena pela subtração de R$ 40 bilhões por ano à saúde pública.

 A indecência,  se  panfletada nas filas do SUS,  ainda guarda um teor de nitroglicerina para sublevar o país.

Mais com menos?

Segundo a OMS, o gasto público mundial per capita com a saúde  chegou a US$ 571 por ano em 2010. Inclua-se  nessa média os US$ 6 mil da Noruega e os US$ 4 per capita do Congo.

O valor brasileiro é de US$ 466/ano ( US$ 107 per capita ao final do governo FHC).

O deserto real é  ainda mais árido:  apenas 42% daquilo que o país gasta com saúde tem origem e destino público. Sai do governo e chega na fila do SUS, que atende mais de 75% da população.

 Outros 58% só circulam entre os 25% que tem plano de saúde.

Os mesmos que gargalhavam na madrugada de 13 de dezembro de 2007 fuzilariam o ‘Mais Médicos’ seis anos depois, com igual despudor e patrocínio da mesma  emissora & veículos da família mais rica do país.

É só uma ilustração do ardil  que encurrala a sociedade em um labirinto de impasses e protelações  angustiantes  (veja o  ensaio fotográfico de Roberto Brilhante sobre a ocupação  ‘Copa do Povo’,  em Itaquera, SP; nesta pág).

Cinicamente, o desespero é  acolhidos pelo dispositivo dos Marinhos & assemelhados como uma evidência do malogro progressista na condução do desenvolvimento brasileiro. 

Seria apenas um escárnio.

Não fosse, sobretudo,  a moldura de uma campanha sucessória.

Através dela pretende-se incensar candidatos e agendas que preconizam adicionar  ao desespero  uma renúncia  disfarçada de audácia.

Em nome de desobstruir canais que impedem o crescimento, preconiza-se recuar ainda mais o papel coordenador do Estado  sobre a economia.

Um exemplo da ardilosa cicuta oferecida em favos de mel.

É sabido que o portfólio de investimentos dos Marinhos  inclui uma bilionária carteira de ações da Petrobrás.

A república dos acionistas  tem nos donos  da Globo  o porta-voz incansável de um sonho reprimido.

Qual?

 ‘Realizar’  depressa o valor potencial das maiores reservas de petróleo descobertas no planeta nos últimos 30 anos: o pré-sal, que Lula regulamentou e fundiu ao destino da sociedade pelo regime da partilha.

O nome do atalho cobiçado é petroleiras internacionais.

O método: remeter in bruto o óleo, sem refino.

E gerar caixa.

 Uma dinheirama como nunca o mercado viu, nem verá.

A república dos dividendos  saliva.

Ganharia duplamente se  a Petrobrás deixasse de gastar como investidora universal da exploração, com pelo menos 30% em cada poço, como manda a lei.

A economia numa ponta engordaria as carteiras dos acionistas na outra.

A pilha de US$ 22,8 bilhões dos Marinhos subiria mais depressa.

Incharia, ademais,  se o petróleo fosse bombeado direto para fora do país.

Sem alimentar impulsos industrializantes, sem investir em quatro refinarias ao mesmo tempo; sem expandir polos tecnológicos; sem engatar cadeias de equipamentos com elevados índices de nacionalização e prazos mais largos de exploração.

Tudo isso, afinal, que  só gera corrupção e desperdício...

Nove em cada dez  referências das Organizações Globo à Petrobrás são desse teor, muito embora a etatal tenha dado um lucro de R$ 23 bilhões em 2013.

Eles querem mais .

A república dos acionistas gostaria de ficar com o equivalente projetado para o fundo soberano, formado de royalties do pré-sal, que permitirá elevar a 10% do PIB o orçamento da educação pública, ademais de suprir  lacunas da saúde brasileira.

Transitamos, como se vê, no campo da injeção de interesses direto na veia do noticiário.

A Sabesp, em São Paulo, conforme mostra reportagens do Viomundo e de Carta Maior,  fez exatamente o que os Marinhos  preconizam para a Petrobrás e para o Brasil.

Afastou o interesse público do comando estratégico da gestão.

Em vez de investir, tucanos distribuíram nos últimos anos cerca de R$ 500 milhões, em média, aos acionistas da empresa.

Sobrou para a sociedade o volume morto da Cantareira.

A partir deste domingo, as torneiras de milhões de residências estarão gotejando   neoliberalismo líquido.

A sociedade que emergiu das conquistas sociais e econômicas acumuladas a partir de 2002 não cabe nos limites estreitos que essa lógica oferece.

Dito de outra forma.

A coexistência de um Brasil urgente, disposto a comandar seu próprio destino, é imiscível  com a estrutura  de riqueza e comunicação simbolicamente condensada no caricato papel que a família Marinho e seus negócios protagonizam no país.

 Seu poder desmedido  para manipular conflitos , desqualificar projetos  e usufruir privilégios distorce e constrange  as vozes que precisam ser ouvidas nesse Rubicão da nossa história.

A travessia  só se completará  de forma emancipadora se o campo progressista souber erguer linhas de passagem feitas de reformas, prazos e metas críveis aos olhos da população.

Trata-se de estender o horizonte da sociedade para além do volume morto, ao qual os campeões da Forbes gostariam de  circunscrevê-la.

E começar por dizê-lo, claramente, nesta campanha eleitoral
.

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