O trabalho da justiça de transição e das comissões da verdade na reconstrução da história, conscientização social e busca de reparação das vítimas
José Carlos Moreira Filho Foto: Leslie Chaves |
As avós argentinas que conseguiram descobrir o paradeiro dos netos sequestrados no período da ditadura tomaram contato com uma contradição de sentimentos, pois no momento em que tiveram a alegria de encontrar as crianças, ao mesmo tempo se depararam com a certeza de que os filhos estavam mortos. Essa foi a passagem recuperada pelo professor José Carlos Moreira da Silva Filho para pensar os diversos aspectos das violências cometidas nesse período.
Para o professor, além da dimensão familiar, que diz respeito aos integrantes de cada família atingida pelas atrocidades da ditadura, essas histórias também pertencem ao país, fazem parte da construção da identidade do Brasil. “Há sempre uma tentativa de privatizar essas violências praticadas pelo Estado. A sociedade brasileira tem também a dificuldade de se apropriar do que é público, de se sentir parte dele. Nesse caso específico da violência na ditadura, tende-se a reduzi-la a um problema moral pessoal. Por exemplo, já ouvi discursos do tipo: ‘se alguém foi perseguido pelo sistema é porque alguma coisa de errado fez’. Pensar dessa forma é uma distorção, é desconsiderar o contexto da época”, ressaltou durante sua conferência “A justiça de transição no Brasil e América Latina”, na última terça-feira, 15-09-2015.
A conferência integrou a programação do III Colóquio Internacional IHU | VI Colóquio Cátedra Unesco – Unisinos de Direitos Humanos e violência, governo e governança. A justiça, a verdade e a memória na perspectiva das vítimas. A narrativa das testemunhas, estatuto epistêmico, ético e político, que aconteceu no campus da Unisinos em São Leopoldo.
De acordo com José Carlos Moreira da Silva Filho, os acontecimentos do período da ditadura, e de outros momentos históricos do Brasil, reverberam ao longo do tempo e atingem a toda a sociedade. “Não é porque você não tem envolvimento direto, ou não conhece essa realidade, que essas coisas não aconteceram e que esses atos deixam de repercutir na sua vida. É muito comum se perceber esse tipo de atitude na juventude, o desconhecimento dessa história” constata. E ainda completa, “essa é a importância dos depoimentos das vítimas da ditadura: resgatar a história e sensibilizar a sociedade para uma narrativa que teve sua construção truncada, silenciada, boicotada”.
É o que o professor define como “dever de memória”, o regate histórico e investigativo com o objetivo de garantir que as violações cometidas na ditadura não se repitam no país. “O olhar das vítimas é indispensável, fundamental para isso. Suscitam uma dimensão política necessária à sensibilização social e ressignificação dessas experiências” explica.
Um importante instrumento para reunir os testemunhos sobre o período ditatorial brasileiro, sobretudo as memórias das vítimas, é a Comissão Nacional da Verdade. A partir da comissão instaurada em instância nacional, inúmeras outras foram criadas em níveis estadual, municipal e setorial, como as comissões sindicais, da Organização dos Advogados do Brasil, as universitárias e outras. Os trabalhos desses grupos desenvolvem suas investigações e buscam os testemunhos de maneira independente e muitos deles subsidiam a Comissão Nacional da Verdade com seus dados.
Carlos Frederico Guazzelli Foto Leslie Chaves |
Conforme explica o professor Carlos Frederico Guazzelli, “a Comissão Nacional da Verdade não tem poderes judiciais e policiais. Foi criada a partir das pressões sociais para dar subsídios para a justiça. Essa e as demais comissões foram formadas para recolher a verdade histórica, sensibilizar a sociedade, dar embasamento e criar as condições que propiciem o julgamento na justiça”. Durante a segunda conferência da tarde no evento, intitulada “A justiça, a verdade e a memória – Comissão Estadual da Verdade”, Guazzelli contou sua experiência como coordenador da Comissão da Verdade do Rio Grande do Sul e a importância desse trabalho no país.
Para o professor, a partir das Comissões da Verdade houve um impulsionamento da justiça de transição no Brasil, e na comissão gaúcha esse trabalho incluiu outra importante passagem histórica. “No Rio Grande do Sul o trabalho da Comissão da Verdade, além do período da ditadura, abrange também as perseguições políticas ocorridas durante o movimento da Legalidade. Progressivamente foi sendo construído um sistema autoritário quase autônomo que teve seus primórdios na Legalidade e se desenvolveu e fortaleceu na ditadura. Dois anos antes do golpe militar já estava se instaurando a estrutura repressiva no Estado”, explica.
Segundo Guazzelli, com as apurações feitas pela Comissão Nacional da Verdade foram colhidos novos dados e se confirmaram outras informações sobre o modo de organização militar na ditadura. “Os militares brasileiros herdaram a logística de castigos aos negros escravizados, aperfeiçoaram seus métodos nos Estados Unidos e transmitiram as técnicas para outros oficiais da América Latina. Assim, o Brasil tem um cabedal de informações sobre tortura. Em muitos países, como a Argentina, a maioria das vítimas da ditadura acabou sendo morta, então não houve testemunhos sobre como se davam as torturas, que tipos de instrumentos eram utilizados. Já no Brasil, apesar de também ter havido mortes, há muitos sobreviventes dessas violências”, ressalta.
“Nos depoimentos as vítimas podem e devem expor sua memória afetiva e emocional, carregadas do sofrimento de quem passou pela tortura”, salienta o professor Carlos Frederico Guazzelli sobre a função daComissão Nacional da Verdade, que não é fazer uma investigação policial, mas sim costurar os fragmentos das memórias das pessoas que passaram pela violência da ditadura, sensibilizar a sociedade e preparar um terreno favorável que propicie e fomente o trabalho da justiça.
“Esse não é um assunto transitório, é um assunto perene. A memória abre expedimentos que a história deu por encerrado, é o alimento político. No Brasil temos muitos entulhos autoritários a serem superados, mas já conquistamos muitos avanços”, aponta José Carlos Moreira da Silva Filho.
A respeito das políticas e justiça de transição, Guazzelli destaca que “são instrumentos relativamente novos ao procurar revelar as violações que aconteceram na ditadura, sem jogar para debaixo do tapete a história. Buscamos organizar as informações que estavam dispersas nos arquivos públicos e na memória das vítimas. A verdade e a justiça são as bases para o caminho da conciliação”.
Conforme foi lembrado durante os debates das conferências, a História da humanidade não é linear, desse modo, todo esforço é fundamental para que se evite que as violências cometidas na ditadura não se repitam e se busquem trilhas de promoção da paz na contemporaneidade.
“Os custos do progresso vão aumentando e muitas coisas têm sido incluídas nele. Mas precisamos parar isso, temos que construir outra sociedade. Não podemos ter uma sociedade de repetição. Não sabemos aonde vamos, mas sabemos que não podemos repetir os erros e precisamos urgentemente construir caminhos para uma realidade diferente. Os depoimentos das vítimas da ditadura ajudam a experienciar esse testemunho e a partir disso assumir um novo caminho a percorrer para construir uma sociedade que dê reparação às vítimas. Nós temos que fazer isso, essa transição para uma sociedade melhor, com uma ideologia axiomática”, provocaJosé Carlos Moreira da Silva Filho.
Quem são os conferencistas:
José Carlos Moreira da Silva Filho é doutor em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná – UFPR. Também é mestre em Teoria e Filosofia do Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC e bacharel em Direito pela Universidade de Brasília – UnB. Atua como professor na Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS (Programa de Pós-graduação em Ciências Criminais – Mestrado e Doutorado - e Graduação em Direito). Ainda é conselheiro e Vice-Presidente da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, coordenador do Grupo de Estudos CNPq Direito à Verdade e à Memória e Justiça de Transição e membro-fundador do Grupo de Estudos sobre Internacionalização do Direito e Justiça de Transição – IDEJUST.
Carlos Frederico Guazzelli é defensor público aposentado da 5ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul e ex-professor universitário. Atuou como coordenador da Comissão da Verdade gaúcho durante todos os trabalhos, entre os anos de 2012 e 2014.
Por Leslie Chaves
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