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sexta-feira, 18 de setembro de 2015

O acerto de “faz de conta” com o passado

"O que houve entre ditadores e os que lutavam contra a ditadura, foi um grande acordo para uma suposta reabertura democrática.


Neste acordo firmado, os interesses eram comuns e convergentes, pois garantiu-se que continuassem usufruindo e desfrutando das benesses, privilégios, impunidade, da corrupção institucionalizada, e da exploração  da boa-fé do povo brasileiro.


Agora provam do próprio veneno, afinal este acordo sem o aval e legitimidade popular mais cedo ou tarde iria ser rompido pela verdade histórica dos fatos, afinal se revelou que, a exceção dos que morreram pela causa, os demais lutavam pelo poder". José Luiz Barbosa, Sgt PM - RR. 





Jair Krischke destaca que, de fato, o Brasil “ainda não fez o seu ‘acerto de contas’ com o passado ditatorial civil e militar”. Para ele, o trabalho da Comissão da Verdade foi “frustrante”



Por: Márcia Junges e João Vitor Santos


Conhecer o passado para, através dele, entender o presente e projetar uma ideia de futuro. Esse é um princípio básico da História. Porém, na do Brasil sempre houve uma sombra em tudo que cerca o período da Ditadura Militar, de 1964 a 1985. Somente em 2012 o país mostrou disposição para iluminar esse período da história e encarar seus fantasmas com a instalação da Comissão Nacional da Verdade. O problema é que, na opinião do presidente do Movimento de Justiça e Direitos Humanos do Rio Grande do Sul, Jair Krischke, a luz foi fraca e os fantasmas continuam a assombrar. “O Brasil ainda não fez o seu ‘acerto de contas’ com o passado ditatorial civil e militar. A Comissão Nacional da Verdade foi absolutamente frustrante em seu relatório final”, destaca.

Jair Krischke ainda critica o posicionamento brasileiro. “Em matéria de Justiça Transicional, o Brasil vive uma enorme contradição: no meio acadêmico, temos uma excelente produção intelectual sobre o tema e um pequeno mas extraordinário grupo de jovens Procuradores Federais que buscam fazer valer a justiça. Mas, na esfera do judiciário federal, nos deparamos com uma barreira quase que insuperável”, argumenta.

Na entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, Krischke ainda recupera a Operação Condor e relaciona as ditaduras em países vizinhos ao Brasil. Relação que, na opinião dele, se deu somente na ocasião das operações de repressão (ações bilaterais) e que hoje coloca o Brasil em outra situação. “Diferentemente, na Argentina, Uruguai e Chile, vemos um número bastante significativo de militares e policiais já cumprindo largas sentenças, algumas de prisão perpétua. Que inveja”, destaca.

Jair Krischke é ativista dos direitos humanos. Atua no Brasil, Argentina, Uruguai, Chile e Paraguai. Em 1979, fundou, juntamente com um grupo de homens e mulheres solidários, inclusive alguns jesuítas, a primeira organização de direitos humanos do Brasil, que passou a chamar-se Movimento de Justiça e Direitos Humanos, da qual hoje é o presidente.
Confira a entrevista.

IHU On-Line – O que é a justiça transnacional? Quais são suas premissas fundamentais?

Jair Krischke - Segundo tenho entendido, não se trata de Justiça transnacional, mas sim de jurisdição extraterritorial. Vejamos esse exemplo de processo que tramita na Justiça Penal de Roma. Segundo a constituição da Itália, os crimes em que as vítimas possuam a cidadania italiana, mesmo que ocorridos fora do território nacional, serão julgados segundo a lei penal do país. No caso, são 23 vítimas que detinham a condição de itálo-argentinos e itálo-uruguaios. Os réus são 38, dois bolivianos, quatro peruanos, 12 chilenos, 17 uruguaios, três brasileiros (originalmente eram 13) acusados pelos crimes de homicídio, massacre e sequestro com desaparição.
Em relação ao Brasil, trata-se de dois casos clássicos de “Operação Condor”, sendo vítimas: Horácio Domingo Campiglia , desaparecido no dia 12/03/1980 em pleno aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro; Lorenzo Ismael Viñas , desaparecido no dia 26/06/1980, em Uruguaiana, no Rio Grande do Sul. Os réus brasileiros são: Marco Aurélio Da Silva Reis, delegado de Polícia (aposentado) então Diretor do DOPS/RS; João Osvaldo Leivas Job, coronel do Exército, então Secretário de Segurança; Carlos Alberto Ponzi, coronel do Exército e Attila Rohrsetzer, coronel do Exército, então Diretor da Divisão Central de Informações.
No próximo mês de outubro, na condição de testemunha, deverei prestar declarações a Justiça Penal em Roma, dando continuidade ao trabalho de assessoramento e colaboração, que venho desenvolvendo desde dezembro de 1999. Foi neste ano que prestei um primeiro depoimento ao Procurador da Justiça Penal da Itália, Giacarlo Capaldo, na Embaixada da Itália em Buenos Aires.
Como as vítimas estão desaparecidas, são os seus familiares que, ao longo dos anos, buscam verdade e justiça, já que em seus países, isso lhes foi negado. O processo iniciou-se em 1999, fruto da luta desenvolvida pelos familiares, sendo que, pela demora, muitos já faleceram.

IHU On-Line – E o que é a justiça transicional?

Jair Krischke - Para melhor responder, me socorro do que nos ensina a organização das Nações Unidas - ONU: A justiça de transição é conceituada como o conjunto de abordagens, mecanismos (judiciais e não judiciais) e estratégias para enfrentar o legado de violência em massa do passado. Isto para atribuir responsabilidades, para exigir a efetividade do direito à memória e à verdade, para fortalecer as instituições com valores democráticos e garantir a não repetição das atrocidades .

IHU On-Line - Em que medida essa justiça presta o devido respeito e respaldo jurídico às vítimas?

Jair Krischke - É consenso na doutrina internacional que não existe um modelo único para o processo de justiça de transição. Este se revela como um processo peculiar, no qual cada país, cada sociedade, precisa encontrar seu caminho para lidar com o legado de violência do passado e implementar mecanismos que garantam a efetividade do direito à memória e à verdade e não somente o direito à reparação econômica.
Porém, de modo sistemático, a Comunidade Internacional e a doutrina mencionam quatro obrigações do Estado:
a) adotar medidas razoáveis para prevenir violações de direitos humanos;
b) oferecer mecanismos e instrumentos que permitam a elucidação de situações de violência;
c) dispor de um aparato legal que possibilite a responsabilização dos agentes que tenham praticado as violações; e
d) garantir a reparação das vítimas, por meio de ações que visem à reparação material e simbólica .

Em matéria de Justiça Transicional, no Brasil, vivemos uma mera ficção. Com enormes dificuldades e deixando muito a desejar, apenas logramos reparar algumas vítimas.

IHU On-Line - Qual é a posição da justiça transicional acerca da Operação Condor ?

Jair Krischke – Salvo no Brasil, o entendimento é de que se trata de crime de lesa humanidade (imprescritível e insuscetível de graça ou benefício), com caráter de crime internacional. E, ainda, podendo ser julgado pela justiça de qualquer país que tenha firmado convenções que tratem do tema. Na contramão da história, nosso Supremo Tribunal Federal, desconhecendo a jurisprudência internacional vigente, decidiu que a Lei de Anistia  alcançou, de igual modo, os agentes de estado, quer sejam civis ou militares.

IHU On-Line - Em que medida a justiça transicional resulta em reconciliação e na promoção de uma cultura de paz em nosso continente?

Jair Krischke - Não nos é permitido, sob hipótese nenhuma, banalizar o sentido da reconciliação. Faz-se necessário levar em conta que o exercício da reconciliação sempre nos trará exigências fundamentais: o reconhecimento do crime por parte do perpetrador e, em sequência, o pedido de perdão à vítima, com a consequente punição pelo crime praticado. A vítima sempre terá o direito de perdoar ou não. É uma questão de foro íntimo. Não temos conhecimento de nenhum militar dos países que formam o Cone Sul  de nossa América que tenham reconhecido seus muitos e hediondos crimes, pedindo publicamente perdão. Ao contrário, seguem sem manifestar qualquer gesto de arrependimento. Alguns, até de forma atrevida, tentam justificar as injustificáveis violências cometidas.

IHU On-Line - Sendo um crime de lesa-humanidade, como a justiça transicional lida com a tortura perpetrada pelo terrorismo de Estado, cujos agentes continuam soltos?

Jair Krischke - É o caso brasileiro, onde, até os dias de hoje, a total impunidade tem a máxima vigência. Em decorrência, o Brasil se transformou, ao longo dos últimos anos, em um verdadeiro “ninho de repressores”, vindos da Argentina, Uruguai, Chile e Paraguai. Que vergonha.

IHU On-Line - Em linhas gerais, qual foi o papel brasileiro na Operação Condor?

Jair Krischke - Apoiado em farta documentação existente em nossos arquivos, afirmo que o aparelho repressivo brasileiro foi o verdadeiro criador da prática (busca no exterior) posteriormente batizada de “Operação Condor”. Mas, para melhor entender o tema, se faz necessário saber o que é a tão falada Operação Condor. Trata-se de um pacto secreto de cooperação clandestina entre os aparelhos de repressão das ditaduras existentes no Cone Sul. Através desta aliança, as ditaduras militares trocavam informações e prisioneiros, realizando operações conjuntas, absolutamente clandestinas, sem respeitar as normas internacionais e diplomáticas existentes .
Em dezembro de 1970, o Brasil deu início a esta prática, ao atuar em conjunto com o aparelho repressivo da Argentina. Foi o caso do sequestro em Buenos Aires do coronel do exército brasileiro Jefferson Cardin de Alencar Osório , seu filho e seu sobrinho.

Brasil e Chile

Um documento encontrado no DEOPS/SP , datado de 21 de agosto de 1975 (portanto, anterior à famosa reunião de Santiago do Chile), originário de Santiago e endereçado ao chefe do SNI , João Baptista Figueiredo , com cópias remetidas a Manuel Contreras , evidencia a conexão entre o SNI e alguns operativos militares chilenos, principalmente realizados na Europa.
No documento, Enrique Montero Marx , subsecretário do Interior do governo chileno, afirma que:
“[…] la decisión de la Junta de Gobierno de Chile de aceptar su propuesta para unificar las actividades de nuestros servicios de inteligencia, la DINA por parte de Chile y el SNI por parte de su país, actualmente desenvueltas en la Península Ibérica […] El territorio español se mantendrá bajo nuestra entera responsabilidad: de igual forma, el territorio portugués estará a cargo de sus agentes, en este caso agentes del SNI. Esperamos que la colaboración ahora iniciada pueda extenderse a países como Francia, Italia y Suecia, donde las actividades subversivas de importantes grupos ya preocupan a nuestro gobierno.”
Todas essas práticas colaboracionistas e de cooperação foram realizadas antes da implantação formal da Operação Condor. Operações que foram o ponto máximo de intercâmbio entre as forças repressivas do Cone Sul, o que elevaria o alcance do terrorismo de Estado que assolava a região a proporções mundiais.

Operação Condor subdividida em três fases

1 - Troca de informações entre os aparelhos de repressão dos países membros, com o objetivo de monitorar pessoas e grupos ditos subversivos, perseguidos em seus países. Ao mesmo tempo, criaram um fantástico banco de dados.
2 – Ações concretas contra alvos suspeitos, ou seja, os ditos subversivos, nos seis países membros. Assim, acabaram produzindo perseguições, prisões, torturas, sequestros, mortes e desaparecimentos.
3 – Ampliação das operações em países da Europa, onde muitos militantes políticos e sindicais buscaram refúgio. A ação proposta era unicamente a de executá-los. Tal tipo de ação se estendeu até os Estados Unidos da América, sendo o caso emblemático o assassinato de Orlando Letelier , em Washington, em 21 de setembro de 1976.

IHU On-Line - Quais são os reflexos da Operação Condor e sua mentalidade na América Latina e, sobretudo, no Brasil?

Jair Krischke - A chamada “Operação Condor”, desde seus primórdios, serviu para consolidar a cumplicidade entre os aparelhos repressivos de nossa região. Prática criminosa que permanece até os dias atuais. Acabando por inculcar nos países da região a certeza da impunidade. No Brasil, marcou o envolvimento do Itamaraty, no aparelho repressivo brasileiro, através do Centro de Informações do Exterior - CIEx , organismo totalmente clandestino no organograma do Ministério de Relações Exteriores.

IHU On-Line - Considerando o cenário político latino-americano, no qual há inúmeros governos de esquerda atualmente, acredita que há uma “preocupação” comum como aquela que inspirou e norteou a Operação Condor?

Jair Krischke - Observando atentamente o cenário político latino-americano, não vejo nenhum governo claramente de esquerda. Tanto é verdade que se passou a utilizar o eufemismo de “governo-progressista”... O que não se sabe muito bem do que se trata.
Chamar este período político como sendo de “transição” é um engodo. Na verdade, em maior ou menor grau, trata-se de governos de “transação”, ou seja, o resultado dos acordos celebrados com os militares. No caso do Brasil, poderíamos, sem medo de errar, dizer: eles apenas desocuparam a praça.

IHU On-Line - Por outro lado, em que sentido os governos de esquerda na América Latina reproduzem a lógica da repressão típica dos governos totalitários de direita?

Jair Krischke - Os governos ditos “progressistas”, de alguma maneira, mantêm inalterados muitos dos chamados “entulhos autoritários”. No caso brasileiro, o mais escandaloso deles é a existência das chamadas “Polícias Militares”. Estas, lamentavelmente inseridas em nossa “Constituição Cidadã”, num claro exercício de “copia e cola”, tudo originário do decreto-lei da ditadura.

IHU On-Line - Qual é a situação dos documentos microfilmados no Comando Militar do Sul ? Estão disponíveis para consulta? A Comissão Estadual da Verdade teve acesso a eles?

Jair Krischke - Na verdade, trata-se dos arquivos do DOPS/RS , “queimados” publicamente em maio de 1982. Sendo governador José Amaral de Souza  e Secretário de Segurança o cel. Leivas Job . Uma grande farsa por nós denunciada, provando que os referidos documentos haviam sido microfilmados e levados para o Comando Militar do Sul, local onde ainda hoje se encontram. É o que é possível ver na reprodução da Revista Veja de julho de 1985.
Assim, quando o governador Tarso Genro criou, por decreto, a Comissão Estadual da Verdade, um jovem jornalista da Rádio Guaíba me entrevistou, buscando saber minha opinião a respeito. Na ocasião, disse ao jornalista que aplaudia a iniciativa e, certamente, seria a grande oportunidade para a referida comissão ir até o Comando Militar do Sul, resgatando os arquivos do DOPS/RS, que lá se encontram indevidamente. Especialmente por tratar-se de um acervo histórico da maior relevância, visto a existência dos registros referentes ao Estado Novo , bem como o monitoramento dos nazistas no Rio Grande do Sul, durante a Segunda Grande Guerra.
Com a informação, o jovem jornalista foi até o referido Comando. Lá, um coronel confirmou a existência do mesmo. No dia seguinte, liguei para o jornalista para cumprimentá-lo, ocasião em que o mesmo me pediu sugestões, buscando aprofundar a matéria. Sugeri que procurasse o senhor governador, buscando saber quais as providências que seriam tomadas. Para nosso desconcerto, o governador atribui à Comissão Nacional da Verdade a tarefa de resgatar o falado arquivo. Entendia ser matéria de cunho federal, o que não seria de sua competência.
Em meu depoimento à Comissão Nacional da Verdade, iniciei falando sobre arquivos, especialmente os do nosso DOPS, que de forma indevida se encontram no Comando Militar do Sul, aproveitando a ocasião para pleitear o seu resgate. Como é sabido, nada aconteceu.

IHU On-Line - Por que demorou tanto para o Brasil fazer o seu “acerto de contas” com o passado ditatorial civil e militar?

Jair Krischke - No meu pobre e limitado entendimento, o Brasil ainda não fez o seu “acerto de contas” com o passado ditatorial civil e militar. A Comissão Nacional da Verdade foi absolutamente frustrante em seu relatório final. Para ser justo, o melhor de seu trabalho foram as 29 recomendações. Dignas de serem aplaudidas de pé.

IHU On-Line - Gostaria de acrescentar algo?

Jair Krischke - Em matéria de Justiça Transicional, o Brasil vive uma enorme contradição: no meio acadêmico, temos uma excelente produção intelectual sobre o tema e um pequeno mas extraordinário grupo de jovens Procuradores Federais que, com muita dedicação e qualidade, buscam fazer valer a justiça. Mas, contrariamente, na esfera do judiciário federal, nos deparamos com uma barreira quase que insuperável. Diferentemente, na Argentina, Uruguai e Chile, vemos um número bastante significativo de militares e policiais já cumprindo largas sentenças, algumas de prisão perpétua. Que inveja. ■

Leia mais...
“A Polícia Militar é uma invenção da ditadura”. Entrevista com Jair Krischke, publicada nas Notícias do Dia de 16-06-2014, no sitio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU;
Operação Condor: novas revelações. Entrevista com Jair Krischke. publicada nas Notícias do Dia de 24-03-2013, no sitio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU;
"A Lei de Anistia é uma autoanistia". Entrevista com Jair Krischke, publicada nas Notícias do Dia de 25-05-2012, no sitio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU;
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PNDH-3. Verdade, justiça e reparação. Entrevista com Jair Krischke, publicada nas Notícias do Dia de 09-01-2010, no sitio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU;
Os 30 anos da anistia no Brasil. Entrevista com Jair Krischke, publicada nas Notícias do Dia de 31-08-2009, no sitio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU;

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