VIOLÊNCIA EM SÃO PAULO
A situação em São Paulo parece ser conhecida de todos somente pelo que revelado pela imprensa. Este incremento do número de homicídios infelizmente parece recente demais para a produção de investigações que possam captar alguma hegemonia de sua origem. Vale perguntar: facções rivais disputando territórios (o que implica na morte de pessoas estranhas ao conflito entre a Polícia e grupos criminosos organizados)? Uma extensa organização voltada para o assassinato de policiais? É possível identificar uma única origem organizacional ou as causas estão fragmentadas?
Essas perguntas —que não parecem estar ainda respondidas com certa tranquilidade— são fundamentais para o começo de uma conversa sobre a aplicação de algo diferente do que se tem à mão no ordenamento jurídico-penal. Mesmo assim, ainda que estejamos sob situação de ataques contínuos e sistêmicos de uma única fonte criminosa organizada, o emprego de uma ordem jurídica excepcional — como a Lei de Segurança Nacional — parece inadequada.
A Lei de Segurança Nacional não define o terrorismo. Está em vigor, pode ser aplicada caso alguém cometa algum delito definido nela, mas não define a prática de terrorismo. O artigo 20 da Lei menciona condutas e práticas análogas ao terrorismo e o próprio terrorismo como crimes passíveis de penas entre 3 e 10 anos. No entanto, a escalada da violência fatal em São Paulo não parece, ao menos segundo os indicativos, enquadrar-se em atos que causem lesão ou potencial lesão à “integridade territorial e a soberania nacional”, ao “regime representativo e democrático, a Federação e o Estado de Direito” ou “à pessoa dos chefes dos Poderes da União”, como descrito no artigo 1º, incisos I, II e III da LSN. É que esses bens jurídicos dirigem a interpretação sobre o alcance da lei: somente nas hipóteses previstas é que se pode falar em aplicação da Lei 7.170/1983. A Lei inclusive define, expressamente, os delitos contra a Segurança Nacional, não cabendo interpretação extensiva. De mais a mais o próprio ato de terrorismo, punido pela respectiva Lei, é somente aquele praticado por “inconformismo político”, o que não parece ser o caso.
Vale dizer: policiais e seus familiares lamentavelmente podem — por força da atividade que exercem — ficarem expostos a diferentes graus de risco de retaliação de grupos mais ou menos organizados e mesmo de indivíduos isolados. O atentado a policiais, obviamente, agride também a instituição, mas não significa uma ameaça à sua existência ou à existência da organização estatal que a polícia compõe. O que se tem é um incremento de ameaças e atentados que nunca deixaram de ocorrer e continuarão existindo enquanto subsistirem organizações criminosas armadas e com poder de comando sobre comunidades inteiras. O que se vê em São Paulo é o incremento de um confronto preexistente.
Falar de terrorismo, em específico, também é inadequado. Não só pela carência de especificação do que seja o terrorismo, mas porque a mais próxima definição possível (a derivada do Decreto 5.640 de 2005, que promulgou a Convenção Internacional das Nações Unidas para Supressão do Financiamento do Terrorismo) não tem alcance suficiente para permitir esse enquadramento à crise experimentada na Grande São Paulo.[1]
Na linguagem da definição de terrorismo pela Convenção da Nações Unidas, seria necessário que a violência se voltasse contra pessoas estranhas ao confronto (quer dizer, Polícia não vale), com o propósito de intimidar a população (a intimidação parece contra policiais). Além disso, não se tem ao certo qual mudança ou revolução pretendida com as retaliações.
A questão, portanto, não é de segurança nacional, é de segurança pública.
O aparato legislativo para o combate às organizações criminosas já existe, sobretudo através da Lei 9.034/1995 e a recente 12.694/2012, esta última prevendo a formação de colegiados para decisões em processos que envolvam organizações criminosas, bem como medidas cautelares patrimoniais mais graves contra os bens de que se suspeita obtidos pela atividade da organização.
A questão, portanto, se aproxima muito mais do adequado controle da gestão de segurança pública (com as leis que já existem) do que da tarefa de repensar uma legislação já em vigor ou criar uma nova.
Daí, algumas questões sobre a implementação do aparato normativo já existente: se as tais organizações criminosas articulam-se a partir de ligações telefônicas no interior de estabelecimentos prisionais, houve alguma preocupação em direcionar o aparato policial/judicial para, nestes casos, fazer uso da Lei de Interceptações Telefônicas, cujo uso é corriqueiro? A introdução de celulares em estabelecimentos prisionais já não está tipificada? Tem papel a inteligência policial na investigação e prevenção desses atentados? O efetivo policial está devidamente treinado, posicionado e protegido? Os centros de irradiação dos comandos podem ser detectados? A resposta a essas questões não depende de lei e não está na lei. Está na gestão do instrumental que já existe.
Portanto, as graves questões de segurança pública devem ser resolvidas no interior do aparato processual penal, penal e constitucional que dá conta das condições em que se assentou a gravidade dos fatos, sem a necessidade de invocação de comandos excepcionais como os previstos na Lei de Segurança Nacional (inaplicável ao caso) ou a invocação do conceito de terrorismo (inviável por sua própria definição).
Por fim, em caso de incapacidade da Unidade da Federação em obter uma mínima condição de sobrevivência à ordem pública, autoriza-se a intervenção federal (artigo 34, III da CF), tudo sem a necessidade de novas (e quase sempre perigosas) formulações normativas.
[1] 1. Qualquer pessoa estará cometendo um delito, em conformidade com o disposto na presente Convenção, quando, por qualquer meio, direta ou indiretamente, ilegal e intencionalmente, prover ou receber fundos com a intenção de empregá-los, ou ciente de que os mesmos serão empregados, no todo ou em parte, para levar a cabo:
a) Um ato que constitua delito no âmbito de e conforme definido em um dos tratados relacionados no anexo; ou
b) Qualquer outro ato com intenção de causar a morte de ou lesões corporais graves a um civil, ou a qualquer outra pessoa que não participe ativamente das hostilidades em situação de conflito armado, quando o propósito do referido ato, por sua natureza e contexto, for intimidar uma população, ou compelir um governo ou uma organização internacional a agir ou abster-se de agir.
Fabrício Campos é advogado, sócio do escritório Oliveira Campos Advogados e conselheiro da OAB-ES.
Conceição Aparecida Giori é advogada, sócia do escritório Oliveira Campos & Giori Advogados.
Revista Consultor Jurídico,
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