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O verdadeiro desafio não é inserir uma idéia nova na mente militar, mas sim expelir a idéia antiga" (Lidell Hart)
Um verdadeiro amigo desabafa-se livremente, aconselha com justiça, ajuda prontamente, aventura-se com ousadia, aceita tudo com paciência, defende com coragem e continua amigo para sempre. William Penn.

terça-feira, 22 de janeiro de 2013

Tomemos a sério o princípio da separação de poderes


CONSTITUIÇÃO E PODER


Em qualquer discussão racional, sempre o mais difícil é confrontar o óbvio e o que foi posto fora de discussão. Alguém já disse que, ao nos colocarmos diante de algo que consideramos evidente, as coisas parecem merecer a nossa confiança de tal forma que esquecemos de perguntar, ainda que seja verdade, o que é que sabemos sobre aquilo.

No Brasil, por exemplo, todos comungamos da ideia de que deve prevalecer em todo Estado democrático de Direito o princípio da separação de poderes. Mas o quanto sabemos sobre o que esse princípio realmente significa, não apenas como distinção funcional de competências entre os órgãos do Estado, mas também como princípio que governa a interpretação das leis, isso já é algo bastante problemático.
A separação de poderes não é um princípio que se possa mitigar ou desconsiderar sem maior consequência. É tão importante, que, além da chamada “Separação Horizontal de Poderes” (Executivo, Legislativo e Judiciário), fala-se hoje em diversas conformações desse princípio. Assim, existiria uma “Separação Temporal de Poderes”, para designar a necessidade de limitar-se temporalmente o exercício de poderes pelos agentes públicos; fala-se de uma “Separação Vertical de Poderes”, para explicitar a necessária divisão territorial de competências, sobretudo, no Estado federal; e fala-se também de uma “Separação Social de Poderes”, para designar a divisão de poderes entre os diversos agentes, mídia, associações, partidos e grupos sociais, todos podendo disputar com igualdade de chances o poder estatal.
Separação de poderes e interpretação constitucional
Nada obstante, como professor de Direito, ex-membro do Ministério Público e agora magistrado, sou levado, pela experiência, a acreditar que no Brasil o princípio da separação de poderes tem cada vez mais pouquíssimo respeito. Explico-me melhor.

Martin Kriele advertia que, apesar dos esforços por uma neutralidade científica, toda interpretação do Direito Constitucional padece de uma das destas três seguintes orientações fundamentais: (1) ou a interpretação da Constituição, por assim dizer, mostra-se amiga do Poder Executivo (verwaltungsfreundliche); (2) ou é mais amiga do Legislativo (parlamentsfreundliche); ou (3) há uma clara preferência pela preponderância do Poder Judiciário (justizfreundliche).
De fato, nem se pode dizer que haja algo de extraordinário quando o intérprete se afeiçoa mais a uma ou outra dessas orientações. Nos Estados Unidos, em muitas matérias, sobretudo vinculadas à ideia de segurança (interna ou externa), não é difícil reconhecer uma certa preponderância da Jurisdição Constitucional em favor, como diria o professor Canotilho, de um discurso “antropologicamente” amigo do Executivo.
Na Europa, de forma geral, desde a Revolução Francesa, há uma clara predominância do Poder Legislativo. No Brasil, a julgar pelo que vemos nos tribunais e é reforçado teoricamente na Academia, há uma clara orientação da interpretação constitucional em favorecer soluções que façam preponderar o papel do Poder Judiciário. Não é à toa que temas como “ativismo judicial” e “judicialização da política” estejam tão prestigiados.
Como se dizia, nada disso é muito extraordinário e indica, em si, algum problema ou crise constitucional de intensidade mais acentuada. O problema apenas torna-se grave quando a interpretação da Constituição é completamente subvertida para atender ao interesse do intérprete de ver prevalecer a posição de um dos três poderes constitucionais.
Assim, por exemplo, o procurador do Estado, por mais que pretenda defender os poderes da administração pública, não pode negar alguma esfera de intervenção do Poder Judiciário nas escolhas e decisões eventualmente dispostas num ato administrativo. O magistrado, por sua vez, por mais que entenda necessária a intervenção do Poder Judiciário, mesmo em escolhas de natureza política, do Executivo e do Legislativo, não pode negar, sob pena de nada remanescer do princípio da separação de poderes, que haverá sempre alguma esfera de liberdade que a Constituição indiscutivelmente outorga à avaliação política dos demais poderes.
Hoje, no Brasil, de forma positiva, é fato que remanesce nas escolas de Direito pouca dúvida quanto ao poder de intervenção do Judiciário nas decisões dos demais poderes. Contudo, não se pode entrever a mesma (auto)compreensão quando se cuida de aceitar que, da mesma forma, há no regime de separação de poderes espaços de liberdade para atuação da administração pública e do legislador. Com efeito, a acreditar no que se diz por aí, todo o esforço que os juristas têm desenvolvido, no âmbito sobretudo do Direito Administrativo, para distinguir esferas de intervenção do Poder Judiciário não teria qualquer sentido, pois bastaria afirmar que o Poder Judiciário pode, de tudo e em tudo, perscrutar e anular atos dos demais Poderes, não importa a extensão ou a profundidade.
Mais uma vez, fomos de um extremo a outro: de uma época em que não se admitia ao Judiciário qualquer intervenção na esfera de atuação dos outros poderes para o atual estágio, onde se afirma nada escapar à atuação (positiva ou negativa) pode poder dos tribunais. Não é, contudo, um problema exclusivamente brasileiro. Alguns autores alemães, preocupados com a desenvoltura de seu Tribunal Constitucional, não têm receio de falar de um Estado Judicial (Justizstaat) ou de um imperialismo dos direitos fundamentais exercido pelo tribunal constitucional(bundesverfassungsgerichtlichen Grundrechtsimperialismus).
Descontado algum exagero retórico, o fato é que não parece difícil defrontarmos com teorias que sustentam, velada ou abertamente, que hoje tudo o que Estado, ou a sociedade, faz ou promove pode ser “corrigido” pelo Poder Judiciário. Assim, não haveria escolhas políticas, não haveria liberdade de avaliação, não haveria possibilidade de adaptação do Direito ou do Estado à realidade. Tudo já se encontraria predisposto na Constituição, em todas as suas peculiaridades e especificidades, não havendo espaço para decisões do administrador ou do legislador. Esse totalitarismo constitucional também abarcaria esferas de liberdade da sociedade, como é o caso da família, da igreja e dos relacionamentos interpessoais.
Tudo se passa como se, juridicamente, o futuro não fosse mais do que um simples “vaticínio constitucional”, completamente predisposto, no passado, pelo Poder Constituinte, cabendo aos sacerdotes dos novos tempos (os magistrados) eventualmente desvelar, através de oráculos pleonasticamente infalíveis (sentenças e acórdãos), o perfeito sentido de sua vontade.
A Constituição, contudo, não é um livro sagrado, os tribunais não são templos, nem os juízes sacerdotes infalíveis. Em relação a tudo isso, além de bom senso, também deve prevalecer o princípio da separação de poderes.
As razões da separação de poderes
Aqui vou me permitir um truísmo: o poder e a força física (violência) são partes integrantes e mesmo essenciais das sociedades e dos Estados contemporâneos. De fato, nada indica que o Estado democrático de Direito possa prescindir de ambos os elementos -— não no estágio em que se encontra a humanidade, com sua instabilidade, com suas vicissitudes e defeitos. Aliás, nada na história indica que algum dia sociedades humanas organizadas poderão suportar-se sem alguma carga de poder, ou alguma presença de atos de força. Os mais elevados fins e valores de uma comunidade dificilmente podem ser realizados apenas com base na boa vontade e recíprocas concessões entre os indivíduos que a compõem. Nem sempre as pessoas, na realização de seus interesses pessoais, estão dispostas a ceder naquilo que, certas ou erradas, com boa ou má intenção, entendem ser o seu direito.

Em conhecida passagem de seu ensaio “A política como vocação”, Max Weber mostra-se totalmente de acordo com a conclusão de Trotsky em Brest-Litovsk[1] :“Todo Estado se fundamenta na força.” É claro, complementa Weber, que a força não é o único meio nem a forma normal de ação do Estado. Mas, diversamente do que acontecia no passado, em que outras instituições — como o clã — também conheceram legitimamente o uso da força, no presente, acentua Weber, podemos dizer que “o Estado é (a) comunidade humana que pretende, com êxito, o monopólio do uso legítimo da força física dentro de um determinado território”.
De fato, o Estado como o conhecemos caracteriza-se, não importa o fim a que se proponha, pelo monopólio legítimo do uso da força num dado território. Outras instituições poderão compartilhar o uso de poder, mas apenas quando autorizadas pelo Estado. O Estado contemporâneo, em contrapartida, acreditava Weber, se dissolveria naquilo que chamamos propriamente de “anarquia” caso não pudesse — em nenhuma circunstância — valer-se do uso legítimo da força.
Poder e força, portanto, são elementos inseparáveis da contemporânea definição e conformação do Estado. Entretanto, isso considerado, não se pode esquecer das mais célebres advertências do Barão de Montesquieu: (1) em primeiro lugar, todo aquele que tem poder tende a dele abusar e (2), em segundo lugar, o poder vai sempre até onde encontra limites.
Portanto, se não podemos negar ao Estado considerável parcela de poder e força física no desempenho de suas funções (M. Weber) e não podendo ser ingênuos quanto à tendência atávica dos indivíduos e das organizações humanas de concentrar e abusar do poder, impõe-se necessariamente para a conformação democrática do Estado alguma espécie de separação e de limitação de poder.
Como normalmente os agentes do Estado (juízes, administradores ou legisladores) acreditam que “separação de poderes” é um princípio que apenas existe para garantir os “nossos legítimos poderes” contra a “intervenção indevida” dos “outros” órgãos e agentes públicos, temos que acentuar que a advertência de Montesquieu se dirigia não contra esse ou aquele grupo, não contra esse ou aquele indivíduo, não apenas contra esse ou aquele órgão do Estado, mas contra qualquer indivíduo, qualquer grupo ou qualquer órgão do Estado, já que todos terão sempre a tendência, sempre e sempre, de acumular poder para dele, em seguida, abusar.
O perigo, pois, não parte apenas do Legislativo, ou apenas do Executivo ou mesmo do Judiciário. Qualquer órgão ou pessoa que tenha poder, aí incluído o Judiciário, ainda que movido pelas melhores intenções, necessariamente, buscará acumular e tenderá abusar desse poder acumulado. A propósito, na doutrina, fala-se hoje também abertamente, mesmo entre constitucionalistas de um quarto poder, consistente na indiscutível influência que a mídia exerce sobre a sociedade e o Estado (Vierte Gewalt — Massenmedien). Obviamente, também aqui o perigo do abuso, não podemos ser ingênuos, faz-se presente. Nenhum poder nasce imunizado do perigo do abuso.
No curso da História, foram experimentadas várias formas de separação de poderes. Contudo, a fórmula ideal em que o Poder Legislativo edita leis gerais e abstratas, o Poder Executivo executa as leis de ofício e o Poder Judiciário apenas julga os casos controvertidos, esse modelo ideal provavelmente jamais terá existido. Por isso fala-se hoje de cooperação ou mesmo de cruzamento de poderes (Gewaltenverschränkung), isto é, um regime onde muitas vezes (a) atos administrativos e sentenças revelam a eficácia geral e abstrata própria das leis, (b) enquanto maiorias do parlamento, ao invés de apenas fiscalizar e controlar, sustentam também o governo, sendo que, (c) em muitas experiências constitucionais, o Executivo e o Parlamento participam da formação dos órgãos de cúpula do Judiciário e assim por diante. Nesse regime de cruzamento ou de colaboração de poderes, os poderes do Estado reciprocamente influenciam e se sobrepõem. O importante será sempre que esses poderes permaneçam limitados e reciprocamente se imponham limites.
O Supremo Tribunal Federal, com efeito, já teve oportunidade de afirmar a garantia dos demais poderes frente a restrições eventualmente impostas ao exercício de suas funções. Assim, já deliberou que “as restrições impostas ao exercício das competências constitucionais conferidas ao Poder Executivo, entre elas a fixação de políticas públicas, importam em contrariedade ao princípio da independência e harmonia entre os Poderes.”[2]. De outro modo, na ADI 336, no voto do ministro Eros Grau, com base na separação de poderes, assegurou-se a liberdade de o Poder Legislativo fixar a proposta orçamentária[3].
Contudo, em outras manifestações, o princípio da separação de poderes foi, por assim dizer, mitigado para conferir-se maior extensão e profundidade à possibilidade de o Judiciário interferir na esfera de atuação e decisão dos demais poderes.
Por exemplo, ao discutir o instituto da “fidelidade partidária”, o Supremo não vislumbrou qualquer dificuldade em chancelar resoluções do Tribunal Superior Eleitoral que, abertamente, “interferem” em competências do Poder Legislativo. De fato, como tantas vezes lembrado pelo notável juspublicista Ruy Samuel Espíndola (por exemplo, neste artigo), é inquestionável o avanço que Justiça Eleitoral tem se permitido em competências do Legislador. Aliás, nesses casos, o próprio Tribunal reconheceu o caráter extraordinário da atuação do Judiciário ao editar essas resoluções, pois admitiu, expressamente, que, no contexto de ADIs que questionavam a constitucionalidade da atuação do Judiciário nessa matéria, “as resoluções impugnadas surgem em contexto excepcional e transitório, tão somente como mecanismos para salvaguardar a observância da fidelidade partidária enquanto o Poder Legislativo, órgão legitimado para resolver as tensões típicas da matéria, não se pronunciar”[4].
Com isso, em decisões até hoje mal digeridas pela maioria dos operadores que atuam no Direito Eleitoral (juízes, advogados e membros do MP), nossa Suprema Corte, impondo clara mutação na realidade constitucional brasileira (o texto constitucional jamais foi alterado), declarou constitucional a Resolução 22.610, que, além da “fidelidade partidária” como regra, que agora impunha aos agentes políticos perda de mandato por mudança de partidos políticos, surpreendentemente, criou competências e procedimentos que passaram a ser impostos de forma obrigatória à Justiça Eleitoral e ao Ministério Público Eleitoral. Como se sabe, essa é uma típica matéria reservada constitucionalmente à Lei Complementar (art. 121 e 128, § 5º, da CF/88).
Tudo isso observado, a menos que se negue qualquer limitação à atuação do Poder Judiciário, uma das grandes dificuldades da jurisprudência e da doutrina que afirmam, no âmbito do regime de separação de poderes, a possibilidade de o Poder Judiciário intervir para afastar, ou preencher, mesmo decisões de natureza eminentemente política dos demais poderes, é precisamente a de saber até onde o Judiciário poderá ir para atuar, por assim dizer, além de suas próprias fronteiras, sem que isso comprometa a sua própria condição de garantidor privilegiado do Regime Democrático e do princípio da separação de poderes.

[1] Max Weber: Ensaios de Sociologia. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos, Gerth, H.H. e C. Wright Mills, orgs. (1967), p. 55-56.
[2] (ADI 4.102-MC-REF, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgamento em 26.05.2010, Plenário, DJE 24.9.2010).
[3] (ADI 336, julgamento 10.2.2010, DJE de 17.9.2010).
[4] (ADI 2.999 e ADI 4.086, Rel. Min. Joaquim Barbosa, julgamento em 12.11.2008, Plenário, DJE de 17.4.2009).
Néviton Guedes é desembargador federal do TRF da 1ª Região e doutor em Direito pela Universidade de Coimbra.
Revista Consultor Jurídico

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