Maria Berenice Dias
Advogada
Don’t ask, don’t tell! Nada mais do que uma condenação à invisibilidade. Era a política
que vigorava nos Estados Unidos e que acabou excluindo do exército 14 mil militares que
assumiam sua identidade homossexual.
Revogada esta regra lá, parece que estão tentando impô-la aqui. Ao menos é o que
transparece de duas recentes decisões do STJ que, de modo para lá de surpreendente,
acabam de reconhecer uniões homoafetivas como meras sociedades de fato. Visando cumprir
“sua função uniformizadora”, a Terceira Turma cotejou decisões dos anos de 1998 e 2006, sem
atentar a tudo o que já foi julgado depois destas datas, inclusive pela mesma Corte que, no ano
de 2010, deferiu pensão por morte ao parceiro sobrevivente bem como concedeu a adoção a
um casal do mesmo sexo.
Assim indigitados julgamentos podem destruir tudo o que a
jurisprudência vem construindo ao longo de uma década, já tendo sido superado o número de
800 decisões.
O mais chocante é que o Relator, Desembargador convocado Vasco Della Justina, é
magistrado do Tribunal de Justiça gaúcho e integrava as Câmaras Especializadas que se
notabilizaram como as pioneiras no país em reconhecer como união estável a relação
homoafetiva.
No ano de 1999 o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul fez migrar para as Varas
de Família as ações envolvendo as uniões homossexuais.
Agora tal é a orientação dos
Tribunais de Justiça de Minas Gerais, São Paulo, Paraná, Espirito Santo, Mato Grosso, Mato
Grosso do Sul, Maranhão e Santa Catarina.
Também foi da justiça gaúcha a iniciativa de, no ano de 2000, admitir as uniões como
entidade familiar. Em face da omissão legal, por analogia, foram reconhecidas como união
estável. Este passou a ser o entendimento das justiças de Minas Gerais, Goiás, Rio Grande do
Norte, Ceará, Rondônia, São Paulo, Rio de Janeiro, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Bahia,
Maranhão, Santa Catarina, Alagoas e Pernambuco. Assim, além da homoparentalidade são
concedidos direitos sucessórios, assumindo o parceiro sobrevivente a inventariança e
desfrutando do direito real de habitação.
Outra não é a posição de todas as Regiões da Justiça Federal que de forma reiterada
asseguram ao parceiro pensão por morte, direito previdenciário, inscrição em plano de saúde,
visto de permanência e concedem indenização por dano moral.
Deste modo, não há como deixar de qualificar as decisões como discriminatórias, além
de contraditórias com a própria orientação do STJ, não guardando coerência sequer com as
manifestações de ministros do STF que vêm se manifestando de modo diametralmente oposto
à ora sufragada.
Ao depois, o próprio STF e o CNJ autorizam que os servidores incluam seus
companheiros nos planos de saúde e benefícios sociais.
1
STJ, Resp 704.803-RS e 633.713-RS, 3ª T., Rel. Min. Vasco Della Giustina (Desembargador convocado
do TJRS), j. 16.12.2010.
2
STJ, Resp 1.026.981- RJ, 3ª T., Relª. Min. Nancy Andrighi, j. 04.02.2010.
3
STJ, REsp 889.852-RS, 4ª T., Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 27.04.2010.
4
Decisões disponíveis no site: www.direitohomoafetivo.com.br
5
TJRS, AI 599 075 496, 8ª C. Cív., Rel. Des. Breno Moreira Mussi, 17.06.1999.
Ato Deliberativo 27 de 01.07.2009 do Supremo Tribunal Federal. Resolução 39/2007 de 14.08.2007 do Conselho Nacional de Justiça.
Cabe lembrar que o próprio Superior Tribunal Eleitoral reconheceu a inelegibilidade da
parceira homossexual, o que só pode ser sustentado se admitida a presença um vínculo de
natureza familiar. Mas esta não é a postura somente do Poder Judiciário.
O Poder Executivo tem
referendado em sede administrativa o que a justiça vem deferindo há longa data. Assim, a
possibilidade de inscrição do parceiro como dependente do imposto de renda, inserção como
dependente para efeitos previdenciários, concessão de visto de permanência e inclusão do
parceiro em plano privado de assistência à saúde e garantido o recebimento do seguro
DPVAT. No entanto, talvez o que mais evidencie o retrocesso das indigitadas decisões é
encobrirem indisfarçável preconceito.
Ver uma sociedade de afeto como mera sociedade de
fato revela nítida postura discriminatória, pois encobre o comprometimento afetivo que une os
parceiros. Ou seja, os condena à invisibilidade. Basta atentar à definição legal de sociedade de
fato para se aperceber do lamentável equívoco (Código Civil art. 981): Celebram contrato de
sociedade as pessoas que reciprocamente se obrigam a contribuir, com bens ou serviços, para
o exercício de atividade econômica e a partilha, entre si, dos resultados.
Ora, não há como
dizer que duas pessoas que se envolvem afetivamente e passam a viver juntas, partilhando
vidas e embaralhando patrimônio, têm por finalidade exclusiva o exercício de atividade
econômica para dividir resultados. E, se a relação é meramente obrigacional não haveria como
admitir que sócios adotem crianças, sejam admitidos como dependentes de planos de saúde
ou façam jus a pensão previdenciária por morte.
Pelo jeito a justiça resolveu encobrir novamente os olhos com o véu do preconceito.
http://www.justitia.com.br/
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