// Redação
Atualmente, não são apenas juízes e juízas que proferem sentenças condenatórias por todo Brasil. São também magistrados pessoas que, na clandestinidade, não só proferem suas sentenças, como também as executam com armas de fogo. Uma guerra infindável muitas vezes aplaudida pela população do país.
Bruno Paes Manso, pesquisador no Núcleo de Estudos de Violência da USP e jornalista, revela que “essa realidade é um sintoma do nosso sistema judiciário, incapaz de lidar com certos problemas”. Em entrevista ao Justificando, Manso aponta que a história é recente.“Em São Paulo, entre os 1980 e 1990, houve crise na indústria e no emprego, criando-se, na economia da cidade, uma opção de carreira ilegal. São carreiras criminais com suas normas, procedimentos, relações e regras que as mediam. São soluções que acabam aparecendo nesse contexto, e são desafios colocados para nós”, conta o pesquisador.
Carreiras que resultaram em novos desdobramentos. “O surgimento do esquadrão da morte, de grupos de extermínio da polícia militar, a própria Rota no início dos anos 70, continuam sendo ponderados de certa forma, como se essa fosse uma forma de controlar o crime, como se isso produzisse resultados e tornasse o mundo mais seguro”. Mas o tiro saiu pela culatra, levando-nos a um processo de recrudescimento da justiça. A celebração do extermínio.
O mapa se desenha em dois fronts. De um lado, grupos de extermínio da polícia utilizando a tecnologia como refúgio, onde os mais terríveis assassinatos são expostos em fotos por whatsapp e redes sociais. Nas mensagens que acompanham os retratos, a exaltação do bem contra o mal. Enfim jazem os cavaleiros do mal, os bandidos, os “malas”, aos quais devemos combater com punhos e lanças em riste. De outro, membros de facções comemoram a morte de agentes da Segurança Pública. A guerra corre dos dois lados e os juízes paralelos permanecem julgando.
Vamos ao estudo das práticas processuais desses tribunais:
5. O que é crime para a magistratura paralela?
A competência material do tribunal paralelo depende do ramo da atividade do juiz-executor. Se o juiz é um fazendeiro, geralmente crime é ocupar terras. Se um juiz é um membro de uma facção, crime pode ser traição, dívida, homicídio, ou estupro. Caso um juiz seja policial, em regra, sua luta é contra o tráfico de drogas ou aos crimes contra o patrimônio em geral. A ideia de crime para o policial se assemelha, muitas vezes, “à ideia de crime da população que pede por mais segurança e acredita numa luta do bem contra o mal, numa ‘limpeza da sociedade a partir do “extermínio de ‘bandidos'”, explica Paes Manso.
Às vezes, ainda, os crimes se cruzam e os tribunais acontecem em simultaneidade. Em setembro de 2012, por exemplo, integrantes do Primeiro Comando da Capital julgavam um integrante acusado de cometer estupro. Caso entendessem pela condenação, a morte do réu era inevitável. Enquanto debatiam sobre as provas e indícios de culpa, não contavam que a ROTA invadiria o tribunal para suscitar um conflito de competência e julgar ela mesma o fato. Ao todo, depois da interrupção no julgamento, outro foi iniciado e nove pessoas foram mortas, incluindo o réu e os juízes que iriam clandestinamente julgá-lo.
4. Quais são os princípios processuais penais e constitucionais dos acusados?
Geralmente, nenhum. Em alguns casos, o réu pode ter direito à uma discussão entre os juízes antes que sua sentença fosse proferida. Trata-se, ainda que de maneira rudimentar, do princípio da motivação das decisões judiciais.
O processo penal do Tribunal do PCC ainda concede, em alguns casos, o próprio direito de defesa e contraditório do acusado. Há alguns anos, a mídia vazou o áudio de um dos julgamentos da facção, em que juízes discutiam por celular (alguns deles estavam presos) qual a culpabilidade do acusado, que havia assassinado a tiros um homem. No entanto, antes disso, ouviram testemunhas, acusação e defesa. O julgamento durou 24 horas e o réu foi morto.
Ainda que os tribunais paralelos pareçam sempre executar a Lei de Talião, em alguns casos existe a proporcionalidade da pena. O pesquisador conta de um caso de um líder comunitário que, certo dia, encontrou alguns dos “muleques” do bairro consumindo maconha em frente a sua casa. Incomodado com a situação, foi reclamar com os garotos e levou um tapa no rosto – o que o levou a convocar um “debate” com membros do PCC. A pena definida? Dois tapas no rosto de cada menino.
Mas muitos tribunais resultam na pena covarde e eliminadora de diálogo. Esse é o caso daqueles cujos perfis são traçados coletivamente a partir do lugar onde moram, sua posição social, cor, etnia, etc. São os assassinados nas periferias, os quais têm seus direitos violados desde o momento em que nasceram. Ainda há aqueles que carregam um distintivo, um crime amoral nas costas ou uma dívida, informações suficientes para uma pena dura.
3. Onde se localizam os tribunais?
Os tribunais são descentralizados. Muitas vezes as ruas, os matagais, os becos não-habitados e os presídios são espaços de se fazer “justiça”. As vias telefônicas, surpreendentemente, também são locais de decisão. Não há burocracia. Se o julgamento precisar se alongar por mais tempo, não há problema; o que importa é a deliberação de uma sentença que agrade à todos. Ou apenas aos juízes. Toda hora é hora. O espaço do tribunal, em suma, é o de menos – só precisa ser mantido na clandestinidade.
2. Quem profere e executa a sentença?
Segundo Paes Manso, os juízes desses tribunais parecem ocupar posições muito diferentes. Para aqueles que julgam os crimes e dilemas das comunidades, juízes das facções, “existe, ao mesmo tempo, uma preocupação e uma tentativa de dar respostas inseridas naquele contexto em que eles estão vivendo”, uma vez que nesses locais e, somente neles, são sujeitos de prestígio social.
“O cara que vai fazer as reuniões segue os procedimentos locais e o bom senso é esperado dele. É uma posição de poder frágil, sujeita a retaliações. Então ele precisa tomar decisões inseridas no contexto; do contrário, ele vira um tirano, a ponto de alguém ligar para o 181 para denunciá-lo”, afirma o especialista em violência.
Já no caso dos grupos de extermínio, “eles agem como se representassem o estado, contra um grupo muito estereotipado e estigmatizado. Se colocam numa posição de poder muito mais inatingível, e muito mais desproporcional. Apesar de estarem sujeitos às leis, podem fazer o que bem desejarem desde que não deixem provas”, finaliza.
1. Porque eles são piores do que o Judiciário?
Hoje houve um enfraquecimento dos tribunais paralelos das facções, conta Manso. No entanto, dados revelam que os tribunais dos “representantes dos bons” seguem a todo vapor. Entre janeiro e novembro de 2014, 816 pessoas foram mortas por policiais militares no Estado de São Paulo, o que representa, em média, uma morte a cada 9,8 horas. No mesmo período, 69 PMs foram assassinados, no trabalho ou fora dele, o que totaliza uma morte a cada cinco dias. O que isso nos revela? Um imenso desejo punitivo, que não pretende reestabelecer nem restaurar, mas “limpar” a sociedade das más figuras, cujos contextos sócio-históricos são desconsiderados.
Natalie Garcia é redatora no Justificando.
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