Danilo Mekaril Um mapeamento realizado pela Coordenação de Direito à Memória e à Verdade (CDMV), pasta ligada à Secretaria de Direitos Humanos e Cidadania da Prefeitura de São Paulo, identificou ao menos 29 logradouros paulistanos que homenageiam pessoas envolvidas direta ou indiretamente com os crimes de violação de direitos humanos praticados durante a ditadura militar brasileira (1964-1985). Desde o centro até os quatro extremos da cidade, exemplos dessa conduta não faltam: o Minhocão foi batizado com o nome do general Artur Costa e Silva, o segundo presidente do período militar; o derradeiro, João Baptista Figueiredo, dá nome a uma via em Pirituba; o Viaduto 31 de Março, no Brás, remonta à data do golpe; na Vila Leopoldina, a rua Dr. Sergio Fleury relembra um dos torturadores mais conhecidos do período, assim como a Praça General Milton Tavares de Souza, localizada no Parque Novo Mundo. Como se não bastasse, há ainda ruas e avenidas com nomes de diversos apoiadores das práticas autoritárias e ditatoriais, tais como Filinto Muller (Parque São Rafael), Carlos Lacerda (Campo Limpo) e Golbery do Couto e Silva (Grajaú). Está na recomendação 49 do relatório final da CNV: com a finalidade de revogar medidas que homenagearam autores das graves violações de direitos humanos perpetradas durante a ditadura militar, deve-se promover a alteração da denominação de logradouros, vias de transporte, edifícios e instituições públicas que remetam a agentes públicos e particulares comprometidos com essa prática. Sugestão semelhante é feita na Diretriz 25 do PNDH-3. Com a intenção de tirar do papel a Lei Municipal 15-717/2013, que permite a alteração de nomes de logradouros ligados a violadores de direitos humanos, a CDMV lança o projeto Ruas de Memória no domingo (31/5), também impulsionado pela Comissão Nacional da Verdade (CNV) e pelo Plano Nacional de Direitos Humanos-3. Segundo a coordenadora-adjunta da CDMV, Clara Ribeiro Castellano, é preciso desconstruir a ideia recorrente de que é o revanchismo que alimenta essas mudanças, que ainda gerariam gastos desnecessários para o poder público. “Acreditamos que é uma forma de reparação simbólica para as vítimas diretas desses crimes, o Estado reconhecendo que eles foram praticados e as violações ocorreram”, aponta. “É uma forma de reconstruir a memória histórica do país a partir da lógica da valorização dos direitos humanos.”
Para o professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU-USP) e presidente do Instituto Pólis, Renato Cymbalista, projetos como esse demonstram que finalmente o país está enfrentando a “herança maldita” da ditadura militar. “O nome das ruas tem um significado simbólico muito grande: significa um consenso social de que esta pessoa deve ser homenageada e sua memória perpetuada. Instituir como nomes de ruas pessoas envolvidas na ditadura significa a legitimação de tais crimes”, observa.
O lançamento do Ruas de Memória será aberto ao público e acontece justamente em uma das vias que, em seu nome, eterniza um dos ideólogos do movimento militar que resultou no Golpe de 1964: a avenida Golbery do Couto e Silva. A partir das 14h, na quadra do Centro de Promoção Social Bororé (próxima ao número 94), será realizado um sarau artístico sob o tema “Violência de Estado Ontem e Hoje”.
Para as possíveis substituições nos logradouros, a CDMV listou personalidades que contribuíram para a democracia e o respeito aos direitos humanos no Brasil.
Clara aposta no diálogo e envolvimento da comunidade como estratégia para aprovar as mudanças nos logradouros, que precisam da anuência dos moradores daquela rua. “Não faz sentido impor uma mudança de cima para baixo, e a chance de ser rejeitada é grande”, acredita. “Somente a partir do processo de mobilização que conseguiremos transpor a cultura de violência que existe em São Paulo.”
Nesta primeira etapa, serão realizados três encontros em regiões periféricas da cidade, de preferência na própria rua que terá seu nome debatido. “Nos territórios periféricos é muito mais presente a questão da violência do Estado e do legado autoritário, pois sabemos que a Polícia Militar mata mesmo e tem chacina todo dia na periferia”, argumenta.
Em resposta às críticas de que o projeto traz gastos supérfluos à gestão municipal, Cymbalista é enfático: “não é um gasto desnecessário, pelo contrário, é um ato de reparação fundamental. Em termos morais e simbólicos, manter os nomes das ruas relacionados a violadores de direitos é que custa caro.”
Além de discutir o legado da ditadura, o Ruas de Memória pretende ajudar na construção de uma nova cultura cidadã. “A ditadura trouxe também o esvaziamento do espaço público e, com as perseguições políticas, reforçou a cultura do medo. A cidade ficou vazia. O projeto é uma forma de trazer a ocupação e ressignificação desses espaços”, aponta Clara.
No Rio de Janeiro foi aprovada a mudança de nome da Ponte Presidente Costa e Silva (mais conhecida como Ponte Rio-Niterói) para Betinho. Na Bahia, o Colégio Estadual Presidente Emílio Garrastazu Médici recebeu o nome de Carlos Marighella. No Maranhão, dez escolas públicas com o nome de militares identificados com a ditadura tiveram suas nomeações modificadas.
Já Cymbalista recorre à história para lembrar que, em grande parte do Ocidente, as décadas de 1960 e 70 foram marcadas pelo esvaziamento do espaço público, suburbanização, motorização e construção de vias expressas. “No Brasil e na América Latina, esse processo ocorreu junto com as ditaduras, que não tinham nenhum apreço por grandes manifestações públicas.”
O professor sugere que o projeto não apague simplesmente o antigo nome do logradouro. “As ruas devem ser renomeadas, mas não devemos esquecer que elas já tiveram esses nomes por décadas”, observa. “É importante marcarmos que durante décadas a nossa sociedade não se incomodou em dar nomes de ruas, avenidas, aeroportos a personalidades envolvidas com a violação grave de direitos.”
Clara adianta que, se aprovada, a mudança de logradouros contará com placas explicativas sobre o ocorrido. Elas dependem de Projetos de Lei a serem aprovados pela Câmara de Vereadores de São Paulo. “Ao mesmo tempo em que precisamos superar etapas históricas, não devemos nos esquecer do passado”, conclui Cymbalista.
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