RETROSPECTIVA 2012
Dezembro é o mês dos balanços. Não daqueles que são elaborados por contadores ou auditores e que demonstram a vida das empresas. Falo de um balanço de vida, de ações, promessas cumpridas ou descumpridas, de fazer uma espécie de apanhado do que transcorreu desde janeiro até as festas de final de ano. Na vida da gente existem sempre aquelas metas que nos impomos, e nada melhor que um fim de ano para avaliar o que foi feito: emagrecer, fazer exercícios, visitar os clientes rotineiramente, tirar melhores notas na faculdade, deixar a pauta de processos em dia etc. Dezembro é o mês que mais se assemelha às segundas-feiras — existe sempre um balanço do que foi feito e a criação de novas metas a serem realizadas.
Por isso, nada melhor que usar este mês para fazer uma espécie de balanço — uma Retrospectiva do Direito Financeiro em 2012. O que ocorreu de relevante nesta província do Direito no ano que está findando?
Poderia começar pelo óbvio — a criação desta coluna na ConJur para discutir aspectos do Direito Financeiro, que divido quinzenalmente com José Maurício Conti. A criação deste espaço pioneiro tem nos permitido debater esta vetusta e importante disciplina jurídica. O Direito Financeiro é tão amplo que não passa uma semana sem que algum de seus aspectos seja manchete de primeira página de jornal, o que dificulta sobremaneira a seleção para uma retrospectiva, tantos e multifacetados são os assuntos envolvidos — mas esta se impõe. Portanto, vejamos o que ocorreu de relevante em 2012.
Várias foram as novidades no Brasil, em um ano marcado por diversas crises financeiras na Europa. Na verdade, o que mais se discute por lá é direito financeiro — fórmulas para estancar o déficit público de alguns países e a implantação de um sistema de federalismo fiscal que permita a redução das desigualdades regionais — afinal, não é só em nosso país que este é um problema agudo.
Deve-se registrar que também nos Estados Unidos, pós-reeleição do Obama, o tema da crise fiscal é “do dia”, e deve entrar em vigor a partir de 2013 se o Congresso não decidir mudar as regras do jogo, flexibilizando os cortes previstos anteriormente.
No Brasil começamos o ano com uma novidade importante, que foi a longamente esperada LeiComplementar 141/2012, que regulamentou a Emenda Constitucional 29/2000, que trata do Direito à Saúde. A partir desta norma foi estabelecido o que se deve entender por gastos em saúde e o conceito “fechou a porteira” para muitas arbitrariedades que eram cometidas sob o pálio da imprecisão conceitual. Assim, os entes federados passaram a ter conceitos mais precisos para a realização destes gastos e o cumprimento da meta constitucional com saúde.
É curioso que o ano está findando com a decisão do governo federal de destinar 100% dos recursos dos royalties do pré-sal para gastos com educação, por todos os entes federados, o que é igualmente positivo, pois não se pode pensar na implementação desses direitos sociais sem os meios (recursos) para sua implementação. Já disse alhures que os direitos sociais, que são sempre prestacionais por parte do Estado, só podem ser implementados se forem garantidos os recursos para isso, o que está sendo viabilizado pelo Estado brasileiro com tais medidas.
Claro que estas normas que vinculam recursos a gastos sociais são necessárias, mas não suficientes, para fazer estes direito se concretizarem. Auxiliaria bastante a implementação desses direitos a aprovação do projeto de lei que trata da Lei de Qualidade Fiscal. Esta norma é que permitirá que os recursos ora “carimbados” para saúde e educação sejam realizados com qualidade, melhorando a eficiência e a economicidade dos gastos públicos. Este projeto de lei permaneceu adormecido em berço esplêndido no Congresso em 2012 — espera-se que em 2013 tenhamos melhores notícias neste aspecto.
Outra norma importante de 2012 foi a entrada em vigor da Lei de Acesso à Informação (Lei 12.527/2011), que trouxe maior transparência à destinação dos recursos públicos. Através dela é que se pode visualizar onde está sendo gasto o dinheiro que pagamos para sustentar o Estado. Foi esta norma que obrigou o poder público a disponibilizar sua folha de salários na internet, dentre outros aspectos. A disputa entre opacidade e transparência tem sido muito acirrada, pois inúmeros órgãos ainda não disponibilizam esta informação ou o fazem de maneira incompleta — há quem divulgue uma folha de salários na internet e não a de “complementação”, com as parcelas “indenizatórias” que são regularmente pagas. É desta forma que se pode ter maior controle sobre os gastos públicos — falta ainda melhorá-lo, pois existem muitas zonas cinzentas nessa transparência, como, por exemplo, no Ministério Público de vários estados.
Outro assunto em destaque em 2012, com reflexos no Direito Financeiro, foram os escândalos envolvendo políticos, dentre eles o do “mensalão” e a CPI do “Carlinhos Cachoeira”. Quem se debruçar sobre o primeiro constatará que se trata de um curso intensivo sobre como os recursos podem ser desviados dos cofres públicos. Há quem alegue que se trata de atividades corriqueiras em nossa República, mas que foram consideradas à margem da lei pelo STF através de um longuíssimo julgamento que mais pareceu uma novela de Janete Clair ou Glória Pérez.
Aliás, estes dois casos me recordam um aspecto curioso de nosso sistema formal de fiscalização e controle de contas, pois jamais este sistema, que envolve uma gama variada de órgão públicos (Tribunais de Contas, Ministérios Públicos, Receitas Federais/Estaduais/Municipais, Secretaria do Tesouro, Secretarias de Orçamento e Gestão etc.), identificou uma única dessas irregularidades. Para que o esquema Collor fosse desmontado, foi necessário que um irmão do então presidente, Pedro Collor, fizesse uma delação e se submetesse a um exame de sanidade mental para que todos acreditassem no que ele falava. Só então o sistema passou a identificar os problemas e ocorreu oimpeachment de Fernando Collor.
Algo semelhante aconteceu em todos os grandes escândalos nacionais, sendo que o mais recente só aflorou a partir da delação feita por um de seus eminentes partícipes, o então deputado Roberto Jefferson — começou com uma entrevista ao jornal Folha de S.Paulo, em 2005. Esta é uma peculiaridade perversa — o sistema de controle só identifica vícios formais e pequenos; os grandes ficam por conta das delações...
Outro âmbito importante de debates financeiros em 2012 ocorreu quanto à infraestrutura. Foi realizada a licitação para concessão de alguns aeroportos e espera-se que antes do final do ano a dos portos venha a lume. Ainda nesse aspecto, foi feita a renovação das concessões do sistema de energia elétrica no país — geração, transmissão e distribuição — através da Medida Provisória 579, motivo de muita confusão no setor. Pergunto-me sempre por qual motivo o governo federal, poder concedente, não cumpriu a Constituição e simplesmente realizou a licitação das concessões que estavam vencendo? Não tenho resposta. Possivelmente teria evitado toda esta barafunda tarifária e indenizatória que ocupa os jornais diariamente e faz cair por terra o preço das ações das empresas do setor elétrico nas bolsas de valores.
Já que falamos de infraestrutura, outros setores devem ser mencionados em razão dos destaques financeiros. Um deles é o da Copa e Olimpíada, pois foram criadas normas isencionais para os investimentos no setor, bem como abertos os cofres públicos para acelerar as obras necessárias para a realização dos eventos. Afinal, em 2013 já teremos a Copa das Confederações e os estádios devem estar prontos para serem testados — haja gasto público...
Outro setor que foi destaque em 2012 é o da mineração. Dois aspectos ponteiam. Um pela ausência direta — o prometido marco regulatório, que a cerca de três anos “está para ser publicado daqui há 15 dias”, não apareceu. Aguarda-se sua divulgação para “daqui há quinze dias”. O outro aspecto decorre indiretamente desta inércia — estados onde ocorre a atividade mineradora se cansaram de esperar pelo Governo Federal e criaram uma Taxa de Fiscalização sobre a Exploração de Recursos Minerais, batizada de TFRM. Pará, Minas Gerais e Amapá, ao arrepio da Constituição, instituíram fontes próprias de arrecadação, solucionando problemas de caixa. Umas empresas pagaram, outras discutem, e a vida segue. Espera-se que haja o bom uso dos recursos já arrecadados. Pergunto-me se os demais entes federativos não instituirão algo semelhante em futuro breve em face da experiência bem sucedida desses três — não tenho resposta. Aguardemos.
Outro aspecto importante da infraestrutura diz respeito aos royalties do petróleo. O candente debate sobre o rateio dessa receita permanece em aberto. Após muita discussão no Congresso, a presidente vetou parte do projeto de — sob os auspícios do Governo do Rio de Janeiro, que criou o “veta Dilma” — e encaminhará Medida Provisória para tratar do assunto. O ponto em aberto diz respeito ao rateio dos royalties referentes aos contratos já licitados — é possível mudar o rateio desses recursos? Alega-se que não, em face de que assim proceder acarretaria quebra de contrato —tolice argumentativa.
Os contratos estavam e permanecem em vigor entre as empresas privadas e o poder concedente. A questão aqui é de rateio e de previsibilidade orçamentária, pois os recursos estavam orçados pelos estados onde ocorre a produção e deixar de carrear a eles seria violar a segurança jurídico-financeira federativa. Todavia, o veto presidencial ocorreu sob o pálio de um argumento bastante contestável: o “direito adquirido” aos royalties. Parece brincadeira dizer que entes federados têm direito adquirido a uma transferência interfederativa, baseada em lei que pode ser alterada de forma soberana pelo Poder Legislativo. Como diz meu “vizinho de coluna na ConJur”, Lenio Streck, “a doutrina tem que doutrinar”... Trata-se de outra página que 2012 legará para 2013, prometendo fortes emoções e muito choro do governador carioca.
Já que falamos sobre embates federativos, lembro que em 2012 o STF criou uma espécie de “foro” para discussão de matéria federativa, onde os entes federados devem discutir e tentar solucionar suas pendências antes de ir às vias judiciais. Ponto positivo para o STF.
Aliás, o ano de 2012 foi pródigo em debates entre os entes federados. Além da disputa de royalties acima mencionada e do foro de composição de lides criado pelo STF, tivemos a criação de uma Comissão de Especialistas (conhecida por Comissão de Notáveis) para discutir o Pacto Federativo, que apresentou um Relatório, cujo destino é incerto nos desvãos da República. Importa destacar que começamos a constatar que nosso problema não é arrecadação de menos, porém Federação demais. Muitos “poderes públicos” no Brasil, vários deles com funções superpostas — está caro demais para os contribuintes e muitos gastos são com a atividade-meio e poucos resultados na atividade-fim do Estado.
Outro debate federativo diz respeito à reforma do FPE (Fundo de Participação dos Estados). O STF decidiu que as normas referentes a este Fundo eram datadas, e só poderiam ser aplicadas até 31 de dezembro de 2012. Caso outra norma sobre o rateio desses recursos não vier a ser votada até essa data, nada será repartido a partir de 1º de janeiro de 2013, levando muitos estados e municípios à falência. O Congresso vem debatendo a matéria, mas será que conseguirá votar algo nos dias que faltam para o recesso parlamentar de final de ano? Tenho minhas dúvidas. Aposto um tacacá (se você não sabe o que é, precisa se atualizar sobre alta gastronomia) que o Congresso decidirá manter tudo como está — quem topa a aposta? Será uma decisão estilo Gattopardo (“tudo deve mudar para que tudo fique como está” — esse Tomaso di Lampedusa era um gênio — não fosse siciliano, seria brasileiro). Ou seja, a norma terá sua vigência prorrogada por 5 ou 10 anos, sem alterações de vulto, apenas periféricas.
Outro debate federativo importante se verifica sobre a guerra fiscal. Sob a ameaça da edição de uma Súmula Vinculante pelo STF que pretensamente colocaria um ponto final sobre a guerra fiscal, foi aprovada a Resolução 13 do Senado Federal, para vigorar a partir de 2013, parametrizando percentuais mínimos de arrecadação de ICMS por parte dos “estados portuários”. A guerra fiscal, neste aspecto, teve uma trégua. Batalha vencida, guerra em curso. A ameaça de Súmula Vinculante move os governadores, que perderiam muito se o STF decidisse a respeito. Afinal, texto não segura texto, assim, mesmo que o texto de uma Súmula Vinculante venha a ser editado, outros aspectos virão a ser debatidos e outras brechas se abrirão. Basta ver o conceito de “diferimento” — será que todos os modos de diferimento se enquadram no contexto de uma guerra fiscal? A Proposta de Súmula Vinculante não faz a distinção — novos problemas à vista...
As eleições municipais ocorridas em outubro trouxeram outros debates, dentre eles sobre limitações da dívida pública, pois o município de São Paulo, tal como todos os municípios do país, só pode se endividar até 1,2 de sua Receita Corrente Líquida (RCL). Os estados, por serem ente federativo maior, podem se endividar até 2,0 de sua RCL. O prefeito eleito de São Paulo vem contestando esta limitação — a meu ver, com bastante acerto. Afinal, se os entes federativos são diferentes entre si, por qual motivo devem ser tratados igualmente? O parâmetro do discrímen está correto? Estou seguro que a arrecadação do município de São Paulo é muito maior que a de muitos estados — então, por qual motivo distingui-los pela espécie federativa e não pelos valores arrecadados? A regra seria mais equânime se estabelecesse que todos os entes federativos que arrecadassem até “X” pudessem se endividar até 2,0 sua RCL, sejam estados ou municípios. O debate foi colocado — espera-se em 2013 a resposta.
Como visto, tivemos um ano pródigo de novidades financeiras, algumas das quais aqui apenas indicadas. O debate sobre Direito Financeiro prossegue — sem este ramo do Direito o Estado não sobrevive e os cidadãos ficam a mercê de arbitrariedades na arrecadação e no dispêndio dos recursos.
Desejo a todos um Feliz 2013, torcendo para que a expansão do crédito para a compra de automóveis não gere tantos engarrafamentos em nossas ruas, que as projeções de inflação e de déficit público, que foram estouradas em 2012, permaneçam sob controle permitindo que todos tenhamos mais dinheiro no bolso e menos preocupação com a carência dos serviços públicos que nos são ofertados. E que o PIB aumente, afinal, se caracterizou em 2012 como um “pibinho”. Mais PIB, menos desemprego, mais consumo, mais riqueza e possivelmente menos miséria — se o dinheiro circular. E, claro, que a carga tributária diminua, pois “tá ficando difícil” segurar...
Mas isso é prosa para 2013, que espero venha a se caracterizar realmente como um próspero ano para todos.
PS — Sou grato aos amigos que me recordaram vários dos fatos e normas ocorridos em 2012 e usados nesta Retrospectiva.
Fernando Facury Scaff é advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Melo, Guimarães, Pinheiro & Scaff – Advogados; é professor da Universidade de São Paulo e doutor em Direito pela mesma Universidade.
Revista Consultor Jurídico
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