A 'Folha' quer ser o bastião de um conservadorismo mais que nunca determinado a implodir a agenda progressista que ordena o país desde 2003.
A exemplo dos pavões do PSDB, porém, o veículo dos Frias também se pretende 'moderno' .Uma referência de desprendimento republicano, 'a serviço do Brasil'.
Incompatibilidades entre uma coisa e outra são escamoteadas frequentemente abusando-se de um recurso ardiloso: o fraseado adversativo.
Basta um 'mas' depois das vírgulas. Pronto.
A relação de forças, os conflitos de interesses que estruturam os impasses macroeconômicos atuais, as dinâmicas condicionadas pela desordem neoliberal, o saldo dos avanços e, sobretudo, os riscos de uma ruptura tudo se dissipa e se dissolve.
O pontificado do arrasa-terra lubrifica-se nesse genial truque de um 'mas' depois da vírgula.
Evidências incontornáveis reduzem-se a partículas de Higgs. Por exemplo, o fato de o dispositivo midiático ser um dos escudos implacáveis do rentismo neoliberal que engessou e corroeu - e ainda corrói - as turbinas do investimento produtivo nacional.
Nada disso importa ao pasteurizador narrativo da Folha.
O truque consiste em nivelar um avanço inquestionável da década petista a um ponto não contemplado da agenda conservadora.
Passo seguinte: conclui-se que nada de relevante aconteceu no país; nada mudou desde 2003; não houve um miserável centímetro de avanço histórico.
Escavado o buraco negro desobriga-se o foco de contemplar as conquistas --desobriga-se também quem de direito a defende-las. No limite podemos chegar ao suicídio assistido pelos princípios inquebrantáveis que levaram alguns a preferir a vitória de Serra contra Haddad em SP -- 'para punir a degeneração petista'.
O país --o governo construído desde 2003, com suas falhas clamorosas e avanços reais-- vira uma terra de ninguém. Uma Geni de fim de ano. Pau nela.
Em torno do marco zero pontifica-se livremente sobre o futuro: tudo está por fazer.
O negacionismo adversativo é uma espécie de doença infantil do conservadorismo.
Como outras doenças infantis, trata-se de abduzir a realidade e a relação de forças no complacente espaço do idealismo.
É esse o motor do editorial da Folha desta 4ª feira, sugestivamente intitulado 'Reforma Geral'. Ou vassourão de fim de ano.
Ou ainda, 'chamada geral ao pacto adversativo contra o governo Dilma'.
A meta é exposta com todas as letras no texto: desqualificado o presente, o futuro passa por 'mudar desde as condições de produção até as próprias prioridades nacionais", convoca o confiável diário dos Frias.
Só isso.
Quais prioridades nacionais?
O editorial não tem a audácia (ainda) de propor a supressão dos avanços sociais implantados no governo Lula.
Tampouco de clamar por alguma forma velada de arrocho salarial --a começar pelo salário mínimo, quem sabe.
Mas é disso que se trata.
A restauração do projeto derrotado nas últimas três eleições presidenciais implica negar a qualquer avanço do ciclo petista o condão de uma nova alavanca de desenvolvimento.
O editorial é uma carta proposta nesse rumo. Virão outras, por certo, sempre escudadas no 'interesse nacional'.
A cobrança por avanços sintetiza um roteiro de regressão.
Reduzir o ciclo petista a uma montanha desordenada de corrupção, fracassos e intervencionismo-estatal-populista é o que autorizaria a volta dos geniais e impolutos tucanos ao leme.
Essa é a marcha dos acontecimentos.
Trechos ilustrativos desse ensaio de campanha para 2013/2014, pinçados do editorial adversativo da Folha desta 4ª feira, 26-12:
"... é verdade, o governo Dilma decidiu baixar o custo da energia, ainda que de forma desastrada"
" Impostos foram reduzidos de modo relevante, mas arbitrário".
"o conservadorismo do governo, que não vem de agora. A última novidade relevante foi o aumento do mercado interno, a partir de meados do período Lula".
"Decerto a redução dos juros terá efeito positivo, mas ela se deveu em parte a uma conjuntura econômica mundial excepcional".
" (o país) precisa de um programa de aceleração do crescimento, (mas ) não este da marca de fantasia do governo, mas de uma reforma que altere as condições em que se produz, a maneira de governar e as prioridades nacionais".
Vai por aí a coisa.
A investida conservadora contra a política econômica deve preocupar não só o governo.
Ela fala diretamente aos que pleiteiam avanços efetivos, e mais rápidos, na estratégia de crescimento com maior justiça social --e, portanto, com mais democracia participativa, único antídoto ao golpismo das togas.
A presidenta Dilma tem feito um pedaço do que cabe ao governo (faltam outros; a regulação da mídia, por exemplo).
Seguidos apelos aos empresários para que retomem o investimento na expansão da base industrial e logística ocorreram neste final de 2013. Será a batalha de 2014.
Um número resume todos os demais: 40 milhões de brasileiros saltaram da pobreza para o mercado de consumo no ciclo Lula.
O país foi pensado por uma elite que achava de bom tamanho governar para 30% da sociedade.
A ascensão progressista mudou a escala da economia e impôs a reordenação do desenvolvimento, da democracia e da comunicação.
A luta política atual é para adequar uma coisa a outra. Ou, do ponto de vista conservador, para retroagir uma coisa a outra.
O salto do investimento, a chamada formação bruta de capital fixo, é necessária para que o Brasil possa avançar na rota traçada desde 2003. Sem gargalos de infraestrutura e de oferta que terminem por gerar escassez e custos descontrolados.Em resumo: inflação, regressão na renda e alarmismo conservador (ensaios disso salpicaram recentemente na Economist,que pediu a cabeça de Mantega; e no blog do Financial Times, desta 4ª feira, que excreta a carniça neoliberal em tratamento desrespeitoso a Dilma e ao Brasil).
As empresas brasileiras estão líquidas. Há dinheiro em caixa para investir. O mesmo acontece no sistema financeiro. Há dinheiro grosso ocioso.
Desde 2008, no segundo governo Lula, medidas tem sido tomadas para induzir a transição a uma nova matriz macroeconômica.
Bancos públicos e decisões de Estado forçaram a queda dos juros (a Selic caiu 5,5 pontos em 12 meses). O câmbio --embora ainda insuficiente às exportações e deleteriamente propício às importações que asfixiam a industria local-- já está cerca de 14% mais competitivo. Desonerações tributárias em valor equivalente a 1% do PIB foram autorizadas para impulsionar a competitividade manufatureira.
Mais importante de tudo: o efeito-riqueza propiciado pela ciranda rentista evaporou-se. Não dá mais para dobrar o pecúlio em dois ou três anos de farra do capital a juros.Muitas carteiras tornaram-se negativas.
Por que, então, as coisas ainda patinam a ponto de favorecer o chamamento da Folha ao pacto adversativo --a 'reforma geral' que incluiria "desde as condições de produção até a revisão das próprias prioridades nacionais"?
Um dos impasses consiste no fato de que o capital acostumado à liquidez rentista, associada a altas taxas de juros, recusa-se a migrar para projetos produtivos e de infraestrutura que não ofereçam vantagens líquidas equivalentes, na verdade maiores que as originais.
No fundo, o que se rejeita, de fato, é o comando do Estado sobre o próximo ciclo de investimentos.
No geral,as taxas de retorno dos projetos propostos pelo governo superam folgadamente o patamar obtido no mercado financeiro pós- crise de 2008. Sem esquecer que uma parte do capital é financiada a juros subsidiados pelo BNDES.
Mas eles querem mais.
Para investir em portos, ferrovias etc cobra-se em troca um retorno superior ao do mercado financeiro atual, ademais de um plus que compense a liquidez inferior, inerente a obras de longo prazo e difícil revenda.
Estamos no olho do furacão dessa queda de braço histórica.
Os dois lados enfrentam uma contagem regressiva excludente.
Os ponteiros do governo são ordenados pelo timming político.
A transição macroeconômica precisa ser validada por uma nova safra de investimentos. Ou Dilma chegará vulnerável à corrida para a reeleição.
O capital estocado nas tesourarias de bancos e empresas,por sua vez, queima como batata quente.
Não pode dar-se ao luxo de insistir em opções de baixa rentabilidade financeira desprezando retornos - de teto superiores - colocados na pauta do desenvolvimento.
A teimosia tem impactos em balanços,ações e dividendos. Acionistas podem fugir. Cabeças podem rolar. A resistência à eutanásia do rentista pode redundar em fuzilamento profissional de gestores atucanados.
Nessa guerra de nervos,a mídia cumpre o papel de dar aos apetites particulares uma crosta de suposto interesse geral.
Até quando a sabotagem conservadora poderá resistir?
Até onde o governo Dilma pode ir para tornar os atrativos à produção inapeláveis?
Não se trata de uma gincana entre puros e entreguistas.
Trata-se de esticar o fio das possibilidades de futuro dentro da relação de forças do presente, também para modificá-la para melhor.
Esses são os fatos que urgem e rugem por trás do editorial da Folha e de similares que devem inundar a mídia em 2013.
Não é um problema do PT ou da Dilma.
Tem a ver com a próxima década do país.
Com a próxima geração.
Pode ou não confirmar as possibilidades e esperanças depositadas no pré-sal.
Pode ou não viabilizar a transformação de 40 milhões de novos consumidores em novo sujeito histórico.
O governo, o PT e as forças progressistas que pavimentaram a caminhada de 2003 até o ponto atual precisam - urgentemente - repactuar as bases de sua aliança para impulsionar o passo seguinte da história.
Do contrário, a lógica conservadora terá o campo livre para agir e se materializar num poderoso pacto adversativo.
É preciso conversar o mais rápido possível. Antes que as diferenças se transformem em distanciamento e o estranhamento em fragmentação progressista.
Cabe ao governo Dilma a iniciativa do jogo. Ou vamos esperar os editoriais de primeira página?
(*) Revisado e atualizado em 27/12/2012, às 16h35
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