"Como diziam os moradores de Santa Rosa, em uma cidade majoritariamente branca do sul: “o problema da criminalidade é esse pessoal que foge do Rio, esse pessoal moreno que vem para cá”. É isto, o problema da Universidade, para alguns professores, é este pessoal que foge às estatísticas, este pessoal moreno, negro, pardo, nordestino, que vem para cá, para a sala de aula", escreve Luciane Soares da Silva, professora associada da Universidade Estadual Darcy Ribeiro e integra o Núcleo de Estudos de Exclusão e da Violência (NEEV), em artigo publicado no blog Fazendo Media, 11-11-2013.
Eis o artigo.
Nas discussões sobre ação afirmativa, alguns estudiosos afirmam que a “questão das cotas” criaria um problema que não existe no Brasil, um problema “importado” pelo Movimento Negro e uma meia dúzia de intelectuais. Quando em 2003 estas discussões tiveram maior espaço na Universidade, alunos contrários as cotas discursavam aos berros que o sistema era “meritocrático”. Que cada um deveria ter sua vaga alcançada por esforço.
No Capão Redondo alguém riu as duas da manhã, antes de sair para o trabalho! O problema é importado, eles diziam na sala de convenções. As cotas iriam “baixar o nível dos alunos”, teria dito um reitor.
Na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, alguns grupos se formavam, apontando os cotistas, esperando que se espatifassem graduação abaixo. Mas o problema era importado. Não havia problema nos 90% dos professores daUniversidade Federal do Rio de Janeiro pertencendo a um único grupo étnico-racial.
Seria estranho trancar todos estes defensores do problema “importado” em uma sala e iniciar uma conversa sobre nação e diáspora? Seria estranho apresentar os números sobre tráfico negreiro nas Américas? Ou os números sobre encarceramento nos Estados Unidos e no Brasil? De que povo brasileiro estávamos falando? De Gilberto Freyre, suas usinas em Pernambuco e suas mulatas sensuais? Dos apadrinhados da Casa Grande? Que problema era este, importado que batia á porta da Universidade Brasileira?
Era tarde demais para retroceder, então era preciso dizer, berrar, que raças não existem, que era preciso investir no ensino fundamental. Em uma reunião com pesquisadores portugueses, houve até choro e confissões de amor pelos negros brasileiros, pelos estudantes de periferia, a afirmação de que não somos racistas.
Foto: http://migre.me/gCdS8
Mas era tarde demais para retroceder. A questão das ações afirmativas já estava cravada no coração das Universidades brasileiras e a cada rodada revelava o fundo do poço. Em um muro da João Pessoa, em Porto Alegre, uma pichação: Negros só na cozinha do R.U. De fato, durante toda a graduação em Ciências Sociais, este era mesmo o lugar onde eu os via diariamente. Na cozinha dos restaurantes universitários.
Qual era a ameaça dos 20%? O que assustava tanto em tornar um lugar como o Campus do Vale, menos homogêneo racialmente? Talvez, uma verdade muito incômoda, ouvida durante a graduação por muitos dos que estão lendo este texto. As formas de racismo institucional praticadas diariamente quando se está em uma turma de 40 ou mesmo na pós graduação, em uma turma de 10 pessoas. Tanto faz se estamos em Porto Alegre, Rio de Janeiro ou Salvador. Em certos níveis da educação e certas Faculdades, a distribuição é a mesma, basta ver os formandos de Medicina na Bahia no ano de 2012.
O que levou um professor de agronomia a pagar multa civil por ato de racismo em 2000? No primeiro dia de aula, o nobre docente proferiu as seguintes frases: “os negrinhos da favela só tinha os dentes brancos porque a água que bebiam possuía flúor”, e depois, arrematou “soja é que nem negro, uma vez que nasce, é difícil de matar”. QuandoPierre Bourdieu faz sua crítica avassaladora sobre a instituição escolar, muitos franceses torceram o nariz: como ele ousava atacar logo esta instituição? Como ousava desconstruir o mito da escola como formadora de cidadania? Não há engano, o que vemos hoje não tem relação com posturas científicas ou argumentos isentos de ideologia.
As razões apresentadas para acreditar que as ações afirmativas são “ruins” para o Brasil são pífias, não se sustentam, revelam mais da alma do que muitos dos que as atacam gostariam de revelar. É certo que não resolveremos o problema da educação no Brasil com reservas de vagas. Não devemos reservar vagas, devemos garantir acesso universal ao ensino superior. Mas não é esta bandeira dos críticos às cotas. Estão simplesmente em pânico.
Como aceitar linguagens de outro tipo? Como lidar com alunos que ouvem rap e trabalham, têm filhos e dormem pouco? E mesmo que não seja esta a realidade de boa parte dos cotistas, o simples fato da existência de diferença em sala de aula, perturba tão profundamente alguns professores! É como se alguém tivesse colocado câmeras pelos corredores. É como se tivessem de tratar como iguais aqueles á quem habitualmente dão ordens. Que segredos foram ocultados?
Ah, lembrei: o profundo desprezo que nutrem por alunos que desviam de seus padrões de reprodução teórica, de sua visão de mundo. A pergunta de corredor feita pelo professor de sociologia rural ao aluno negro: mas por que, para que o mestrado? A graduação já não está de bom tamanho? O mesmo professor que bocejou durante sua defesa de tese. E que o classificou em quinto lugar em um concurso público sem critérios. Por que falar de racismo na Universidade afinal?
Como diziam os moradores de Santa Rosa, em uma cidade majoritariamente branca do sul: “o problema da criminalidade é esse pessoal que foge do Rio, esse pessoal moreno que vem para cá”. É isto, o problema da Universidade, para alguns professores, é este pessoal que foge às estatísticas, este pessoal moreno, negro, pardo, nordestino, que vem para cá, para a sala de aula.
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