O Brasil vive um drama orçamentário, com o governo a propor a volta da CPMF para fechar as contas do ano que vem sem ter de cortar programas sociais como Bolsa Família ou subsídios à moradia popular (Minha Casa Minha Vida) e a universitários pobres (Fies). É um problema que beira o incompreensível, diante da revelação de certos hábitos do empresariado local capazes de desfalcar os cofres públicos em bilhões.
Na década compreendida entre 2003 e 2012, o Brasil foi ponto de partida de um fluxo financeiro ilícito de 217 bilhões de dólares, uma média anual de 21 bilhões. Este fluxo abrange dinheiro de corrupção e tráfico de drogas, entre outros crimes. A maior parte (cerca de 80%, ou 172 bilhões de dólares), contudo, resulta de procedimentos adotados por empresas para pagar menos impostos e disfarçar evasão de divisas. Casos mais comuns: subfaturar exportações e superfaturar importações.
Quase metade da movimentação ilícito total se deu entre 2010 e 2012. Foram 100 bilhões de dólares no período, uma média de 33 bilhões anuais. Pelo câmbio atual, seriam 130 bilhões de reais por ano, o dobro do problema orçamentário de 2016. O projeto de orçamento foi ao Congresso com um rombo de 30 bilhões de reais, mas o governo espera reverter sua própria proposta e obter uma sobra de 34 bilhões.
Os valores do fluxo financeiro ilícito brasileiro foram estimados por uma entidade chamada Global Financial Integrity (GFI), ou Integridade Financeira Global, em tradução literal. Trata-se de um think tank, uma “usina de ideias” financiada pela Fundação Ford e localizada em Washington, a capital do Estados Unidos. Seu propósito é auto-explicativo pelo nome.
Os dados constam de um estudo feito em 2014 pelo economista-chefe da GFI, Dev Kar, um indiano com 32 anos de Fundo Monetário Internacional (FMI) no currículo. Foram calculados a partir de dados do Banco Mundial (Bird). E fazem parte de um livro lançado na terça-feira 22, a reunir estudos semelhantes sobre a situação na Índia, no México, na Rússia e nas Filipinas.
Os cinco protagonistas do livro estão entre os principais pontos de partida do fluxo financeiro ilícito no período de 2003 a 2012, segundo a GFI. Em um ranking de 145 países, a Rússia é o segundo (973 bilhões de dólares), o México é o terceiro (514 bilhões), a Índia é o quarto (439 bilhões), o Brasil é o sétimo (217 bilhões) e as Filipinas, a 15ª (93 bilhões).
“O subfaturamento de exportações é o mecanismo mais usado pelos empresários brasileiros para transferir capital para o exterior ilicitamente”, diz o estudo de 2014. As firmas vendem para o exterior com preço abaixo dos valores de mercado “para reduzir o lucro que declaram no Brasil”. E fazem isso “geralmente com base em um acordo tácito com o importador no sentido de que ele remeta o valor restante para uma conta offshore [no exterior] controlada pelo titular da empresa”.
Alguns estudos indicam que subfaturar exportação é um meio de a empresa ter patrimônio em um paraíso fiscal para investi-lo posteriormente nela mesma no Brasil. Este investimento disfarçado de investimento estrangeiro proporcionaria novos prejuízos aos cofres públicos: aumento da dívida externa e geração de gastos nas companhias que podem ser abatidos da tributação delas.
O superfaturamento de importações serve ao mesmo objetivo. Pagar por um importado acima do valor de mercado permite às firmas manter uma reserva financeira em paraíso fiscais.
De 1960 a 2012, a GFI estima que o fluxo financeiro ilícito a partir do Brasil tenha atingido 400 bilhões de dólares. Deste total, as manobras das empresas em transações de comércio exterior representaram de 80% do total.
“Temos observado, há muitos anos, uma hesitação por parte do Brasil em atacar, efetivamente, problemas relacionados à fuga de capitais e a saídas ilícitas de recursos do país”, afirma a GFI, a destacar que o País deveria apertar as multinacionais. “O governo deve fazer muito mais para combater tanto o subfaturamento de exportações como o superfaturamento de importações, adotando, proativamente, medidas dissuasivas adicionais em vez de punições retroativas.”
Em seu estudo, a entidade faz algumas sugestões para o governo coibir o fluxo financeiro ilícito. Aprovar lei criminalizadora do subfaturamento de exportações e superfaturamento de importações. Obrigar exportadores e importadores, inclusive seus dirigentes, a assinar termos declarando que os valores de suas transações são reais. Capacitar contradores e auditorias para vasculhar a contabilidade de comércio exterior das companhias.
Diz ainda que o Brasil deveria seguir o exemplo recente de Reino Unido e França e passar a exigir que as empresas informem às autoridades o nome de todos os seus controladores pessoas físicas e de titulares beneficiários. “Torna muito mais difícil a lavagem de produtos de crimes e da corrupção, facilita muito a identificação de relações ocultas entre parceiros comerciais e torna bem menos onerosos os requisitos de vigilância de clientela por parte de bancos”, afirma.
Com tal potencial arrecadatório inexplorado, resta a perplexidade entre observadores do debate orçamentário atualmente em curso no País. “As grandes empresas, principalmente as multinacionais, se aproveitam de uma arquitetura global que permite uma série de manobras e fazem evasão de divisas”, diz Grazielle David, do Instituto de Estudos Sócioeconômicos (Inesc). “E com essa evasão, a conta vai sobrar para alguém: os pobres e a classe média.”